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3. As experiências de leitura como formação de identidades juvenis

3.1 A leitura na sua origem

Antes de expressarem-se através da escrita, os seres humanos já liam. Interpretavam rastros dos animais, possivelmente para sua sobrevivência. No entanto, com a evolução da humanidade, surgiu a necessidade de registros destas leituras, e assim os primeiros vestígios da escrita são originários da região baixa da antiga Mesopotâmia, e datam de aproximadamente 3500 a.C.

A escrita surgiu com os pictogramas, que eram símbolos que significavam exatamente o que representavam, por exemplo, o desenho de um animal representava um animal. Marques (1997, p.62), analisando a origem da escrita, afirma que suas bases físicas são as mesmas da gravura, da pintura, ou seja, eram desenhos significantes e expressivos. Em uma segunda fase, os sinais passaram a significar mais do que as imagens originais indicavam, assumindo a escrita sua forma ideográfica. A fase seguinte na história da escrita é a fonética. Na escrita fonética os símbolos representam os sons e não os objetos. Surgem assim os primeiros alfabetos, o dos fenícios e derivados dele: os alfabetos grego, hebraico, aramaico e, mais recentemente, o latino.

Até o surgimento da escrita, a oralidade tinha grande importância para os povos. Manacorda, naquilo que define “como um rápido passeio histórico pela educação através dos textos”, ressalta a influência da oralidade nos primeiros textos que analisa (Ensinamento para Kaghemni e Ensinamento de Ptahhotep) onde

demonstra que visam “propriamente o falar bem, embora a escrita já fosse instrumento essencial de cultura” (MANACORDA, 1996, p.12-14).

A razão para isso é que a escrita era uma técnica material, instrumento de registro de atos oficiais usado por peritos e não pelos governantes que eram aqueles que deveriam ser educados nesse período. Esse mesmo autor afirma que os registros não permitem a apreensão da transmissão organizada das habilidades práticas e das noções científicas relativas a cada atividade desenvolvida na sociedade, pela inexistência de provas materiais, o que reforça a predominância da oralidade na transmissão dos conhecimentos. Esse fato persistiu na sociedade durante um grande período, sendo os ensinamentos de pai para filho e de mãe para filha, suficientes para as pessoas fazerem a leitura de seu mundo.

O objeto lido, de acordo com a sua estrutura e forma, altera a prática da leitura, os leitores adaptam o material lido de acordo com o uso que pretendem do mesmo. Manguel (1997, p.149-150) afirma que, na Mesopotâmia, tabuletas de cerâmica de 7,5 centímetros de largura, cabiam perfeitamente na mão, facilitando o manuseio e a leitura. Eram acondicionadas em bolsas ou caixa de couro, numa ordem que permitia a leitura de uma após a outra. Talvez essa seja a forma mais semelhante a um livro como concebemos hoje, inclusive havia tabuletas encadernadas em série dentro de uma capa.

Na Antiguidade, havia necessidade de se utilizar ambas as mãos para a leitura dos rolos de pergaminhos, o que se tornava um claro limite ao estudo dos textos, pois não permitiam ler e fazer anotações simultaneamente sem que se fechassem os rolos, dificultando o retorno ao ponto do texto onde se estava lendo. Analisar essa dificuldade tendo em mente a forma contemporânea de leitura é bastante problemático, pois predominava neste período a leitura em voz alta, já que a antiga escrita em rolos não separava palavras, não usava pontuação e tinha direções do texto variadas, como da direita para a esquerda (hebreu e árabe), em colunas (chinês e japonês), pares de coluna verticais (maias), linhas alternadas lidas em direções opostas (na Grécia antiga) e como um jogo de trilha (astecas). A leitura tinha outro significado, ler era uma forma de pensar e de falar, como por exemplo, para Cícero e Agostinho, ler era uma habilidade oral. Para o primeiro como parte da oratória, e para o segundo como pregação. (MANGUEL, 1997 p. 63-64).

Na idade Média os livros eram copiados pelos monges com a finalidade de preservação e perpetuação dos mesmos. Segundo Marques (1997, p.71), devemos

à iniciativa dos monges “transcrevendo, ilustrando, reunindo os melhores exemplares destinados a mais ampla divulgação”, o impulso aos estudos e recuperação de textos até o século XV. Porém, a revolução na indústria do livro acontece neste século, com duas novidades de origem chinesa: o papel e a xilogravura. Posteriormente, junto com a tipografia, esses inventos contribuiriam para a difusão do livro. O avanço do uso da escrita e a invenção do livro revolucionam a reprodução do saber nas sociedades, reduzindo o papel da oralidade na transmissão de conhecimentos.

A quebra do monopólio da escrita e da leitura dos domínios eclesiásticos a partir da ação de Lutero, em traduzir a bíblia para a língua Alemã, representa um marco na popularização da leitura, fato que é precursor de uma característica da modernidade: o acesso maior à leitura. Para Chartier (1999, p.23), a primeira revolução da leitura na Idade Moderna

(...) teve raízes em mudanças ocorridas nos séculos XII e XIII, que transformaram a função mesma da palavra escrita, substituindo o modelo monástico que atribuía uma tarefa de preservação e memória em grande parte dissociada da leitura, pelo modelo escolástico que tornou o livro tanto um objeto como um instrumento de trabalho intelectual.

A leitura é uma forma de apropriação da obra lida. Determinamos à leitura nossa significação de acordo com o que apreendemos do momento e da forma que lemos, e isto ocorre de forma diferente de um indivíduo para outro, de uma época para outra. Chartier (1999, p. 77), citando Michael de Certeau, afirma que “o leitor é um caçador que percorre terras alheias”. Porém o mesmo autor lembra que esta liberdade de leitura não é absoluta, ela carrega as limitações que cercam hábitos e convenções de determinadas épocas, formas e práticas de leitura.

Na modernidade, a leitura é marcada pela conquista de uma maior liberdade. No século XVIII, era possível observar, através das pinturas que retratam a época, imagens que representam os homens lendo na natureza, segurando o livro com somente uma das mãos e caminhando, enquanto em séculos anteriores lia-se fechado em determinados ambientes. Os homens deste século, segundo Chartier (1999, p.133), “viam a circulação de escritos como a própria condição do progresso das Luzes”, era possível que cada homem expressasse as suas opiniões e as submetesse para discussão.

As enciclopédias representam, para esta época, um grande empreendimento, onde era possível realizar a ideia de universalização das palavras e das coisas representadas. Para Marques (1993, p.46), citando Falcon, a enciclopédia representa a “síntese da autoconsciência ilustrada, (...) uma profissão de fé, recenseamento crítico dos conhecimentos existentes e guia luminoso, ponto de partida rumo ao progresso indefinido da humanidade”. Isto para uma época onde a ideia de mundo centrava-se na razão, no progresso, na ideia de um sujeito que tem a capacidade de aprender, o conhecimento não é privilégio de poucos, todos têm capacidade para acessá-lo.

Entretanto, no século XIX, observou-se uma prática de leitura que relembra a ênfase na oralidade de outrora, a leitura em voz alta. Ela volta para certos espaços como o do ensino e da pedagogia, ou ainda em lugares institucionais como a igreja, a universidade e os tribunais. Chartier (1999, p. 143) diz que, em boa parte deste século, a leitura em voz alta foi vivenciada “como uma forma de mobilização cultural e política dos novos meios citadinos e do mundo artesanal e depois operário”. Porém, com o tempo, a leitura em voz alta vai dando lugar a leitura silenciosa, que, ao mesmo tempo em que se realiza em espaços públicos, é uma prática individual.

Na contemporaneidade, onde a revolução do livro é outra, passamos de um mundo extremamente privado ao mesmo passo que global. Hoje podemos ler ao mesmo tempo em que interagimos, são outras as experiências de leitura e os objetos de que dispomos para realizá-las. Da televisão à internet, temos um mundo aberto aos nossos olhos, e os livros, em todas as suas formas já conhecidas e imaginadas, hoje são também eletrônicos. Voltamos às nossas experiências de leitura em ambientes fechados, em nossas casas, e ao mesmo tempo, podemos ler conectados em qualquer parte do mundo. Como afirma Freire (2009, p.9):

A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não pode prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre texto e contexto.

Ao longo da história da humanidade, diferentes práticas de leitura foram realizadas; porém, Orlandi (1996, p. 41), vai dizer que “para um mesmo texto, leituras possíveis em certas épocas não o foram em outras, e leituras que não são possíveis hoje serão no futuro”. Desta forma, lemos de maneiras diferentes um

mesmo texto em épocas ou condições diferentes. Outro aspecto destacado pela autora é de que toda a leitura tem a sua história, assim como todo leitor tem sua história de leitura. Assim, neste capítulo, analiso as experiências de leituras dos jovens levando em conta a história de leitura de cada um.

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