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A leitura aspectual das situações não depende exclusivamente da forma verbal (aspecto gramatical), mas sim da sua interação com outros marcadores aspectuais, como o aspecto inerente do verbo e modificadores adverbiais. Considerando a pro- posta de classificação do aspecto imperfectivo e a de classificação do aspecto inerente, nesta seção, é discutida uma proposta para a leitura composicional do aspecto. O ro- teiro para a leitura aspectual adotado segue o proposto por Wachowicz (2003), e con- sidera primeiramente as estruturas intransitiva e transitivas, que constituem o nível interno da aspectualidade. Posteriormente, analisam-se as modificações adverbiais, no nível da aspectualidade externa. As aspectualidades interna e externa compõem a aspectualidade da estrutura; para além da estrutura, há o contexto. A aspectualidade da estrutura é a que pode ser mensurada. Já a influência do contexto, segundo Wa- chowicz, pode apenas ser observada, por meio de inferências, já que não é possível recuperar o que se passava na mente do falante no momento da enunciação.

O contexto tem um papel fundamental na determinação das leituras aspectuais do imperfectivo. Wachowicz descreve a composição aspectual até o plano da com- plementação adverbial, deixando o contexto como plano capaz de resolver toda ambi- güidade, mas que não foi sistematizado, uma vez que o estudo tomou como limite de análise a sentença. A proposta de análise considera a noção composicional de aspecto (Verkuyl, 1993), o que significa que uma frase como João plantou uma árvore pode ter leitura episódica no nível da frase, mas no contexto pode ter valor habitual.

No nível da aspectualidade interna, operam o aspecto inerente ao verbo, con- forme a proposta de Bertinetto (2001), que define as classes acionais quanto às pro- priedades de homogeneidade, duratividade e dinamicidade, cujas operações foram discutidas na seção anterior, e o aspecto gramatical expresso pela forma, no caso es- pecífico, IMP e PPROG.

No nível da aspectualidade externa, operam os modificadores adverbiais. Ad- vérbios pontuais são relacionados à expressão do valor episódico. Já o valor iterativo é expresso por advérbios quantificados, como algumas vezes, duas vezes, etc. Wa- chowicz (2003) afirma que advérbios quantificados são pouco recorrentes no corpus do VARSUL co-ocorrendo com a forma de progressivo. O valor habitual é expresso pelo advérbio sempre. Os modificadores ainda operam entre si, determinando outros valores aspectuais. Observem-se as operações entre modificadores na figura 10.

Figura 10: Operações de modificação aspectual

Todos os dias Durante uma semana De mês em mês

habitual episódico habitual

episódico

Wachowicz (op. cit. p. 58) resume da seguinte maneira a ordem de composição entre os marcadores aspectuais que resulta na leitura aspectual:

(i) O primeiro valor aspectual é o imperfectivo (qualitativo); consenso na lite-

ratura, embora haja contra-exemplos, como os verbos inerentemente ha- bituais;

(ii) Quanto ao critério quantitativo, as leituras aspectuais podem ser episódi-

ca, habitual ou iterativa;

1. episódica: em estruturas intransitivas, com verbos dinâmicos; em

estruturas transitivas, com o objeto direto constituído por nome que denote entidade com cardinalidade igual a 1, em estruturas com advérbios momentâneos ou aspectualizadores episódicos, ou na atuação do contexto;

2. iterativo (o que mais apresenta restrições): em estruturas transiti-

vas cujo objeto direto é constituído por nome que denote cardina- lidade maior que 1, e com modificadores aspectuais específicos;

3. habitual (menos restrições): em estruturas intransitivas, com ver-

bos estáticos ou dinâmicos e também com verbos lexicalmente ite- rativos. Em estruturas transitivas cujo objeto é constituído por en- tidade cuja cardinalidade não é especificada, em estruturas com modificações adverbiais aspectualizadoras específicas e também na atuação do contexto.

(iii) O valor permansivo independe do tipo de estrutura argumental: se o ver-

bo tem denotação estática, a leitura tende a ficar reduzida ao valor per- mansivo.

(iv) O argumento externo (sujeito), por não estar temporalmente ligado ao

verbo, não influencia na determinação aspectual.

(v) Os modificadores adverbiais podem atuar recursivamente nos valores as-

pectuais quantitativos.

(vi) O contexto é o último nível em que se pode interpretar o aspecto, desam-

bigüisando as estruturas.

Estas considerações são baseadas em análise descritiva da forma de progressivo (estar + gerúndio) no banco de dados do VARSUL. A metodologia de leitura conside- rou apenas o nível da frase, ou seja, do ponto ao ponto. Nesse caso, o contexto foi considerado apenas no plano hipotético. Wachowicz ilustra alguns casos em que é preciso postular hipóteses para a desambigüação, dos quais foram recortados especi- ficamente os casos em que ocorre PPROG (estarIMP + gerúndio) – cujas explicações podem ser estendidas ao IMP –, apresentados a seguir.

(1)

Nós estávamos disputando aquela partida no nosso campo mesmo. (op. cit. p. 56) A autora sugere que a forma de PPROG pode ser ambígua entre uma leitura epi- sódica e uma leitura habitual. Para determinar a leitura habitual, é preciso construir um mundo em que dois técnicos de futebol estão conversando sobre uma partida de- cisiva dos campeonatos anuais, um clássico do futebol local: “nesse sentido, aquela

partida deixa de ter denotação específica e passa a ter uma leitura genérica: todas as

disputando aquela partida no nosso campo todos os anos)”. A base de análise para o estudo de Wachowicz foi o corpus do VARSUL; o excerto analisado pertence à amos- tra da cidade de Curitiba. Ampliando o contexto, a única leitura possível é a episódi- ca/progressiva:

(2)

E Alguma coisa assim que, tipo assim: “Ah, essa eu nunca mais esqueci”?

F Não, tem uma vez que nós estávamos disputando torneio no nosso campo mes- mo. Então daí eu tinha um primo, que jogava de zagueiro, e aconteceu do cara chutar uma bola e ele cabeceou ela contra meu gol e eu estava saindo buscar ela num canto e ele me põe no outro canto. Quase me desmontou, entende? Fiquei quase uma semana com torção nas costas! E Nossa! (PR CRT 01)

(3)

Era dez e pouco, onze da manhã, estava dormindo tranqüilo. (op. cit. p. 56)

A autora também busca para o excerto (3) uma leitura habitual: “pode-se imagi- nar uma criança (ou pré-adolescente?) de 11/12 anos que passou da 4a série (que fun-

ciona em seu colégio no turno da tarde) para a 5a série (que funciona no turno da ma-

nhã). Ao conversar com um amigo, essa criança pode se queixar que agora não dorme tanto quanto antes e que, com a frase, ela relate seus hábitos passados de sono (Era

dez e pouco, onze da manhã, sempre estava dormindo tranqüilo).” (op. cit. p.56)

(4)

Oito horas da noite, eu estava fazendo janta, mas também foi só essa vez só e aca- bou.

Neste caso, de acordo com Wachowicz (op. cit., p. 57), a expressão dêitica essa

vez é responsável por definir a leitura episódica da situação, barrando a atuação do

contexto para determinar uma leitura habitual. A frase (4) faz referência a uma situa- ção específica, o que é indicado pela expressão dêitica ou informação de data (Ela

estava fazendo janta no dia 25/11/1999, às 20h).

Não foram encontradas ocorrências de PPROG, na amostra de Florianópolis, com o valor habitual, constatação que leva à escolha metodológica de excluir esse va- lor da análise, como já anunciado e discutido na seção a seguir.

Como já dito na introdução, a ambigüidade aspectual no domínio do imperfecti- vo no português é tema de estudo de Travaglia (1981) e Matos (1996), que apontam que, em alguns contextos, o IMP é aspectualmente ambíguo entre o valor episódico (progressivo/durativo) e o valor habitual. Segundo Matos (op. cit.), uma frase como O

Rui trabalhava muito pode remeter a uma interpretação habitual, imaginando-se o

contexto “O Zé sempre foi um preguiçoso, o Rui trabalhava muito”, ou seja, Rui tinha o hábito de trabalhar; ou episódica, com o contexto “No ano passado, o Rui trabalha- va muito”. (op. cit., p. 441).

Travaglia (1981) também aponta a ambigüidade aspectual do IMP, pois a forma pode codificar situações episódicas ou habituais, muitas vezes tornando a frase ambí- gua aspectualmente. Para Travaglia (op. cit.), Ele falava às 10h tanto pode ter uma interpretação episódica (Ele estava falando às 10h), como habitual (Ele sempre fala-

va às 10h). Travaglia sugere que, em Ele falava às 10h, a interpretação mais intuitiva

ção, tende a utilizar a forma de passado progressivo (PPROG), como em (Ele sempre

falava às 10h). Corôa (2005, p. 84-85) discute a equivalência/ambigüidade de IMP e

PPROG.

(5)

Eu abria a janela quando o carteiro chegou. (6)

Eu estava abrindo a janela quando o carteiro chegou.

De acordo com Corôa, tanto (5) como (6) podem descrever o mesmo fato objeti- vo, mas para descrever algo que não era hábito acontecer, (6) é mais adequada do que (5), pois capta mais a coincidência de abrir a janela e chegar o carteiro. Ainda segun- do a autora, (5) necessita de um contexto maior, em que são narrados outros aconte- cimentos, por exemplo; já em (6), as situações se completam sem ser necessário pen- sar em outro contexto.

Tome-se o seguinte caso:

(7)

E no final do terreno, eu me lembro que morava uma família, então o meu avô dizia que a família não era muito, assim, muito digna, assim, muito assim, né? Que eles e- ram meio pinéis, assim, porque eles tinham tomado conta da casa e não queriam sair. E o meu avô estava brigando com eles, né? Mas diziam que eles não eram bem certos, assim. Ah, pois era pra lá que nós íamos. (SC FLP FAP 01)

A situação de estar brigando em (7) pode remeter a duas possibilidades de lei- tura:

(i) que ele brigou com um deles de cada vez.

(ii) que ele brigou com os todos juntos ao mesmo tempo.

Considerando que o intervalo temporal da briga é determinado (pode ser inferi- do que a situação de brigar deu-se no momento da infância da falante), em i), a situa- ção é iterativa, pois pressupõe uma seqüência de micro-situações que compõem a macro-situação, e em ii), a situação é durativa, no sentido que a briga está em desen- volvimento e pressupõe um intervalo temporal com extensão. 25

25 Vejam-se os resultados da aplicação de um teste de atitude sobre este excerto, em uma turma de Fundamentos Gramaticais (1ª fase/UFSC), com 42 sujeitos. Com base no excerto (7), os sujeitos fo- ram convidados a assinalar, dentre as opções a seguir, aquelas que mais lhe parecessem adequadas:

a) que ele brigou, uma única vez, com um de cada vez. b) que ele brigou, uma única vez, com todos juntos. c) que ele brigou, mais de uma vez, com um de cada vez. d) que ele brigou, mais de uma vez, com todos juntos. e) que ele brigou, e continua brigando, com um de cada vez. f) que ele brigou, e continua brigando, com todos juntos.

Primeiramente, foi consenso que a situação de o avô estar brigando se dava com todos juntos, ao mesmo tempo. O número de brigas é que é variável, determinando aspecto durativo (percepção de uma única situação) ou iterativo (recorrência de micro-situações que compõem a macro-situação). E a grande maioria dos analistas interpretou a situação como em andamento (ele brigou e continua brigando até hoje), pois há falta de uma pista discursiva de que a situação está acabada no momen- to atual.

Qual seria o valor aspectual escolhido pelo falante? E qual foi o valor aspectual percebido pelo ouvinte? E o analista, quantos valores aspectuais consegue depreen- der? Pensando nessa possibilidade, Mendes (2005) sugere que, em certos contextos, não é relevante no tópico comunicativo distinguir o valor aspectual, gerando casos de ambigüidade, como já discutido em 1.1.2.