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3.2 Os jornais

3.2.2 O Liberal

O jornal “O Liberal” tem seu início em 1871. Era maior que o “Gazeta Cuyabana”, em formato standard. Ele traz uma diferenciação no cenário da imprensa mato-grossense por ser mais aberto em questões temáticas, em gêneros abordados em suas colunas e o posicionamento político de oposição ao governo imperial.

A edição nº 125, de 29 de janeiro de 1874, apresenta um cabeçalho na capa com o título que nunca mudou no decorrer das edições analisadas. Com letras grandes e espaçadas, o lema do jornal, que se posicionava abaixo do nome, era a frase em latim “Sub Lege Libertas”, algo em tradução literal como “Sob a lei da liberdade” (Figura 8). O título e lema do jornal já dizia muito sobre sua posição diante do que levava para suas páginas.

Figura 8 - O Liberal, edição nº 125, de 29 de janeiro de 1874.

Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso.

Esta edição de janeiro de 1874 se inicia com um pequeno texto em negrito com o título de “Aviso”. O comunicado, na verdade, cobrava aqueles que não haviam pago o valor atrasado correspondente à assinatura do jornal. Em um trecho, o redator chega a citar a importância do jornalismo:

Ninguém supponha que é prodigalidade o pouco que se gasta com o jornalismo, que consiste por si só uma das preciosas garantias dos direitos do cidadão. Governista ou da opposição, a imprensa presta relevantes serviços à causa pública. O despotismo que se forma e desenvolve-se nas trevas, definha e morre à luz da publicidade. (O Liberal, edição nº125, de 29 de janeiro de 1874).

Apenas por este pequeno aviso no início da coluna, é possível identificar a mentalidade política que pairava nos periódicos brasileiros àquela época, sobretudo a liberal. Em outras edições, o jornal apresenta alguns textos que podem ser considerados como editorial. Nesta edição, em especial, ele foi trocado pelo aviso.

Figura 9 - O Liberal, edição nº 125, de 9 de janeiro de 1874.

Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso.

Ainda na capa há uma seção, cujo título é “Noticiário”, que abriga pequenos fragmentos de textos resumindo alguns acontecimentos da província, do país ou até internacionais. Os textos eram divididos por subtítulos pequenos, como chapéus. As notícias que preenchiam esta editoria percorriam desde resumos de audiências jurídicas, perpassando por ocorrências da polícia até os feitos do imperador. Por sua vez, eram sempre comentadas e criticadas.

Se em “A Gazeta Cuyabana” as notícias eram implícitas por meio de um resumo na seção oficial, a partir daqui as coisas mudam. Em “O Liberal”, há a mudança já na linguagem, visto que aparecem termos como ‘notícia’.

Outros termos conhecidos do jornalismo contemporâneo já eram usados, como o “Última hora” (Figura 10), dando a ideia de que aquele fragmento fora apurado recentemente.

Figura 10 - O Liberal, edição nº 125, de 29 de janeiro de 1874

Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso.

Há a presença nas edições do jornal “O Liberal” da seção “A pedido”. Esta seção se caracteriza, em todas as edições analisadas, pela interferência do leitor. Nela estão presentes pequenos textos que ou foram pedidos pelos leitores, ou foram elaborados pelos mesmos. Na edição de janeiro de 1874, dois textos que narram contextos diferentes integram esta parte: um fala sobre a presença dos índios Barbados em Diamantino e o outro comenta as melhorias da comunicação entre a província e a Coroa (Figura 11).

Figura 11 - O Liberal, edição nº 125, de 29 de janeiro de 1874

Os textos apresentam características que se repetem no decorrer do jornal: noticiam algum fato, mas não sem interferir na narrativa do mesmo com suas opiniões elaboradas em frases ou somente adjetivos. No segundo texto, além de noticiar os avanços e progressos da imprensa entre a província e a Coroa, o autor leva palavras que exprimem a necessidade do jornalismo para a província e qualquer outra localidade:

A imprensa é uma tribuna que muitas vezes vale mais que aquella para onde vão os immediates delegados do povo. Ela também representa a vontade, os sentimentos e as aspirações nacionaes. (O Liberal, edição nº 125, de 29 de janeiro de 1874).

É importante tratar do jornal “O Liberal” como opositor ao governo provincial, pois ele trata do jornalismo como um dos precursores de ideias contrárias àquelas afirmadas pela época e pelos próprios governantes. É um jornal que em seu texto muitas vezes, como em metalinguagem, fala da importância do jornalismo. O “Gazeta Cuyabana” tinha feito isso no editorial de sua primeira publicação. “O Liberal”, sempre que consegue, evidencia o caráter social da função que exerce. O jornal precisava se reafirmar muitas vezes, como se precisasse mostrar os motivos pelos quais deveria continuar existindo. Isso se dava pela luta política da época que era também estampada nas páginas dos periódicos.

É importante lembrar que o primeiro jornal de oposição ao governo provincial de Mato Grosso foi o “A Imprensa de Cuyabá”, fundado pelo Padre Ernesto Camilo Barreto (MENDONÇA, 1951).

Em outras edições, a seção “A pedido” também é palco do diálogo entre os leitores e figuras públicas: são cartas dirigidas tanto a responsáveis por algum setor do governo ou até a membro eclesiais.

O jornal “O Liberal” sempre mantém a fórmula de quatro páginas, com diagramação dividida em três colunas que percorrem a altura da página. Assim como no “Gazeta Cuyabana”, aqui também as divisões ocorrem por tarjas, ora mais grossas, ora mais finas. Os títulos sempre referenciando o início de um novo texto, embora não resumam os assuntos que seriam tratados. A assinatura do jornal era sempre de ‘A. P. da S. Brandão’, que se colocava como ‘edictor’. Segundo o rodapé do próprio jornal, ele era impresso na ‘Typographia do Leberal’, contendo até endereço na Rua do Rosário, nº 26.

Ainda na edição de 1874, há poemas, anúncios e uma charada na última página. O poema era dirigido a uma figura feminina (Figura 12), os anúncios percorriam de comunicados oficiais até comércio e a charada ocupava um pequeno quadro em destaque pelo título chamativo.

Figura 12 - O Liberal, edição nº 125 de 29 de janeiro de 1874

Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso.

Na edição nº 323, de 10 de novembro de 1887, o editor já assina por extenso: Antônio Pereira da Silva Brandão. Continuando em quatro folhas e em três colunas, nesta edição o lema do jornal, que era o latim “Sub Lege Libertas”, é mudado para “Jornal político, noticioso e litterario”. Este lema, que traz as características centrais do periódico, fica presente a partir desta edição analisada. Àquele período, era comum que muitos periódicos se definissem como literários por serem comandados, muitas vezes, pelos homens letrados. A posteriori, muitos fragmentos vieram a se transformar em grandes obras. Nas três edições analisadas de “O Liberal”, entretanto, não foi identificado nenhum folhetim ou obra em continuidade, mas o jornal possuía uma gama de grandes textos opinativos, maioria de cunho político.

Figura 13 - O Liberal, edição nº 323, de 10 de novembro de 1877

Nesta edição há presença de um editorial que recebe o mesmo título do jornal, mas grafado de forma menor. O texto é um comentário do editor para um artigo publicado, na época, pelo “Diário da Bahia”. O artigo tratava de falar das diferenças entre um conservador e um liberal. Com esta espécie de editorial, há mais evidências da posição política defendida pelo jornal “O Liberal”, que já explicava muita coisa pelo seu nome. O jornal se dedicava à reprodução de textos que discutiam questões ideológicas até comentário de ações governamentais, deixando, assim, sua marca editorial. Na mesma edição de 1877, é presente uma espécie de obituário coletivo, no qual várias personalidades são homenageadas postumamente.

Há em outro fragmento de texto, desta vez situado em uma seção chamada “Factos Diversos”, que narra a viagem e a volta ao Brasil do imperador Pedro II e a imperatriz Teresa Cristina. Um texto grande e de caráter opinativo, como toda a extensão do jornal, que em meio aos fatos da viagem real encerrava com comentários ácidos:

Em tão longo espaço teve o monarcha brazileiro tempo sufficiente para percorrer todos os paizes mais e menos adiantados do velho mundo, e para testemunhar pessoalmente a marcha regular de cada um delles, em seu ascenso para o progresso, ou em seu declinio para o regresso.

Voltou S. M. à sua pátria depois de ter presenciado o movimento geral que caracterisa o espirito do presente seculo, e que tende a aniquilar de uma vez as idéas decabidas de outras éras, para, sobre as suas ruinas, se erguerem as que melhor correspondam aos intuitos do progresso moral e material dos povos.

S. M. deve estar convencido de que a felicidade de sua nação depende somente de um governo que não se inspire no desejo exclusivo de permanecer no poder para dele tirar a maior somma possivel de proveito para si e para os amigos que o cercam na esperança de lucros materiaes capazes de fartar-lhes a desmesurada ambição. (O Liberal, edição 323 de 10 de novembro de 1877).

Termos como “velho mundo”, “espirito do presente seculo”, “idéas decabidas de outras éras” evidenciam a forma de compreensão do redator do texto acerca da situação. Historicamente, eram tempos em que novas ideias já tomavam conta de todos os lugares. Os costumes e a moral do Antigo Regime, outrora marcado e iniciado na Europa, começam a ser considerados ultrapassados. O Brasil era ainda uma nação monárquica em meio à América republicana. Todo esse processo era debatido no jornalismo, e Mato Grosso se mostrava presente.

Essa posição escancarada contra o governo monárquico é uma característica que permeia a história da imprensa no país neste período de ascensão do movimento liberal, além das crises perpetuadas com ações do imperador, como a Guerra do Paraguai. Marco Morel comenta, citando também o peso da opinião nos textos:

[...] Diante do poder absolutista, havia um público letrado que, fazendo uso público da razão, construía leis morais, abstratas e gerais, que se tornavam uma fonte de crítica do poder e de consolidação de uma nova legitimidade política. Ou seja, a opinião com peso para influir nos negócios públicos, ultrapassando os limites do julgamento privado. (MOREL, 2011, p. 33).

Conforme Pedro Rocha Jucá, estes jornais de caráter privado da província, ou seja, produzidos por tipografias que não a pública, destacam-se pelas posições que tomam, pelo lado que defendem, governistas ou oposição: “Duas características básicas desses jornais: vida curta e quase todos se radicalizavam politicamente” (JUCÁ, 2009, p. 50).

Figura 14 - O Liberal, edição nº 323, de 10 de novembro de 1877

Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso.

A seção “Factos Diversos” está presente em alguns dos jornais analisados e se destaca por abordar temas que não têm ligação entre si, sempre relacionados à política e que ocupam boa parte do jornal.

É curioso citar a nomenclatura dessa seção e lembrar a estrutura estudada por Roland Barthes, as divers, traduzido do francês como justamente ‘fatos diversos’. Em suma,

fait-divers são uma conjunção de notícias que marcam o dia, como acidentes, assassinatos, qualquer

outra coisa que chame a atenção para aquele dia, mas nada que modifique a ordem das coisas ou nada muito histórico (DION, 2007).

Barthes (1966), na obra em que descreve os fait-divers, diz que uma característica básica para a compreensão desse gênero noticioso é a não necessidade de conhecer o mundo: ela não exige muito de quem a lê. Exatamente da forma como é enquadrada em “O Liberal”.

Na edição de novembro de 1877, não há a presença da editoria “Noticiário”, sendo ela substituída por “Factos Diversos”. Dentro dela, os assuntos são divididos a partir de pequenos subtítulos. Diferente da antiga, aqui não há apenas o relato dos fatos, sejam eles nacionais ou não, há textos que noticiam e comentam, de acordo com a linha editorial já exposta pelo jornal. Bem antes de Barthes estruturar e estudar uma forma de classificação dessas notícias, em Mato Grosso os periódicos já faziam uso desse recurso, que faz da curiosidade do leitor o termômetro para publicação.

Figura 15 - O Liberal, 10 de novembro de 1877

Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso.

A edição também é formada pela “Parte Judiciária”, que resumia algumas audiências da província; “Edital”, um resumo dos atos do governo provincial; “Publicações a Pedido”, voltada às demandas daqueles que pagavam por um espaço no jornal. Nesta edição havia também resumo de ações de empresas e pedido de ajuda para vítimas de seca na região Nordeste. E, por fim, havia a seção “Annuncios”, que inovava com uma gravura (Figura 16).

Figura 16 - O Liberal, 10 de novembro de 1877

Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso.

Na edição de número 397 do jornal, veiculada em 30 de abril de 1879, as características gráficas do jornal não sofrem mudanças. O título, o lema e as tarjas dividindo as seções continuam do mesmo jeito que a última edição analisada. A diferença aqui se encontra na periodicidade: passou a ser publicado apenas uma vez por semana.

Nesta edição, há a presença de um editorial, seguindo os padrões anteriores, sem um título específico. Este editorial se torna um artigo ao relatar o caso da Câmara do Município em algumas concessões de terra que deram problemas posteriormente. Após narrar os fatos, o editor deixa claro sua opinião no texto, evidenciando que cabe ao presidente da província resolver a questão. Há também a editoria “Noticiário”, que traz alguns acontecimentos relatados em pequenos textos, como nas outras edições, além de resumo de decisões estabelecidas pelo governo. Não há "Factos Diversos".

Os fatos narrados nesta seção de caráter noticiosa já possuíam elementos de informações, como dimensão de espaço e temporalidade:

Foi capturado a 23 do corrente [mês], no lugar denominado Chapada, districto de Brotas […]

Celebrou-se a 23 do corrente, na Sé cathedral, uma missa cantada em honra […] (O Liberal, edição nº 397, de 30 de abril de 1879).

Alguns textos maiores presentes do jornal conseguem abranger uma capacidade maior de informações, delimitando espaço, temporalidade, motivações e desdobramentos do que relata. Nesta mesma edição de abril de 1879, há um exemplo:

Em uma viagem da villa do Rozario para o porto desta cidade, no dia 23 do corrente, sossobrou um igarité do Sr. Gabriel de Moraes e Souza, que vinha carregada com 30 surrões de poaia e alguns outros generos; dando lugar a este desastre provavelmente algum choque mui forte da embarcação nas pedras que abundam no rio Cuyabá, desde pouco distante do porto geral para cima, e que ahi formam grandes cachoeiras na presente estação. (O Liberal, edição nº 397, de 30 de abril de 1879).

No fragmento de texto acima, é possível identificar as bases de um texto noticioso contendo as informações primordiais para a compreensão da notícia. Respondendo questões pertinentes como onde, quando, quem, como, o texto exprime a estrutura do texto noticioso jornalístico, mesmo delongando em partes pormenores e na presença de comentários.

É evidente que não é necessário a comparação entre a estrutura noticiosa atual e a estabelecida pelos jornais oitocentistas mato-grossenses. Mas se torna interessante perceber o fato de que os editores se preocupavam com determinadas informações que deveriam conter um texto, seja ele de aviso ou um relato. Muito se dá por conta da necessidade de criar uma narrativa concisa, característica herdada da literatura. Ou também na preocupação para com o leitor.

A maioria dos textos sofre intervenção do editor, ainda que pequena, por meio de comentários e sentenças. Um exemplo ainda nesta seção é a narração de uma ação criminosa com a presença da polícia que não conseguiu capturar o criminoso, e acabou fugindo. Ao final do trecho, o jornal declara:

É bem para sentir que o numero de praças de que se compõe a companhia de policia seja insufficiente para as multiplas necessidades do serviço a seu cargo, resultando d’ahi que a cidade é muito mal patrulhada. [...] Infelizmente, os escassos recursos da provincia não permittem o augmento de que necessita a nossa força policial, o qual só se podera verificar se o governo imperial, accedendo aos reiterados pedidos da presidencia, elevar a cem o auxilio de 40 contos que dá à provincia para manutenção dessa mesma força. (O Liberal, edição nº 397, de 30 de abril de 1879).

Dessa forma, eram dadas as notícias no jornal “O Liberal” à época. Desde já, com os elementos básicos de uma informação, para dar a completude ao leitor, mas nunca sem deixar de opinar ou comentar o caso. A opinião era um ponto chave para o jornalismo oitocentista, em Mato Grosso ou em toda extensão do Brasil. Partia dela a respiração dos jornais, sobretudo jornais de caráter oposicionista como “O Liberal”, como certifica Morel (2011, p. 33):“(...) A opinião pública era um recurso para legitimar posições políticas e um instrumento simbólico que visava transformar algumas demandas setoriais numa vontade geral”.

Entretanto, a opinião pairava sobre o quesito político quase que majoritariamente, particularmente em “O Liberal”, que era um órgão filiado ao Partido Liberal. Nesta mesma

edição de abril de 1879, há uma seção designada para três atas de reuniões do partido em distritos da província (Figura 17).

Figura 17 - O Liberal, 30 de abril de 1879

Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso.

As atas, como de costume, sintetizam as ações, decisões e discussões das reuniões. As reuniões eram de membros adeptos ao Partido Liberal das paróquias de três distritos. As atas compunham reuniões da “Freguezia de Santa Anna da Chapada”, “Freguezia de Santo Antônio do Rio Abaixo” e “Freguezia de Nossa Senhora das Brotas”, paróquias dos distritos que hoje são os municípios de Chapada dos Guimarães, Santo Antônio de Leverger e Acorizal, respectivamente.

Se acerca das questões políticas “O Liberal” era sempre ativo e defensor de suas ideias, em outros campos essa atuação já era falha. Das edições analisadas, a de abril de 1879 é a que mais contém relatos de escravos. Entretanto, estavam na seção de “Annuncios”, comunicando a fuga ou venda dos mesmos (Figura 18).

Figura 18 - O Liberal, 30 de abril de 1879

Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso.

Em nenhuma das edições analisadas, há textos ou comentários pequenos que falem sobre a questão da abolição ou da luta contra a escravidão, que já estava presente nos jornais brasileiros neste período (MARTINS, 2011). As referências aos escravos acontecem quando há um relato de um crime ou um anúncio de fuga ou venda. Dessa forma, pode-se ter a prerrogativa de que “O Liberal” era um jornal não-abolicionista, ou que, pelo menos nas edições analisadas, não expressa o contrário. Ao invés, alimenta a cultura escravocrata com seus anúncios, ainda que pagos, em um período no qual as leis contra a escravidão negra tomavam as discussões nos periódicos, principalmente os de ideais liberais.

Há outros dois anúncios na mesma edição que tratam de fuga de escravos e a recompensa para o seu encontro. Em um deles, o anunciante trata da seguinte forma:

Romana, fugida desde 28 de julho de 1877, preta de 50 annos mais ou menos, ainda não tem cabellos brancos, baixa, rosto redondo, com cycatrizes de bexiga, labios finos, magra, boa dentaduda, tem os pés pequenos e o andar ligeiro, fuma em caximbo, bebe agoardente, é muito dada a amisade de mulheres e negras velhas, habituada a carregar com sigo balaios ou trouxa de pannos, pouco aceada no trajar, sem prestimo algum a não ser o trabalho de lavoura. (O Liberal, edição nº 397, de 30 de abril de 1879).

Todos os anúncios de venda ou fuga de escravos eram assinados por pessoas que não o editor de “O Liberal”. Pode-se entender que, por motivos comerciais, eram as pessoas que vendiam ou procuravam os escravos e que pagavam por um espaço no jornal que assinavam os mesmos anúncios. A forma com que os anunciantes tratam dos escravos por meio das palavras revela o poderio de si sobre os seus mandados, consolidando o pensamento escravocrata: “a linguagem dos anúncios de negros fugidos, esta é franca, exata e às vezes crua. Linguagem de fotografia de gabinete policial de identificação: minuciosa e até brutal nas minúcias. Sem retoques nem panos mornos”. (FREYRE, 1979, p. 26).

Colocar uma expressão dizendo que uma pessoa era “sem prestimo algum a não ser o trabalho de lavoura”, explicita a mentalidade oitocentista com relação aos escravos negros. Mesmo o anúncio sendo pago por alguém que não o editor, o escrito passou pelas mãos do mesmo, e ainda assim chega à publicação. Esse exemplo serve, entretanto, como mote de discussão para temas que hoje se formam a partir de problemas que contêm sua origem em

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