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“Doido do homem que confia no bicho que sangra por sete dias e não morre” (Interlocutor, NUAH, 16.5.2013).

5.3.1 “Uma família que bate em mulher!”

As vivências cotidianas influem nas condições de vida de todos os atores atuantes. O relato mostra a opressão dos filhos de Antônio em relação a sua

companheira fazendo dela alvo de agressões e, consequentemente, ocasionando a prisão do pai. Vejamos:

Mas sabe também porque que; ela gosta, mulher! Mas não é que ela gosta, tem outras coisas. Eu digo que ela gosta, mulher se tu visse no dia lá em casa ela revoltadíssima, porque eu chamei a polícia pro pai do marido dela. Eu “Mulher, cria vergonha na tua cara, tu devia chamar era pro teu marido também!”, aí pronto, aí ele veio me esculhambar também (Maria de Jesus).

Ao ser perguntada sobre o motivo da permanência da mulher, ela coloca:

Mulher eu não sei, porque ela tem a mãe dela, ela só tem um filho dele, ela é bem novinha, ela tem uns dezessete anos e ela é bem bonitinha e ele não tem nada, não tem nada pra dar a ela, mora numa casinha bem pequenininha, eu não sei não porque que ela aceita não. É mermo só por gostar? “Eu acho que deve ser, não sei como é que uma pessoa gosta de uma pessoa que falta matar ela. Quando ele, eles tavam separados, e voltaram, aí foi buscar ela, aí o primeiro dia ficaram bem, o segundo dia eu fui lá - porque as minhas meninas sempre fica lá brincando com a deles que é bem pequenininha, aí eu fui buscar minhas meninas lá, aí ele “nós tamos em lua de mel.”, aí quando foi no outro dia, aí eu fui, eu ia pra fora, aí a vizinha dele do outro lado passou aí disse “Menina, o fi do teu marido tá em tempo de matar a muié de peia!”[aí eu disse:] “Que conversa menina, que ontem eles tavam em lua de mel!”, aí eu disse “Eu não vou me meter não!”. Aí o pai dele também não tinha coragem... (Maria de Jesus).

Pai dele não tinha coragem de ir lá, aí eu peguei e fui. Ele ligou o som bem alto e meteu a chibata nela pra ninguém escutar, só que a vizinha que é uma parede só tava escutando. Aí eu peguei fui lá e bati na porta aí quando eu bati na porta ele saiu pra fora, abriu a porta e ela tava lá pro quarto. Aí eu disse assim “Que é que tá acontecendo aí? Pra que esse som tão alto?!”, aí eu entrei e desliguei o som. Aí eu disse: “Cadê a tua mulher?” Acho que ele tem uns vinte e um, vinte e dois por aí. Aí eu “Cadê a Silvia?”, aí ele “Tá ali dentro do quarto”, aí eu entrei pro quarto né; quando eu entrei pro quarto ele abriu a porta e saiu pra rua. Aí eu fui lá e ela: “Ele quase me mata!” e bateu ela na parede, sabe, espancou mermo, e ela toda roxa, isso aqui dela tudo rasgado, cabeça dela cheia de catombo, pior do que eu fiquei! Muito! Aí eu disse “Mulher, como é que tu vive, tu aguenta uma coisa dessa?! Tá com três dias que tu voltou pra ele, tu já tá apanhando assim?!” Eu botava minhas coisinha de volta e voltava pra casa da minha mãe. A mãe dela é louca que ela vá pra lá, louca pela criança e ela quer ficar mais ele. Aí pronto, desde desse dia que é todo dia a vizinha “Ei ontem quase que ele mata a mulher de novo.”, eu disse “Tomara que ele mate! Por que ela não sai de lá?” Ela não sai, ela passa o dia todim trancada dentro de casa pra não mostrar as marcas pro povo; e ela é bem novinha. Aí eu já vinha ficando revoltada com isso aí, né, e criando aquela coisa, aquela raiva na gente, aí quando, não tava com duas semanas o outro irmão dele deu uma surra na mulher” (Maria de Jesus).

Entre as colocações da interlocutora, percebo que os enteados estabelecem suas relações com as companheiras mediante violência; a madrasta ao visualizar as agressões perpetradas, começa a interferir no processo relacional entre os enteados e suas

companheiras, sendo alvo de ofensas entre ela e o seu marido. Maria de Jesus relatou não ter tido problema com o marido, mas depois das violências cometidas pelos enteados e sua interferência, Antônio precisava “dar uma lição” na mulher.

No ritual da liminaridade, posso defini-la como em camadas, pois a interlocutora interferiu em diversas parcelas familiares do seu núcleo, podendo também pontuar uma ação geracional. Maria de Jesus já não é a primeira mulher de Antônio e não sabia como o marido se relacionava com a antiga esposa. O pai e os filhos, mesmo em idades diferentes, têm afinidades culturais e de comportamento semelhantes. Mesmo assim, há outro irmão que defende Maria de Jesus, demonstrando que há algo que pode modificar na estrutura relacional do indivíduo. Veja como Maria de Jesus conta sua história:

5.3.2 O momento da separação

Aí eu disse, pra menina dele, a mulher do irmão dele pá liga pra mim, pra mim ir lá, aí eu fui cheguei lá: “Que foi que aconteceu?”, aí “Ai ele quase me mata, não sei o que. O filho dele e o outro é irmão dele. Aí o irmão dele que bateu nessa moreninha que mandou me chamar. Aí eu fui lá “O que foi?”, [aí ela disse:] “Não, o Zé me bateu, me espancou, me tacou na parede, minha cabeça na parede, num sei o que.” Eu disse “Mulher e tu vai fazer o quê?”, “Eu não sei”, eu disse: “Por que tu não vai pra casa da tua mãe?”, “Bora me deixar lá na parada?”, eu? “Vamos!”. Levei ela na parada, botei ela no ônibus, tranquei a porta da casa dele, aí eu fui lá onde ele tava bebendo e entreguei a chave da casa a ele. Aí ele disse “Cadê a Claudia?”, eu disse “Foi-se embora”, aí também eu não falei nada, né, que ninguém tem o direito de se meter. Aí pronto, aí até que tem outro irmão dele que mora bem pertinho de mim, só que esse, no dia da briga, aí o irmão dele que mora bem vizinho de mim, ficou contra ele nesse dia, ele me defendeu, se agarrou com ele brigando, eu que mandei ele parar porque a polícia ia chegar e ia levar todos os dois né, que ele não tinha nada a ver. “O irmão do meu ex, não é mais meu marido. Aí eles, aí pronto, aí ele ficou do meu lado, até que eu conversei com a namorada dele, aí a gente conversando, aí nós tava dizendo assim “Olhe, só falta nós duas, mulher. Que diabo de família é essa que

bate na mulher direto?!”.

5.3.2.1 A decisão

[...] se ele triscar um dedo em mim eu mato ele, aí eu disse “Não, se ele triscar o dedo em mim ele vai preso”, aí quando foi no dia das mães aí aconteceu isso. Falta de aviso não foi, porque eu sempre avisei pra ele, que se triscasse em mim eu chamava a polícia.

5.3.2.2 Estado liminar

O sobrinho dele ficou insistindo: Lucy, vamo retirar a queixa, não sei o que, a mãe tá ficando preocupada...E eu queria até que fosse assim mesmo, assim, porque eles não quer né tirar ele da cadeia? Então que a justiça soltasse ele e ele ficasse respondendo.Porque depois pra ele não dizer que eu sou ruim, que eu não vim aqui, aí eu queria isso, né?

Agora temos a pressão dos familiares e do advogado para tirar a denúncia e não seguir adiante.

É. Aí eu disse “Eu vou”, aí desde terça-feira que eles querem que eu venha, eles ficam ligando e eu: “Não eu não vou.”, ainda ontem ele ligou e eu disse “Olhe, eu não sei nem o que é que eu vou fazer ainda da minha vida, vou ficar me preocupando com a vida dos outros? Vou me preocupar com a minha vida, com a dos meus filhos, eu não posso ficar solta assim no mundo sem saber o que fazer da vida não”.

A interlocutora culpa-se pela a situação do marido:

Aí fui, aí ontem de noite eu não queria tirar ele da cadeia, aí eu já tinha pensado se eu não for, vão dizer que eu sou incompreensível, aí vai ser pior, eu pensei assim “Eu vou lá”, mas eu queria primeiro falar lá com alguém, porque se for pra tirar ele da cadeia – que eles não querem tirar?! – então que solte, mas que ele fique respondendo né, pelo que ele fez.

No relato de outra interlocutora, visualizo mais uma percepção da lei: “Se a justiça não fizer, eu faço com as minhas próprias mãos...” (Mulher na DDM, ao fazer o terceiro boletim de ocorrência), demonstrando sua descrença na lei ao mesmo tempo que a aciona várias vezes, separando-se do companheiro e impondo sua decisão.

Eu acho que isso aí, se realmente existe essa lei, fica só no papel. Fica só no papel, porque eu já vi, por exemplo, o meu ex, pai dos meus filhos, já fiz vários BOs contra ele, aqui [Delegacia da Mulher], ele já foi chamado, outra vez ele me seguiu até aqui, foi detido e sempre indo pra casa. É tanto que ele usa essa frase, ele diz que os papéis de uma delegacia ou um mandado judicial ele faz de papel higiênico, tá entendendo? Aí você se tira o peso da palavra, não tem. Eu não acredito, eu sei que existe a Maria da Penha, a Lei Maria da Penha, mas eu não acredito na serevidade dessa, dessa lei, que ela seja assim realmente severa. Eu não acredito. (Mariana, etnografada, Delegacia da Mulher, Fortaleza).

Quando visualizamos o ritual da denúncia da Lei Maria da Penha, investigamos diversos usos da lei no mundo das mulheres; no entanto, o relato anterior estipula a descrença e ainda existem vários outros relatos que a evidenciam.

Outra interlocutora expõe a necessidade de recorrer à lei por já não acreditar na mudança do marido, e visualizará a morte109 como algo possível. A preocupação e os mecanismos de enfrentamento da violência se contrapropõem à segurança da denunciante, havendo um despreparo tanto das mulheres como dos agentes de controle. As mulheres estão despreparadas para lidar com questões relacionadas à morte. E quando elas acionam a lei, têm a esperança de serem protegidas pelo Estado.

A violência contra a mulher é algo perene em nossa sociedade. Todavia, necessitamos de um processo contínuo de aprendizado e crescimento, no qual os sujeitos envolvidos possam readequar seus aprendizados e, principalmente, comportamentos em favor de relações sem violência.

Estamos vivenciando, segundo me parece, não só uma reaprendizagem para homens e mulheres, mas para todos aqueles que lidam de algum modo com a dimensão da violência contra a mulher. As reaprendizagens vão além do masculino e feminino, engajando outra divisão do socius.

Hoje, o vizinho é aquele que aciona a polícia. A lei, no entanto, tem um caráter educativo, ressignificando pontualmente ações de um aparelho social tão enigmático, não sendo algo fácil, mas não impossível.