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Uma vez apresentados os dados que constituí ao longo dos quatro anos de pesquisa, julgo importante apreender os processos de ressignificação do masculino e do feminino em curso no contexto das práticas culturais envolvendo gênero e intimidade mediados por experimentações de violência.

Como podemos entender a transição do tradicional para o moderno? Giddens (1997) coloca com suas palavras que: “tradição é uma orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência ou, mais precisamente, é constituído para ter uma pesada influência sobre o presente” (p. 80). Integrando e organizando espaço e tempo da comunidade, fundamento o anterior, o agora e o que pode vir. Baseados na compreensão do mundo entre o preconceito, a religião e os costumes e na cultura tradicional, elevamos o poder da cultura oral, das coisas do passado e dos valores das gerações anteriores. Não podemos afirmar ser negativa a aderência com a tradição, podemos analisar como um momento transacional entre o que foi, o que é e o que será. Para Giddens (1997), não há um corte intenso, uma ruptura, ou articula uma descontinuidade.

O tradicional envolve um ritual, como maneira de preservar a memória coletiva e as verdades do tradicional. O ritual reforça as noções do dia a dia, reafirmando, assim, a consciência coletiva, instigando a obediência aos ditos morais comunitariamente definidos e recompondo o vínculo que une a comunidade. Ele tem um campo e uma linguagem únicos e uma “verdade em si”, ou seja, uma “verdade formular”, não dependente das “propriedades referenciais da linguagem”. Assim

“a linguagem ritual é performática, e às vezes pode conter palavras e práticas que os falantes ou os ouvintes mal conseguem compreender [...] A fala ritual é aquela da qual não faz sentido discordar nem contradizer – e por isso contém um meio poderoso de redução de possibilidade de dissenção”(GIDDENS, 1997, p. 83).

A “verdade formular” necessita do ser que o decifre, o pajé, o padre, o guardião aquele que tem o status, isto é, o que se posiciona na ordem tradicional. Assim, diferente do perito, como Giddens (1997) articula, na sociedade moderna, o especialista, o conhecedor é algo divino, onipresente, que está presente na crença e no misticismo.

A tradição é impensável sem guardiães, porque esses têm um acesso privilegiado à verdade; a verdade não pode ser demonstrada, salvo na medida em que se manifesta nas interpretações e práticas dos guardiões. O sacerdote, o xamã, pode reivindicar ser não mais que o porta-voz dos deuses, mas suas ações de facto definem o que as tradições realmente são. As tradições seculares consideram seus guardiães como aquelas pessoas relacionadas ao sagrado; os líderes políticos falam a linguagem da tradição quando reivindicam o mesmo tipo de acesso à verdade formular”(GIDDENS, 1997, p.100).

Somente os iniciados têm a verdade inteligível. O guardião mantém a verdade acessível àqueles que mantêm a verdade manifesta por ele, mantendo assim o seu poder. O não iniciado, o outro é excluído, a “verdade formular” é interdita e não poderá compartilhar a verdade do ritual. O autor ao mencionar a construção da identidade do “eu”, o ritual é algo acionado, divergido do “ouro” em questão.

Como fica, então, o ritual nas sociedades contemporâneas? No nosso caso, é reordenado, rearquitetado. O guardião passa a ser o especialista, o perito, a transição entre o tradicional e o contemporâneo, o moderno reinventa e a partir daí há uma

continuidade. No caso, os padrões culturais, sociais, econômicos e religiosos, vejamos o que a palavra da bíblia coloca, podem ver abaixo:

[...] casamento até a morte os separe, a mulher é criada da costela do homem, "A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição”. 1 Timóteo 2:11, "Porque o homem não provém da mulher, mas a mulher do homem". 1 Coríntios 11:8; Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio". 1 Timóteo2:12;"Porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo"; "Portanto, se a mulher não se cobre com véu, tosquie-se também. Mas, se para a mulher é coisa indecente tosquiar-se ou rapar-se, que ponha o véu". (1 Coríntios 11:6) "Mas ter a mulher cabelo crescido lhe é honroso, porque o cabelo lhe foi dado em lugar de véu” (1CORÍNTIOS 11:15)98.

A sociedade moderna enfatizou a construção de novas formas de interação social, novas sociabilidades, e outras formas de manutenção desses processos interacionais. Giddens (1991) articula a relação entre a existência de uma conexão direta entre as tendências globalizantes da modernidade e a transformação da intimidade nos contextos da vida cotidiana. Como exemplo disso, temos a judicialização, que promove uma autorização dos sistemas jurídicos e policiais para intervir nas relações intimidade dos sujeitos na sociedade. Assim, Giddens (1991) ao analisar os processos de continuidade e descontinuidade da sociedade moderna, demarca observações de ampliação das instituições sociais:

A modernidade pode-se dizer, rompe o referencial protetor da pequena comunidade e da tradição, substituindo-as por organizações muito maiores e impessoais. O indivíduo se sente privado e só num mundo em que lhe falta o apoio psicológico e o sentido de segurança oferecidos em ambientes mais tradicionais (GIDDENS, 2002, p. 38)

Na transição dos padrões tradicionais para a sociedade moderna, ele observa que vivemos um descontrole, um desequilíbrio entre o que está proposto, através de uma desorientação que não entendemos plenamente, e a organização social imposta. Falo, principalmente, das leis que foram criadas após a Constituição de 1988, no caso, o Estatuto da Criança, e o Estatuto do idoso, Lei Maria da Penha, entre outras. Esse período transformou o homem personalista em sujeito individual e coletivo.

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Disponível em: <http://www.paulopes.com.br/2011/05/biblia-e-tao-machista-quanto-o- corao.html#.ViE-qOxVikp>. Acesso em: 16 out, 2015.

Ao focalizar mecanismos de confiança intimamente relacionado à construção do eu como um projeto reflexivo. O indivíduo constrói várias expectativas diante dessa “identidade do eu”.

Giddens (1992) analisa a confiança do indivíduo em sistemas abstratos, ou seja, sistemas com os quais cotidianamente e não necessitam de um conhecimento profundo de nossa parte sobre o seu funcionamento — instituições da sociedade. Para o autor, confiamos nos peritos, especialistas que contribuem para maximizar a confiabilidade da segurança cotidiana.

Para esse mesmo autor, estamos vivendo uma nova ordem pós-moderna, com novas tecnologias e novas formas de atuação, mas diferente do que é considerado pós- modernidade atualmente, trazendo consequências.

Em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes. Além da modernidade, devo argumentar, podemos perceber os contornos de uma ordem nova e diferente, que é pós-moderna, mas isto é bem diferente do que é atualmente chamado por muitos de pós-modernidade (GIDDENS, 1991, p. 12,13).

O autor entende por sistemas abstratos aqueles “de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes aéreas dos ambientes material e social em que vivemos”, criando, assim, grandes áreas de segurança relativa para a continuidade da vida cotidiana (GIDDENS, 1991, p.126). Já por descontinuidade podemos entender como o ritmo da mudança, o escopo da mudança e a natureza das instituições modernas.

Diante disso, os sistemas peritos (abstratos) atuam como mecanismos de desencaixe (GIDDENS, 1991, p. 29). “Por desencaixe me refiro ao deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço” (GIDDENS, 1991, p.29); Esse desencaixe retira a atividade social dos contextos localizados, reorganizando as relações sociais através de grandes de grandes distâncias tempo-espaciais (GIDDENS, 1991, p.58), em contraste ao fato de que confiança pressupõe fé em princípios impessoais, que retrucam apenas de uma perspectiva estatística e não cumprem com os resultados buscados pelo indivíduo

nos pontos de acesso que se esforçam para se mostrar confiáveis. Eles proporcionam o elo entre confiança individual e o sistema legal, através da descontinuidade.

Podemos perceber essas mudanças por meio das possiblidades de instituições99 criadas a partir da criação da Lei nº 11.340, diante das três dimensões interpretativas normativo-penal, nominativa e protetiva (MACHADO, 2014).

Entre outras falas está o serviço da polícia em relação ao atendimento do conflito conjugal, quando várias mulheres relatam a demora no atendimento, a falta da prisão em flagrante ou como soltar o agressor após a prisão.

Não ele...toda vez que ele bebia e usava droga ele queria me espancar, entendeu? Só que eu nunca curvei não. Eu sempre reagi, ou eu ia pra cima, sempre eu ia pra cima, mas aí uma vez chegou ao ponto de, eu vi que tava no limite, ou eu mandava matar ele ou ele ia me matar. Aí eu resolvi vir ate aqui [Delegacia da Mulher] porque até então é como eu disse, a mulher ela tem uma visão tão negativa, que não dá em nada, que não funciona, que às vezes ela resolve não vir e quando ela vem é porque ela já tá realmente nas últimas (Interlocutora, Delegacia da Mulher Fortaleza).

Em encontro proporcionado pela Promotoria Pública da região Norte e em entrevistas realizadas com policiais em Fortaleza, percebi o despreparo em relação à questão do conflito íntimo. A interlocutora, ao ser demanda se achava protegida pela polícia, relatou:

Não, em hipótese alguma. Porque além de ser lento – não que aqui as mulheres aqui não façam um trabalho bem feito, né? Porque elas aqui fazem o trabalho que é pra ser feito – mas é porque a Justiça, ela é lenta, né? Então assim, muitas vezes a mulher chega ao ponto de das duas uma: ou se submeter àquelas ameaças pela demora e acaba cedendo por conta das ameaças – a qual muitas vezes por isso elas são chamadas de sem vergonha, porque voltam, mas na verdade talvez seja o medo - ou por outras elas realmente cai na fragilidade e acaba retirando a queixa porque acha que tá demorando muito” (Interlocutora, 36 anos, Delegacia da Mulher).

Não sei como ele não me matou, eu apanhei do meu filho... Aí eu só sei que me levantaram, uma amiga minha me levantou, e um rapaz disse assim: “Que foi, tá louco, batendo aí na sua mãe,...” e nisso. Aí não sei quem quis chamar a polícia, e eu disse, eu caí: Não, não chama a polícia não, diz que foi ela que caiu”. Eu e meu marido não queria confusão, “Deixa, não foi nada, não foi nada...”. Aí veio uma prima minha, o marido dela é militar, mas é

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Entendemos como as principais instituições a Delegacia de Defesa da Mulher, o Juizado Especial da Mulher em Situação de Violência, os Centros de Referência de Atendimento da Mulher em Situação de Violência e Casa Abrigo.

aposentado. Aí ele disse que precisava chamar a polícia, mas no mesmo instante a polícia chegou. Aí a polícia perguntou com quem que eu estava acompanhada, e minha amiga respondeu que eu estava acompanhada do meu esposo, e que eles me levassem pro hospital e cuidassem do meu esposo porque ele é doente. Aí o policial disse: “é o seguinte, levar ela pro hospital tudo bem, mas trazer eu não posso”. E aí o marido da minha prima disse: “Podem levar ela, levem vocês ela pro hospital porque daí ela chega lá e já é atendida.”. Porque eu estava toda cheia de sangue, toda, toda, toda. E ele disse que poderiam me levar que ele se encarregava de me buscar. E ainda hoje isso aqui na perna me dói, e eu já tinha problema no joelho, isso me dói muito, talvez tenha que fazer uma cirurgia. Mas ele, depois daquele dia, ele foi chamado na polícia, e lá no juizado, a juíza pediu pra ele ir pro ALANON e depois disso tô esperando ele melhorar[...] (Interlocutora , 63 anos, Centro de Referência, 11.1.2013)100.

A Lei Maria da Penha acionou uma realidade dramática de filhos envolvidos com drogas, principalmente o crack. As narrativas de violência determinam que a relação afetiva ultrapassa o conjugal, mostrando a realidade dessa mãe ao expressar a violência na família. A interlocutora constrói um subterfúgio para não revelar que tinha sido agredida pelo filho, acobertando a situação de violência. Ao evitar levar a público a agressão, o desejo dela e do marido reflete na tentativa de resolver a questão privadamente revelando, assim, que as mulheres agredidas mantêm em segredo a relação de violência doméstica. Mesmo assim, ainda existe uma representativa parcela da população feminina que denuncia a violência. Para que essa mulher possa acreditar em si mesma é necessário um poder de agência (GIDDENS, 2003;LAURENTIS, 1994; FRASER, 1995; STRATHERN, (2004) que a torne indivíduo (sujeito de direitos) na sociedade, a fim de que a lei possa alcançá-las.