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Narrativas digitais: algumas considerações

4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

4.2 Análise do produto final: as narrativas digitais

4.2.2 Narrativas digitais: algumas considerações

Finalizada a sequência de aplicação, tive o retorno de onze narrativas digitais, e todas apresentavam apreciações valorativas das histórias da comunidade e da sua cultura, sendo intituladas: “Baixa da Onça: nossas memórias” (ND1), “A festa Junina da comunidade” (ND2), “Baixa da Onça e suas tradições” (ND3), “Amor de comadre e compadre” (ND4), “Nossa tradição, nossa história” (ND5), “São João, nossa tradição” (ND6), “Baixa da Onça: nossa herança cultural” (ND7), “As tradições juninas na Baixa” (ND8), “Nosso Arraiá” (ND9), “Tradições rurais” (ND10) e, finalmente, “Festa Junina na roça” (ND11).

Durante o processo desenvolvido na metodologia de aplicação, percebi que os alunos mudaram de lugar, não eram mais, portanto, sujeitos passivos, ou, como prefere Street (2014), não eram “tábua rasa”, porque pouco a pouco as suas vozes sociais foram sendo ouvidas nas práticas de letramento realizadas em sala de aula e também fora dela, já que estavam usando a língua para se posicionar, ainda que não tivessem plena consciência disso. Por conseguinte, eu também mudei. Minha visão de língua era focada no nível metalinguístico, e hoje estou trabalhando em uma perspectiva discursiva, concebendo a língua nas relações sociais mais amplas, que lhe conferem sentido. Essas transformações puderam ser percebidas no produto e, portanto, a análise vai considerar as narrativas como signo ideológico, procurando verificar as mudanças citadas.

Dessa maneira, como propõe a concepção ideológica de letramento, deixamos de avaliar o seu impacto e passamos a avaliar as suas consequências, que, nas produções das narrativas digitais, podemos destacar:

a) 1ª consequência: diversidade dos temas escolhidos

Os temas das narrativas não são um só, são vários. Minha proposta de atividade consistia em criar uma narrativa baseada nas entrevistas, nas histórias de vida da população, que resgatasse a memória da comunidade no contexto das festas juninas. Entretanto, não estabeleci temas nem fiz menção alguma a respeito dos assuntos a serem abordados. Eles tiveram a total

liberdade de escolher, e pude fazer essa observação após as análises. Quanto à diversidade temática, identifiquei nas produções23 os seguintes temas:

1) Lendas rurais locais, como a história da onça que deu origem ao nome do lugar. Esse assunto é enfatizado nas narrativas ND1 e ND7;

2) Crendices, folclore e superstições, como pular fogueira para ser comadre e compadre e a crença que Santo Antônio traria um marido às moças solteiras. Esses assuntos são trabalhados nas narrativas ND4 e ND6;

3) Costumes e tradições, como a descrição de todos os preparativos para o dia da festa: as comidas típicas, as danças, os ensaios, as quadrilhas etc. Essa temática é abordada nas narrativas ND2, ND3, ND5, ND9 e ND10;

4) Relatos históricos da comunidade, como as descrições da vida no povoado nos anos 70. Tema observado na narrativa ND8;

5) Conteúdo de engajamento crítico-social, como a denúncia dos descasos com a comunidade, mediante uma onda de violência que vem tomando grandes proporções. Tema contemplado na narrativa ND11.

Ficou claro, a partir da observação das diferentes temáticas, que os grupos tiveram autonomia na composição de suas narrativas, estabelecendo seus próprios critérios para a escolha das abordagens sem que houvesse interferência da minha parte, visto que não me questionaram sobre o que pretendiam fazer ou se poderiam fazer, apenas me informaram o que seria realizado pela equipe, reforçando, assim, uma postura mais independente.

Street (2014) e Terzi (2007) descrevem que as transformações realizadas no uso da escrita por comunidades que sofreram a intervenção de projetos de letramento não aconteceram da forma idealizada. O letramento não foi simplesmente assimilado, mas adaptado aos interesses da população local. A autora acentua que “esse processo significa a reafirmação da identidade do grupo” (TERZI, 2007, p. 171). Foi assim que concebi tais transformações nos textos dos alunos, como uma reafirmação, por meio da liberação de padrões, de uma independência desejada pelas equipes ao optarem por seguir caminhos diferentes.

b) 2ª consequência: relação eu/tu na (re)construção da memória

A forma como o eu (integrantes do grupo) foi se fazendo em relação ao tu (entrevistado), como a memória foi sendo criada em relação à fonte da entrevista: foi (re)construída. Apesar de os grupos usarem as histórias dos moradores como orientação para a criação de suas próprias

narrativas, elas foram ressignificadas a partir da voz do outro (entrevistado). Isso só foi possível devido às contribuições da abordagem das Histórias de vida, que apresenta como características principais as possibilidades de: pensar a percepção que se tinha do passado, mesmo que não se rompa com a visão anterior, mas passando a questioná-la, podendo construir um novo sentido aos eventos narrados; escutar as vozes silenciadas em contextos socioculturais diversos, e não apenas as vozes dos sujeitos privilegiados socialmente e suas culturas; e recuperar as singularidades das histórias narradas. Se trata, portanto, de um trabalho pedagógico que permite aos alunos conhecer a sua casa, resgatar as tradições locais para refletir sobre a importância das características rurais. Silva (2008) afirma que “a memória se funda naquilo que é a argamassa, o cimento, a tessitura íntima dessas vivências: a linguagem (...) que fornece a nós, indivíduos ou grupos, o meio de exteriorizar nossa memória em uma narrativa” (SILVA, 2008, p. 86). Contudo, na contemporaneidade, temos uma linguagem informativa, técnica, caracterizada pela brevidade da novidade, isto é, uma linguagem monológica, sem diálogo e, portanto, sem história, incapaz de contar o mundo. É considerando tal contexto que Silva (2008) discorre sobre a importância de a escola trabalhar com o resgate da memória social dos grupos e comunidades:

Num contexto como esse, o papel da escola e da educação avulta. É de ambas a responsabilidade de um mínimo de conservação de que o mundo não pode prescindir. Cabe a elas resgatar, redefinir, ressignificar a existência na barbárie. Se apropriar destas características do mundo moderno e construir conhecimento é ter bem claro e desejar um outro tipo de educação, é ensinar a nos percebermos olhando para o outro, trazer para dentro da escola os outros, os excluídos, e aprender que é possível assumir múltiplos lugares, entender que o mundo não é um único mundo e descobrir que o novo pode nascer daquilo que foi perdido. A tarefa mais importante da escola e para uma perspectiva mais democrática de educação é certamente lutar contra a fragmentação e a dispersão, reatando, pela retomada da linguagem expressiva, os elos da coletividade; preenchendo o vazio deixado pelo individualismo (SILVA, 2008, p. 87).

Trago abaixo a relação das narrativas associadas às entrevistas selecionadas por cada equipe sob os critérios por eles definidos, de acordo com o que julgaram mais relevante e que era alvo do interesse em comum do grupo. Das dezesseis entrevistas realizadas, oito foram escolhidas pelos alunos, e serão identificadas, daqui em diante, como E1, E2, E3 etc. A divisão foi feita da seguinte forma: E1: narrativas digitais ND5, ND8 e ND11; E2: narrativas ND4 e ND7; E3: narrativa ND2; E4: narrativa ND1; E5: narrativa ND3; E6: narrativa ND10; E7: narrativa ND6; E8: narrativa ND9.

Sabe-se que a inter-relação entre o código verbal e não verbal nos textos contemporâneos contribui para a construção dos sentidos da mensagem. A teoria mostra maior complexidade na forma que essas relações vêm se construindo, e as associações têm se ampliado de tal maneira que podemos conceber a informação verbal e a informação visual com o mesmo nível de relevância. Sobre isso, Gomes afirma que “nos dias de hoje, principalmente devido às facilidades oferecidas pelos meios eletrônicos, tanto para a obtenção de imagens digitais quanto para sua inserção e edição em documentos, em computadores ou na web, os limites entre texto e imagem estão cada vez mais tênues” (GOMES, 2007, p. 02).

Discutindo a inter-relação imagem-texto, o autor faz uma breve revisão das ideias de Barthes, que produziu significativos trabalhos sobre as relações entre imagem e texto, influenciando outros estudiosos na construção de teorias explicativas sobre esse tema. Conforme Gomes (2007), seus estudos apresentam uma lógica de três possibilidades de inter- relação entre imagem e texto: a) ancoragem – acontece quando o texto explica a imagem, apoia e direciona a sua leitura; b) ilustração – acontece quando a imagem apoia o texto, ampliando ou esclarecendo a informação verbal; c) relay – acontece quando há a integração das duas linguagens, ou seja, o texto e a imagem são complementares (CF. GOMES, 2007, p. 03).

Em conformidade com as três consequências aqui apresentadas, delineamos os aspectos a serem considerados na avaliação das narrativas digitais: a diversidade temática, a relação entre entrevistas e narrativas digitais e as relações entre as diferentes multimodalidades.