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“[...] a memória é a costureira, e costureira caprichosa. A memória faz a sua agulha correr para dentro e para fora, para cima e para baixo, para cá e para lá. Não sabemos o que vem em seguida, o que virá depois.”

(MEIRELES, 1978, p. 44)

1.2.1 História de mim e a história do outro: um percurso nas Ciências Sociais

A memória não faz suas costuras muito retas, mas assume um sentido nem sempre claro, provoca arremates repentinos, refaz caminhos sinuosos e anda de viés, muitas vezes. Falar, aqui, sobre a escolha de meu objeto é algo bastante tenso, pois ao falar, ou melhor, escrever, encontro-me com algo que, muitas vezes, quero altear. Mas tudo que é sublimado pode ser recalcado, e o recalque sempre retorna.

Nasci na década de 1970, filha mais nova de uma família de cinco: meus pais e meus dois irmãos (um menino e uma menina). Em nossa criação, os papéis eram definidos: meu pai trabalhava e minha mãe cuidava da casa. A partir de certo tempo, desde a minha infância, minha mãe teve crise de reumatismo e de tempos em tempos elas apareciam. Devido à artrite e à artrose, suas articulações ficavam bastante inchadas, fazendo com que meu pai realizasse vários afazeres do universo feminino. Ele lavava, cozinhava, penteava nossos cabelos, fazia lindas tranças embutidas com lindos laços de fita, dava nosso café, que, na realidade, era bananada (até hoje sou traumatizada só por sentir o cheiro!), mas não interessava: tinha de sair alimentada, além de deliciosos bolos de banana, um prazer...

Mas, apesar de tudo isso, a criação entre os irmãos era diferente: menina em casa, menino na rua, menino é pra ser “macho”, e apesar de nos rebelarmos muito, meu pai e minha mãe nos “seguravam”. Quantas vezes não escutei: “menina de boa família é para estar dentro de casa”. Meu irmão, muito traquinas, sempre arranjava um jeito para exigir os direitos que, um dia, foram dados a ele sem eu nem saber o porquê. Outra relação costumeira era ele querer nos agredir: “as meninas”, pois o irmão mais velho manda. Mesmo assim meu pai, ajudando minha mãe, não queria que seu filho perdesse o símbolo do “macho”, do mando, da obediência. Sei que ele aprendeu a ser assim, mas em comparação ao nosso pai, poderia ser algo diferente.

Construí minha subjetividade através dessas situações. No ensino médio, era do movimento estudantil. Fiz Ciências Sociais e, já na faculdade, avivavam-me, mais ainda, as questões de poder, violência e gênero. Fui bolsista do Laboratório de Estudos da Violência (LEV). Trabalhei com violência, sendo minhas duas paixões gênero e violência. Apesar disso, queria muito aprender e, a partir daí, as questões de gênero foram se intensificando no meu aprendizado.

Meu percurso pessoal, a partir da graduação em Ciências Sociais, nem tão logo deixou claro minha costura de vida. No entanto, ao aproximar-me do recorte dessa tese, revi que a linha dessa costura mostrava o tema da violência e do feminino como campos dialógicos que fui percebendo sempre recorrentes. Assim é que após concluir o curso de graduação em Ciências Sociais, ao escrever a monografia “Meninas: mulheres, histórias de violência no contexto da rua”3

, observei que parti de uma situação-limite: o estudo das figuras femininas que corriam risco pessoal e social por estarem em situação de rua (ZARANZA, 1996). Em minha vida, contudo, sempre chamava minha atenção o que levava as pessoas a esse campo tenso da violência. Meu pai, sendo um amoroso pacificador do mundo relacional de minha família, mostrou-me as possibilidades do diálogo de um modo tão rico, que eu via com enorme estranhamento a violência que, no mundo, fui vivenciando. A dificuldade que tive de compreender como se recorre à violência de modo tão naturalizado levou-me a estranhar o fato de tal maneira que, por caminhos diversos, cheguei a concebê-lo como tema central de pesquisa em minha vida.

Assim, na especialização trabalhei com a violência doméstica contra crianças e adolescentes no Laboratório de Estudos da Criança (Lacri/Psicologia/USP), com orientação de Maria Amélia Azevedo.

Já no mestrado em Sociologia, na Universidade Federal do Ceará, tendo como orientador o professor César Barreira, minha pesquisa teve como objeto a visita íntima no presídio Auri Moura Costa. Nessa pesquisa, ao revelar-se a visita como direito da presa, desvelava-se o espaço prisional e buscava-se entender como se manifestava a sexualidade feminina encarcerada.

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Durante a minha graduação, fui bolsista do Laboratório de Estudos da Violência, o que me oportunizou receber uma bolsa de aperfeiçoamento do CNPq, momento em que vivenciei maior aproximação com a pesquisa de campo, que considero uma necessidade para o desenvolvimento do profissional de pesquisa em qualquer área acadêmica.

No doutorado, no presente estudo, torno a estudar mulheres, agora em um contexto relacional de parceria conjugal com o homem, quando em um espaço-tempo determinado, a mulher aciona a Lei Maria da Penha.

O percurso nas Ciências Sociais demonstra, pois, várias direções em que violência e gênero comparecem nos objetos de estudo escolhidos desde a graduação, a especialização4, o mestrado5até o doutorado6.

Minhas principais indagações de pesquisa, contudo, tiveram intenso diálogo com o trabalho que desenvolvi no Centro de Referência da Mulher em Situação de Violência7, onde eu orientava as mulheres que buscavam atendimento tanto na Delegacia de Defesa da Mulher quanto no Juizado Especial da Mulher, além de ser responsável pelo Observatório da Violência Contra a Mulher 8

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No início da gestão da Fortaleza Bela (entre 2006 a 2013), trabalhei por seis anos no Centro de Referência Municipal Francisca Clotilde, permanecendo até 2011. Esses foram anos de intenso aprendizado, tanto em trabalho de violência, quanto em trabalho em rede, multi e interdisciplinar. Devido os casos atendidos necessitarem de um olhar para além de um profissional específico, o trabalho no CRM aconteceu em razão de minha experiência teórica em assuntos ligados à violência quando trabalhei no LEV.