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Relações entre gramaticalização/mudança e variação no âmbito evolutivo e da sócio-

1.4 G RAMATICALIZAÇÃO , VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGÜÍSTICA

1.4.2 Relações entre gramaticalização/mudança e variação no âmbito evolutivo e da sócio-

No âmbito evolutivo, a aproximação entre a teoria da variação e mudança e o paradigma funcional da gramaticalização se dá em mão dupla. Os pressupostos da gramaticalização podem auxiliar a teoria variacionista a explicar as motivações ine- rentes ao sistema, que propiciam o desencadeamento de um processo de variação que pode vir a culminar em mudança, enquanto os pressupostos da teoria variacionista podem elucidar o modo como o processo se instaura e se consolida em uma dada co- munidade lingüística.

Partindo da premissa de que a gramaticalização não pode ser considerada como um processo à parte dos indivíduos, Janda (2001) sugere que a tendência persistente de gramaticalização ao longo de gerações pode ser mais bem analisada a partir de um modelo que focaliza as relações entre gerações em uma comunidade de fala. Uma vez que dada forma é inicialmente gramaticalizada, devido às mudanças semântica e fo- nética e à reanálise, sua generalização pode ser parcialmente dinamizada pela função social do grupo etário. A generalização é motivada sociolingüisticamente por gerações sucessivas, o que permite ao fenômeno da gramaticalização evidenciar uma graduali- dade aparente e uma direcionalidade predominante, apesar da transmissão descontí- nua ao longo do tempo.

No modelo variacionista, essa abordagem se aproxima do que Labov (1994) de- nomina de mudança geracional, na qual falantes individuais entram na comunidade de fala com uma freqüência característica para uma variável particular, mantida ao longo de suas vidas, incrementada por gerações, mas aumentos regulares nos valores adotados pelos indivíduos sucessivamente mais jovens, freqüentemente incrementa- dos por gerações, levam à mudança lingüística na comunidade.

Seguindo a hipótese de Bybee (2003a), as trajetórias universais de mudança a- pontam para a possível existência de um componente cognitivo, subjacente às lín- guas, que direciona as mudanças em certos domínios funcionais. E essas trajetórias não são apenas trajetórias de gramaticalização, mas sim universais lingüísticos. Se o modelo variacionista aceita os universais de mudança fonética, como evidenciam os estudos pioneiros de Labov, e se é possível estender a noção de mesmo significado para mesma função, as trajetórias universais de mudanças semântico-discursivas

também podem ser aceitas pelo modelo variacionista. Nesse sentido, a gramaticalização é um processo de mudança sociolingüística. A existência de uma

trajetória universal de mudança não garante, por si só, que a mudança de fato ocorra. Faz-se necessário também identificar as pressões sociais que desencadeiam a mudan- ça cognitivamente latente.

A possibilidade de aproximação entre a abordagem variacionista e a gramatica- lização foi alentada por William Labov. No primeiro volume de Principles of linguis-

tic change, Labov (1994, p. 1) arrola a gramaticalização como um dos temas a ser tra-

tado no volume 3, destinado aos fatores cognitivos: o efeito da mudança na compre- ensão dentro e além dos dialetos; a aquisição e transmissão das regras variáveis; os princípios de mudança sintática e gramaticalização; as formas das regras variáveis e o

seu lugar na gramática. Porém, na introdução do volume 2, Labov (2001, p. xiv) re- formula a proposta de trabalho para os fatores cognitivos atuantes/desencadeadores da mudança lingüística e elimina a referência à gramaticalização. Como o volume destinado aos fatores cognitivos ainda não foi publicado, resta esperar o posiciona- mento de Labov acerca da gramaticalização em relação à sociolingüística.

A aproximação entre a abordagem variacionista e a gramaticalização vem sendo discutida na análise de fenômenos que têm comportamento variável nos níveis gra- maticais mais altos. O sociofuncionalismo é uma proposta de acoplamento de postu- lados da sociolingüística variacionista e dos estudos de gramaticalização. Resumida- mente, na abordagem sociofuncionalista, as funções gramaticais são determinadas pelo uso dos falantes. A gramática é emergente, sujeita a constantes mudanças decor- rentes do uso dos falantes. O enfoque da abordagem está nas relações entre funções e formas, resultantes de pressões lingüísticas e sociais, com destaque para a história e a coexistência de diferentes formas, situação de estratificação/variação (Hopper, 1991). Existem estágios de gramaticalização, pressupondo que a estratifica- ção/variação decorre do percurso de gramaticalização.

Um ponto ainda a descoberto na abordagem sociofuncionalista é o modo de como tratar o fator freqüência de uso. O estudo de fenômenos de variação/mudança lingüística na perspectiva laboviana costuma estar pautado em resultados estatísticos, tanto que essa linha de pesquisa também é conhecida como sociolingüística quantita- tiva (Tarallo, 1985). Os estudos de gramaticalização que adotam a perspectiva socio- funcionalista não costumam considerar a freqüência de uso para o estabelecimento de trajetórias diacrônicas.

Outro problema refere-se ao modelo estatístico adotado. Estudos de fenômenos ditos em gramaticalização que adotam a perspectiva sociofuncionalista se valem, in- clusive, do modelo de regressão logística adotado na sociolingüística variacionista, que considera uma variável dependente discreta. No entanto, estudos de gramaticali- zação nem sempre lidam com variáveis discretas; ao contrário, a gradualidade pres- supõe continuidade, tanto no plano semântico-discursivo quanto no plano formal. O uso de um modelo estatístico inadequado pode levar a interpretações equivocadas. Além disso, a freqüência de uso só é utilizada como fator explanatório para a fatia sincrônica, momento da variação. Já outros estudos limitam-se a encontrar ocorrên- cias que evidenciem a hipótese de gramaticalização.28

A questão a ser discutida no modelo sociofuncionalista é se uma ocorrência de uma dada função pode ser considerada indício de gramaticalização incipiente. O mesmo paralelo pode ser traçado com a sociolingüística. Uma ocorrência de uma va- riante não é indício de variação. Se o sociofuncionalismo pretende ser coerente com

28 Para definir a trajetória de mudança semântico-pragmática e sintática percorrida por e, aí, daí e então, Tavares (2003, p.140) não considera dados quantitativos, enfatizando que o objetivo não é quantificar ocorrências, mas sim mapear funções. Para contraponto, trago a opinião de Nevalainen (2004), que distingue dois tipos de gramaticalização: a) tipo dinâmico, que envolve mudança dia- crônica e resulta em alterações drásticas nas freqüências da construção em questão no discurso; e b) tipo estático, que é melhor descrito como uso ocasional de material lexical e não é freqüente. A- penas o mapeamento de funções não permite a distinção entre gramaticalização dinâmica (proces- so) e estática. Faz-se necessária uma análise quantitativa.

as teorias-mães, deve considerar a freqüência de uso da função (dimensão quantitati- va), e não a ocorrência (dimensão qualitativa). Estudos de gramaticalização fazem o caminho diacrônico da forma/função em processo de gramaticalização para evidenci- ar a trajetória. Qual o critério para o estabelecimento da trajetória? A ocorrência ou a recorrência? Uma ocorrência de uma dada função não significa que aquela função existe/existia e a freqüência de uso deve ser adotada como critério definidor de fun- ção.

No âmbito da sócio-biolingüística, a gramaticalização toma lugar no momento evolutivo em que ocorre a replicação, com caráter inovador, e que subsidia a variação,

layering na terminologia de Hopper (1991), camadas coexistentes. A evolução no

modelo darwiniano é uma proposta linear, uma seqüência contínua de ancestrais e descendentes. Gould (1992) compara-a a um modelo de ‘escada’. Porém, as análises de fósseis do Homo sapiens feitas por Gould sugerem a visão de um modelo em ‘ar- busto’, com o argumento de que três linhagens de hominídeos coexistiram e que, por- tanto, a evolução não ocorre de forma linear e sim com ramificações laterais. Há cerca de 100 mil anos, havia três humanidades: o Homo sapiens em grandes áreas da Áfri- ca e da Ásia, na Europa o Homo neandertal e os Homo erectus remanescentes em Java. O Homo sapiens foi o vencedor, no final.

Transpondo ao plano da língua, a ocorrência de camadas (estratificação) e a possibilidade de diferentes trajetórias para um mesmo item (divergência) – o que alguns autores denominam de poligramaticalização – são evidenciais do modelo e- volutivo.

De acordo com o modelo evolutivo de Croft (2000), a seleção é social, mas a re- plicação alterada é motivada funcionalmente, respondendo ao critério da unidirecio- nalidade, ou seja, a replicação alterada dá-se em uma direção motivada funcional- mente, em termos do concreto ao abstrato, do menos ao mais gramatical. Apesar de ser um processo predominantemente social, a seleção pode ser funcionalmente moti- vada pela mudança histórica e pela variação translingüística existente, o que leva a

universais de mudança lingüística (Bybee, 2003a).

Recuperando a discussão deste capítulo, a expressão variável do passado imper- fectivo no português:

ƒ É um fenômeno semântico-discursivo cujas motivações pretendem ser busca- das no nível lexical, morfossintático e discursivo. O estudo da variação nos ní- veis gramaticais mais altos se depara com problemas relacionados à freqüên- cia, equivalência semântica e necessidade de interface teórica.

ƒ Encontra respaldo analítico em uma explicação funcional que concebe a língua como um produto da adaptação biológica, no sentido darwiniano, cuja intera- ção com o modelo da variação e mudança resulta em uma abordagem evoluti- va, aqui denominada de sócio-biolingüística, na qual a replicação alterada (sur- gimento de novas formas) é motivada funcionalmente e a seleção das variantes ocorre no âmbito social.

ƒ É decorrente do processo de gramaticalização das formas IMP e PPROG cujas trajetórias (semelhantes às demais trajetórias do imperfectivo), em dado mo- mento, se superpõem originando polissemia, ambigüidade e a variação.

Para encaminhamento da análise, no capítulo 2, o domínio TAM é explorado para enquadrar a expressão do passado imperfectivo. No capítulo 3, os passos meto- dológicos para a análise sociolingüística do fenômeno são explicitados. No capítulo 4, os fatores semântico-cognitivos que atuam na escolha entre as formas são analisados, com ênfase para as determinações históricas e translingüísticas. A força da seleção social na variação entre IMP e PPROG na expressão do passado imperfectivo é discu- tida no capítulo 5. Finalizando, no capítulo 6, a expressão do passado imperfectivo motiva reflexões sobre a abordagem sócio-biolingüística, com base nos resultados do estudo variacionista.

2 O

DOMÍNIO TEMPORAL

-

ASPECTUAL NA EXPRESSÃO

DO PASSADO IMPERFECTIVO

Considerando a proposta de abordagem sócio-biolingüística para o fenômeno da expressão variável do passado imperfectivo por IMP e PPROG, o objetivo específico para este capítulo é o enquadramento do fenômeno como uma variável lingüística, ou seja, definir a função semântico-discursiva em que as formas funcionam como vari- antes de uma mesma variável lingüística.

Na prática, é impossível dissociar os domínios funcionais do tempo, aspecto e da modalidade. A expressão destes valores freqüentemente se sobrepõe, pois uma mesma forma, seja item lexical ou gramatical, pode ser responsável pela codificação de tempo, aspecto ou modalidade, sem ser possível dissociar um domínio do outro. Observe-se o caso do IMP: de acordo com as gramáticas normativas da língua portu- guesa, -va é a desinência modo-temporal de verbos regulares da 1a conjugação; não é

possível dizer que -v- é responsável pelo tempo e -a pelo modo. O conjunto é que as- sume valores de tempo, modo e aspecto, que interagem entre si. Por isso, por opção metodológica, os domínios funcionais são isolados, e os valores de IMP e PPROG são considerados no plano temporal e no plano aspectual: TAm.1

Primeiramente, a discussão é encaminhada para a busca de um nicho no para- digma verbal do português onde as formas IMP e PPROG se inserem para expressar o passado imperfectivo. Depois, os domínios do tempo e do aspecto são explorados com

1 A modalidade não é um valor saliente na expressão do passado imperfectivo. Considerando a oposi- ção realis/irrealis de Givón (1991) e a proposta de classificação de Heine (1995), o traço factuali- dade da situação apresenta três possibilidades:

(i) situação é fato;

(ii) situação não é fato, mas tem grande probabilidade de sê-lo;

(iii) situação não é fato, e nunca vai sê-lo.

Quando IMP e PPROG expressam passado imperfectivo assumem o valor de modalidade realis, factu- al. Entretanto, IMP pode assumir outros valores de modalidade factual, em certos contextos varia com outras formas verbais em que a expressão da modalidade é mais saliente, como o futuro do pretérito e pretérito imperfeito do subjuntivo (Silva, 1999, Domingos, 2004).

a finalidade de descrever as propriedades que IMP e PPROG assumem quando fun- cionam como variantes na expressão do passado imperfectivo.

Um esclarecimento preliminar é necessário: apesar de ser um valor aspectual do imperfectivo, a habitualidade fica excluída do recorte da variável expressão do pas-

sado imperfectivo; as motivações para a exclusão são detalhadas na seção 2.3.4.