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1.4 G RAMATICALIZAÇÃO , VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGÜÍSTICA

1.4.1 O paradigma funcional da gramaticalização

A gramaticalização, como proposta por Meillet (op. cit.), refere-se à passagem de uma palavra autônoma ao papel de elemento gramatical. Por exemplo, suis (1ª pessoa do presente do verbo être, no francês), é uma palavra autônoma em uma frase como Je suis celui qui suis. Em uma frase como Je suis chez moi, é uma palavra rela- tivamente autônoma. Já em Je suis malade ou Je suis maudit, suis é quase um ele- mento gramatical. E, em Je suis parti ou Je suis allé, suis não é mais 1ª pessoa do presente do verbo être, mas sim uma parte constituinte do passé composé. A forma, em todos os casos, é a mesma, mas as funções e o grau de abstração são diferentes. Esta é uma das concepções de gramaticalização dentro do paradigma funcional da gramaticalização, a partir da qual derivam outras:

ƒ Para Heine et al. (1991, p. 2), há gramaticalização quando uma unidade ou es- trutura lexical assume uma função gramatical, ou quando uma unidade grama- tical assume uma função mais gramatical.

ƒ Hopper e Traugott (1993, p. xv) consideram a gramaticalização como o proces- so por meio do qual itens e construções lexicais em um certo contexto lingüís- tico desempenham funções gramaticais, e uma vez gramaticalizados, continu- am a desenvolver novas funções gramaticais.

ƒ Para Traugott e Heine (1991, p. 4), gramaticalização é um tipo de mudança lin- güística, sujeita a certos processos gerais e mecanismos de mudanças, e carac- terizada por determinadas conseqüências, como a mudança na gramática. ƒ Gramaticalização, para Lichtenberk (1991, p. 38), é um processo histórico, um

tipo de mudança que tem determinadas conseqüências para as categorias mor- fossintáticas de uma língua e para a gramática desta mesma língua.

ƒ De acordo com Bybee e Hopper (2001, p. 13), a gramaticalização é o mecanis- mo pelo qual estruturas emergem a partir da língua em uso.

É comum às definições a noção de processo e mudança de estado da gramáti-

ca, mas sem aprofundamento sobre o que é a gramática, ou as gramáticas, já que há

mudança. A última concepção, de Bybee e Hopper, faz alusão à gramática emergente: não há gramática, mas gramaticalização, ou seja, ‘movimento em direção à gramáti- ca’, que nunca chega a se completar. Para Hopper (1987), a gramática é emergente e por isso as estruturas lingüísticas não podem ser aprioristicamente definidas, nem fixas. A estrutura da língua é moldada pelo discurso: assim, quanto mais utilizada uma construção, mais ela tende a se tornar estruturada. Estudos recentes compilados por Bybee e Hopper (2000) ressaltam a importância do papel da freqüência de uso na formação da gramática.

Também parece ser consenso entre os teóricos da gramaticalização que o movi- mento em direção à gramática é unidirecional. A unidirecionalidade da gramaticali- zação pode se dar tanto em termos de trajetória de abstração [pessoa > objeto > pro-

cesso > espaço > tempo > qualidade]25 (Heine et al., 1991), como em termos de deli-

mitação de fronteira, item lexical > morfema; discurso > morfossintaxe. O movimen- to em direção à gramática não ocorre por si só; atuam alguns mecanismos de mudan- ça lingüística tais como a metáfora (e analogia) e a metonímia (e reanálise). A reaná- lise e a analogia fazem com que a mudança seja possível, mas nenhum mecanismo está restrito à gramaticalização, e todos são independentes da unidirecionalidade (Traugott e Heine, 1991, p. 7).

Há outros ‘diagnósticos’ para a gramaticalização. Heine e Reh (1984 apud Heine et al. 1991), ao analisarem línguas africanas, constatam que, quanto mais gramaticali- zada uma forma:

ƒ menor complexidade semântica, significância funcional e/ou valor expressivo; ƒ menor valor pragmático e maior valor sintático;

ƒ mais reduzido o número de elementos pertencentes ao mesmo paradigma sin- tático;

ƒ menor mobilidade sintática;

ƒ mais seu uso torna-se obrigatório em alguns contextos e agramatical em ou- tros;

ƒ maior coalescência semântica, morfossintática e fonética com outras unida- des;

ƒ maior perda de massa fônica.

Lehmann ([1982] 2002) propõe seis parâmetros para medir o grau de gramati- calização de uma forma – integridade, paradigmaticidade, variabilidade paradig-

mática, escopo, vinculação, e variabilidade sintagmática – que estão relacionados à

atuação dos mecanismos de mudança.

Mas, dado que os mecanismos de mudança atuantes na gramaticalização podem atuar em outros tipos de mudança que não a gramaticalização, cabe questionar então como diferenciar essas atuações da gramaticalização propriamente. Hopper (1991, p. 22-23) propõe cinco princípios para a caracterização de um processo inicial de gra- maticalização.

(i) Estratificação: dentro de um domínio funcional, novas camadas emergem

continuamente. Quando isso acontece, as camadas velhas não são neces- sariamente descartadas, mas podem coexistir e interagir com as camadas novas.

(ii) Divergência: quando uma forma lexical se gramaticaliza em clítico ou afi-

xo, a forma lexical original permanece autônoma e suscetível a sofrer as mesmas mudanças que os itens lexicais comuns.

(iii) Especialização: dentro de um domínio funcional, em um estágio, é possí-

vel coexistir uma variedade de formas com diferentes nuanças semânticas.

25 O corpo humano, por exemplo, é conceito-origem para muitos conceitos “menos concretos”: pé da mesa, costas da cadeira, etc.

Com a gramaticalização, a possibilidade de escolha diminui e um número menor de formas assume sentidos gramaticais mais gerais.

(iv) Persistência: quando uma forma sofre gramaticalização passando de lexi-

cal a gramatical, alguns traços de seu sentido lexical original tendem a continuar, e detalhes da sua história lexical podem se refletir no condicio- namento da sua distribuição gramatical.

(v) Decategorização: a gramaticalização sempre envolve a perda de categoria

e prossegue na seguinte direção: nome e verbo > outra categoria, não o contrário.

Os princípios de Hopper sugerem que, com o surgimento de novas camadas dentro de um domínio funcional, as camadas (ou formas) velhas não são necessaria- mente descartadas, podem coexistir e interagir com as camadas novas, que retêm ves- tígios de um sentido lexical antigo. A forma lexical original permanece autônoma e sofre as mesmas mudanças que outros itens lexicais. E o morfema ou a construção que sofre gramaticalização migra de uma categoria menos gramatical para outra, mais gramatical. Hopper ressalta que esses princípios são gerais e aplicáveis a qual-

quer processo de mudança lingüística, e não exclusivamente à gramaticalização.

Outro aspecto relevante para a gramaticalização é a freqüência de uso. Meillet ([1912]1965) já salientava o papel da repetição na evolução das formas gramaticais, que direciona à habitualização: (i) a cada vez que um item lingüístico é empregado, seu valor expressivo diminui; e (ii) uma palavra não é entendida duas vezes com a mesma intensidade. Dos estudos pioneiros até o final da década de 1990, pouca aten- ção foi dada à análise quantitativa dos fenômenos de gramaticalização, inclusive as próprias definições de gramaticalização não previam o papel da repetição e do au- mento da freqüência de uso. Na concepção de gramaticalização proposta por Bybee (2003b), a repetição tem papel fundamental no processo, pois uma seqüência de morfemas ou palavras freqüentemente usada torna-se automatizada como uma única unidade no processamento. As conseqüências da repetição originam as propriedades que comumente são associadas à gramaticalização.

(i) A freqüência de uso leva ao enfraquecimento semântico por habituação,

processo pelo qual um organismo cessa de responder no mesmo nível a um estímulo repetido;

(ii) Mudanças fonológicas – redução e fusão de construções que estão pas-

sando por gramaticalização são condicionadas pela sua freqüência alta;

(iii) O aumento da freqüência condiciona um aumento da autonomia da cons-

trução, ou seja, os elementos que compõem a construção enfraquecem semanticamente ou perdem a sua associação com outros elementos do mesmo item;

(iv) A perda da transparência semântica de construções em gramaticalização

leva à ampliação do contexto de uso, ampliando a possibilidade de novas associações pragmáticas;

(v) A autonomia de uma expressão freqüente cristalizada na língua condicio-

na a preservação de características morfossintáticas obsoletas.

Seguindo a tendência de associar a repetição e freqüência à gramaticalização, alguns estudos enfatizam que a gramaticalização é um processo de automatização de

seqüências de elementos lingüísticos que ocorrem freqüentemente (Haiman, 1994

apud Bybee, 2003b). Com a repetição, seqüências de unidades que são independen-

tes podem ser processadas como uma única unidade, formando um bloco único de informação. Esse ‘reempacotamento’ da informação tem duas conseqüências:

(i) a identidade dos componentes individuais é gradualmente perdida (esva-

ziamento semântico);

(ii) o bloco único de informação tende a reduzir sua forma (redução fonética).

A repetição de construções em gramaticalização leva à habitualização. Automa- tização e habitualização estão presentes em todas as línguas e em todos os tempos; ou seja, elas são universalmente presentes quando pessoas usam uma língua.

O ressurgimento e proliferação de estudos sobre gramaticalização na década de 1990 abrem espaço para questionamentos e contestações sobre os conceitos, princí- pios e pressupostos do modelo. Em 2001, uma série de artigos publicados na revista

Language Sciences, no 23 (Campbell, 2001) coloca em xeque o paradigma funcional

da gramaticalização, apontando fortes argumentos de que a gramaticalização não tem estatuto por si só, trata-se na verdade de um epifenômeno – um rótulo para a conjun- ção de certos tipos de mudanças lingüísticas que podem ocorrer independentemente. A gramaticalização não teria estatuto por si só, pois envolve outros tipos de mudança que são conhecidos e que não são limitados à gramaticalização, como mudanças foné- tica e semântica e a reanálise. A continuidade e a unidirecionalidade do processo também são questionáveis.26 Traugott (2001) propõe uma revisão do conceito de gra-

maticalização, de modo a complementar e revisar os principais pontos fracos aponta- dos.

ƒ Gramaticalização é um tipo de mudança na qual itens lexicais e construções desempenham, em determinados contextos lingüísticos, funções gramaticais, ou itens gramaticais desenvolvem novas funções gramaticais. (op. cit., p. 1)

O êxito deste conceito depende da definição do que seja item lexical, construção e função gramatical. Traugott (op. cit., p. 4) aponta:

ƒ item lexical: unidades de uma língua específica que são tipicamente raízes e a- fixos (freqüentemente, mas nem sempre, unidades independentes, classes a- bertas).

ƒ construções: unidades básicas de uma língua específica por meio das quais as orações são construídas, incluindo classes gramaticais abertas e fechadas, co- mo preposição e auxiliares.

ƒ função gramatical: itens de classe gramatical relativamente fechada, como SUJ, OBJ, T, Asp, C, por meio dos quais compreendemos quem faz o que, para quem, quando, qual o ato declarativo e o estatuto informacional.

A reformulação do conceito para gramaticalização proposta por Traugott (op.

cit.) não incorpora a noção de unidirecionalidade, livrando da ciclicida-

de/circularidade do processo. Roncarati (2003, p. 159) sintetiza a polêmica da unidi- recionalidade na gramaticalização com o seguinte questionamento: quão crucial é o

princípio da unidirecionalidade para a gramaticalização? Há duas hipóteses para a questão: ou a unidirecionalidade é uma propriedade inerente ou é uma propriedade definidora de gramaticalização.

Conforme discute Roncarati, assumindo a definição de gramaticalização como mudança léxico > gramática, ou menos gramatical > mais gramatical, não existirão jamais contra-exemplos à unidirecionalidade, pois a definição barra qualquer mu- dança que não seja no sentido léxico > gramática, ou menos gramatical > mais

gramatical. Mudanças que não seguem a trajetória léxico > gramática, ou menos gramatical > mais gramatical são automaticamente excluídas do escopo analítico do

paradigma funcional da gramaticalização e, nessa concepção, a hipótese da unidire- cionalidade é uma propriedade inerente à gramaticalização. Já se a unidirecionalida- de é considerada como uma propriedade definidora de gramaticalização, um caso de mudança que não segue a trajetória léxico > gramática, ou menos gramatical > mais

gramatical não é um caso de gramaticalização, novamente por definição. Ao deixar

de fora da definição de gramaticalização o termo unidirecionalidade, Traugott (2001) descompromete-se da polêmica.

A unidirecionalidade do processo está intrinsecamente relacionada com a oposi- ção diacronia/sincronia. Traugott e Heine (1991) apontam que, se tomada da pers- pectiva diacrônica, é possível postular um contínuo de unidirecionalidade na grama- ticalização: é possível estabelecer, para determinado item, uma trajetória cujas ins- tâncias de mudança são limitadas por um número de estruturas que são minimamen- te diferentes das anteriores. Já para Dahl (2004), a gramaticalização no sentido tra- dicional é vista como uma parte integrada do estudo dos ciclos de vida de construções ou padrões gramaticais. O que é tradicionalmente chamado de gramaticalização são processos diacrônicos que se aplicam a elementos lingüísticos que foram recrutados como partes fixas (marcadores gramaticais) de uma construção, e pelos quais eles gradualmente perdem sua integridade, tornando-se expoentes de categorias morfoló- gicas, mais do que palavras independentes. O estudo dos processos de gramaticaliza- ção sugere que muitos padrões sincrônicos na língua encontram sua explicação na diacronia.

Uma posição radicalmente diversa à idéia de trajetória evocada nos estudos de gramaticalização é a apresentada por Votre (2002), que postula o princípio da exten-

são imagética instantânea, segundo o qual

“as tendências presentes num dado momento da história da língua teriam atuado em fases anteriores e continuarão a atuar da mesma forma, indefini- damente. A faculdade metafórica da linguagem é assumida como pancrônica, no sentido de que, quando uma nova forma se apresenta ao uso, as suas vir- tualidades e potencialidades semânticas se tornam disponíveis na mente de pessoas que interagem na comunidade discursiva, ancoradas no contexto si- tuacional de cada interação. Portanto, não há derivação de sentido, e, sim, relações entre diferentes níveis de abstração dos sentidos, sem que se possa garantir qual resultou de qual. A absoluta maioria dos sentidos e grande par- te das formas disponíveis na língua já estavam gramaticalizadas, quer no português quinhentista, quer no latim.” (Votre, 2002, p. 136).

Sentidos não surgem derivados de outros; eles já estão latentes.27 Como exem-

plo, Votre traz o caso de aflar/achar: “o fato de aflar ocorrer no latim e em português contemporâneo com o sentido de soprar não garante, por si só, que não teria existido, simultaneamente, em latim, o sentido de procurar e localizar objetos físicos e men- tais, nos espaços físicos e mentais; temos ocorrências do sentido concreto, mas isso não nos autoriza a descartar o sentido abstrato” (op. cit., p. 149). Embora o autor su- gira uma dimensão qualitativa para a investigação, pode-se pensar em uma constru- ção de trajetória delineada em função da distribuição, ou seja, em função da freqüên- cia de uso. Assim, os sentidos de uma forma podem estar latentes no português arcai- co, no latim, no indo-europeu, e na língua que o antecedeu. A sucessão de freqüências de uso de cada sentido em cada fatia temporal é que permite a visualização de uma trajetória. A freqüência de uso, nessa perspectiva, é determinada pela seleção social, já que a mudança virtualmente não ocorre. A idéia de trajetória derivada do princípio da extensão imagética instantânea não tem efeitos em uma análise que considera a- penas uma fatia temporal. Entretanto, parece pertinente testá-la, em um estudo que aborde mais de uma fatia temporal (ver os encaminhamentos delineados no capítulo 6).

O viés cognitivo da gramaticalização também é evidenciado por Bybee (2003a, b). Considerando a unidirecionalidade e a recorrência, as trajetórias de gramaticali- zação podem evidenciar a existência de um componente cognitivo universal (a traje- tória do imperfectivo, do futuro, por exemplo), que, de acordo com Bybee (2003a), deve ser incorporado ao rol dos universais da mudança. Bybee (op. cit.) argumenta que, assim como existem universais de mudanças fonéticas, existem também univer- sais de mudanças semântico-discursivas. A manifestação do componente cognitivo, na forma de trajetórias de gramaticalização pode se dar sincrônica ou diacronicamen- te. No plano sincrônico, a unidirecionalidade é verificada por meio da coexistência das camadas na mesma fatia temporal; no plano diacrônico, a unidirecionalidade é verificada pelas freqüências de cada camada nas fatias temporais sucessivas.

Sobre a existência de contra-exemplos da unidirecionalidade, Lass (2000) de- fende que, se a gramaticalização for considerada como uma teoria forte, permitindo explicitar predições como a possibilidade de falha, os contra-exemplos podem contri- buir e ajudar a modificar a teoria, pois devem ser explicáveis. Já, por outro lado, se a gramaticalização for tomada como uma teoria fraca, apenas baseada em generaliza- ções indutivas, por mera observação, os contra-exemplos não são considerados, ape- nas os dados positivos.

O paradigma funcional da gramaticalização vem se consolidando como um mo- delo teórico forte, dispensando atenção aos contra-exemplos na tentativa de enqua- drá-los no modelo, e buscando as motivações exteriores para as mudanças internas. A sugestão de Janda (2001), de buscar motivações sociolingüísticas para a gramaticali- zação, também tem sido incluída nas investigações.

27 Em Votre (2006, p. 141-143) há uma explicação procedural de como se dá a extensão imagética ins- tantânea em uma comunidade discursiva.

1.4.2

Relações entre gramaticalização/mudança e variação