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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.3 Por um modelo de letramento

2.3.1 Letramento colonial e Letramento dominante

Ao nos reportarmos a exemplos mais longínquos no passado de campanhas de letramento, deparamo-nos desde esse período com a crença de que a aquisição da escrita agiria como importante fator de transformação e evolução cognitiva e socioeconômica de uma nação. Por conseguinte, a elaboração de programas que tentavam transmitir o letramento de determinadas sociedades externas industrializadas para sociedades em desenvolvimento, caracterizadas como não letradas, tinha como principal questão o ensino do código. Era, portanto, dentro dessa visão, que a conquista desse letramento era propagada para a população, que o receberia como meio de progresso social.

De acordo com Street, esse processo envolveu certa delegação de valores da cultura ocidental para sociedades não ocidentais – denominado letramento colonial –, sob argumentações de sua superioridade fundamentada num sistema de escrita que permitiria uma mudança de mentalidade pré-lógica para uma mentalidade lógica (CF. STREET, Passim).

Ao exemplificar como os normandos introduziram o letramento na Inglaterra medieval, o estudioso explica que aconteceu, na realidade, uma mudança na maneira de pensar daquela população. A palavra escrita passou, então, a ter importância para os seus membros, ao partilharem das opiniões advindas da nova cultura, sobre o status da escrita, no caso, para

alegações da veracidade ou direitos à terra, que anteriormente eram validados por meio da palavra oral.

Para um maior esclarecimento de quão profundas transformações essas mudanças provocaram nas pessoas e no que elas acreditavam, tem-se a questão da introdução e datação das cartas que, com suas novas convenções, envolviam as crenças religiosas da Inglaterra medieval, à medida que a divisão do tempo, embasada na teologia cristã, foi, aos poucos, suplantada pela datação a partir de eventos considerados significantes aos olhos de uma outra cultura.

Portanto, a consequência da transmissão desse letramento não se limitou à passagem neutra e objetiva da leitura e escrita, como propunha a campanha. Na realidade, o efeito dessa transferência implicou uma mudança de conceitos, apontada por Street, ao ressaltar que nas transmissões de letramento de uma cultura para outra, “a ênfase, deveria estar, não no letramento per se, mas no conteúdo e na ideologia” (STREET, 2014, p. 86).

Além do mais, ocorreu dentro de uma situação que apresentava relações de poder devido aos interesses políticos implícitos de um povo estrangeiro com suas intenções particulares que não se resumiam simplesmente a transmissão do letramento, mas ambicionavam outras conquistas. No caso mencionado, as novas formas legais e burocráticas de letramento instituídas pelos normandos tinham o propósito de tirar do povo local a base de validação do direito à terra. O letramento dominante reproduz alguns dos aspectos da situação colonial, tendo agora como principal agência de transmissão uma instância nacional, nesse caso, o governo nacional. Difere da primeira concepção, sobretudo nesse sentido, por acontecer dentro de uma mesma sociedade, mas trazido por membros pertencentes a segmentos sociais privilegiados: classes, grupos étnicos ou localidades. Delineia-se também por uma resistência local, adequação ou alteração no que se refere ao letramento introduzido. Caracteriza-se, deste modo, como uma nova condição de poder, como, por exemplo, da zona urbana sobre a rural (CF. STREET, 2014, p. 53).

Durante a década de 1970, Street desenvolveu uma pesquisa de campo no Irã, onde se deparou com relatos sobre o letramento em massa proporcionado pelo governo, que ignorava as práticas letradas da vida rural, na época centradas na oralidade. No seu trabalho, ele faz uma descrição do crescimento desse novo sistema educacional e das ideias arraigadas à sua propagação, cujas principais características consistiam em: escolas que servissem às necessidades do governo, controladas por uma elite dominante; uma metodologia de ensino baseada na repetição; e com um propósito de atender a economia moderna.

Os livros didáticos formulados para tal intento afirmavam a ideia de leitura e escrita dissociadas da vida e do sentido diários. Havia ainda uma associação à divisão letramento/oralidade. Logo, as histórias divulgadas nos livros da educação estatal eram tidas como verdadeiras e científicas. Entretanto, traziam consigo traços de uma cultura urbana, com intenção de proporcionar uma visão objetiva dos fatos, de fazer distinções entre história e lenda, além de fazer generalizações. Essa objetividade pretendida não acontecia efetivamente por tais histórias virem também carregadas de ideologias, dessa vez sob a ótica urbanocêntrica.

Foi nesse contexto, por julgarem-se capazes de distinguir o que era fato do que era lenda, que os moradores da cidade se enxergavam como superiores aos camponeses, vistos como ingênuos e crentes nas histórias de seus ancestrais e numa literatura oral. Street alega haver perdas ainda maiores de tradições genuínas do que apenas influências, como menciona Hoggart (1957 apud STREET, 2014, p. 80), quando afirma que “essa constante repetição de um senso de superioridade e o uso do letramento como arma política nas relações urbano-rurais pode representar [...] uma influência restringente”. Ademais, diferente do que se propagava nas escolas do governo, os contextos de tradição oral (a vida religiosa que envolvia o Corão e as lendas pré-islâmicas) das aldeias iranianas davam acesso, sim, a uma literatura criativa que possibilitava, de alguma forma, a análise e o pensamento crítico.

Tal conceito de supremacia intelectual e socioeconômica da população urbana sobre a rural evidenciado no passado perdura na época atual, e talvez hoje se configure de forma ainda mais cruel, num processo de preconceito e exclusão. As peculiaridades do homem rural, da sua cultura e do seu meio são tratadas com escárnio, indiferença ou até mesmo com invisibilidade. Essa visão se reflete na autoimagem que os alunos provenientes desse ambiente construíram de si, suscitando uma situação de rejeição da própria história. Faz-se necessário pensar de que forma é possível ajudar esses jovens a recuperar sua herança cultural que foi enfraquecida em virtude da sobreposição do letramento urbano dominante e considerá-la como um bem de valor. Street revela ainda que, nas sociedades expostas aos novos letramentos, verificou-se um esforço por manter as crenças e ideologias locais. Isso implica dizer que a imposição desse letramento moderno não ocorreu de maneira tão simples, havendo uma certa resistência e adequação ao pensamento dos aldeões, pois estes foram adaptando os conhecimentos advindos de outra cultura aos seus próprios saberes. Sobre esse processo, ele esclarece:

[...] longe de serem analfabetos passivos e atrasados, agradecidos pela iluminação trazida pelo letramento ocidental, os povos locais têm seus próprios letramentos, suas próprias habilidades e convenções de linguagem e suas próprias maneiras de apreender os novos letramentos fornecidos pelas agências, pelos missionários e pelos governos nacionais (STREET, 2014, p. 37).

O que o pesquisador alega nas palavras transcritas acima é a diligência de um povo em busca de uma saída para não sucumbir à imposição da cultura e crenças do novo letramento que, no caso, teve como corolário a mescla de elementos de ambos, do novo e do velho. Nesse sentido, salientamos a máxima do autor quando acentua que a questão a se analisar não é “o ‘impacto’ que o letramento tem sobre as pessoas, mas como as pessoas afetam o letramento” (STREET, 2014, p. 124, grifos do autor). Esse contraponto apresenta-se nas amostras expostas aqui, porque a sociedade e/ou o grupo social receptores dos novos letramentos – colonial e dominante – foram influenciados por suas formas comunicativas, mas isso não aconteceu sem contestações, o que se percebe a partir das transformações efetuadas conforme os próprios conceitos e conhecimentos do grupo.

Decerto que considerar a mescla do letramento urbano e das práticas de letramento realizadas no meio rural, assim como ocorreu nos casos já descritos, pode representar um caminho para os educadores alcançarem seus educandos pertencentes a esse contexto. Considerar a cultura do aluno é o primeiro passo para uma reflexão de sua relevância, e posteriormente uma mudança de pensamento e postura em relação à história que influenciou sua formação e, consequentemente, em quem são atualmente.

Para finalizar, apresentar esse percurso histórico permite-nos perceber que é preciso repensar sobre essas rupturas e os danos que a introdução de uma nova cultura pode causar, pois quando nos reportamos à contemporaneidade, constatamos que as populações rurais ainda sofrem com o impacto da imposição do letramento urbano dominante violando seus costumes, suas crenças, sua linguagem, sua visão de mundo e seus valores.

Assim sendo, essas primeiras abordagens discutidas conduzem ao conceito de letramento que prevalece hoje em dia na sociedade e que as reproduz, denominado autônomo, “uma concepção dominante que reduz o letramento a um conjunto de capacidades cognitivas, que pode ser medida no sujeito” (STREET, 2014, p. 9). Em oposição a tal concepção, o autor propõe o conceito ideológico que se preocupa com os usos da leitura e da escrita no cotidiano, em contextos informais para propósitos específicos.

Considerando-se as contraposições entre essas duas perspectivas de letramento discutidas na atualidade, de um lado o letramento autônomo e do outro a visão de letramento na perspectiva social, sobre as quais Street faz uma análise crítica bem esclarecedora, julgo relevante trazer algumas reflexões para compreensão de questões relacionadas às nossas práticas de ensino de Língua Portuguesa.