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2 LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIREITOS HUMANOS

2.3 LIBERDADE DE EXPRESSÃO: A VOZ NA DEMOCRACIA

À luz das compreensões até agora apresentadas, percebe-se que além da livre expressão e o direito à comunicação serem direitos pessoais individuais, relacionados ao desenvolvimento do ser, também são elementos estruturantes da sociedade e da democracia, na medida em que a sociedade somente poderá ser democrática se permitir e propiciar a livre circulação de ideias e

o debate público. Segundo Adriana Jiménez Ulloa (2010), a liberdade de expressão se realiza na democracia, enquanto ali encontra o seu espaço de manifestação, assim como é a partir da liberdade de expressão que se constrói a democracia na medida que seu alicerce tem por base a manifestação da opinião pública. Assim, liberdade de expressão e democracia são elementos que se retroalimentam, tanto que Bobbio (2006, p.22) afirma que por “regime democrático entende-se primariamente um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla dos interessados”.

Por esta razão, a liberdade de expressão – que tem sua manifestação na comunicação, seja ela falada, visual, sentida, como a partir de agora resta implícita nas demais considerações expostas – é imprescindível na medida em que fomenta discussão de ideias e opiniões, condição indispensável para que haja a construção de espaço onde os cidadãos possam debater e desenvolver argumentos sobre questões da vida comum, amalgamando uma opinião crítica e fundamentada sobre os assuntos de interesse geral, estabelecendo, assim, o debate público, elementos básico da democracia.

Sob este prisma, a livre expressão assume um valor instrumental para a concretização da democracia, assim como o direito à comunicação, pois ambos fomentam o confronto de ideias, tornando-se elementos estruturais para o debate dos assuntos de interesse público, uma vez que

[...] o único meio de um ser humano aproximar-se do conhecimento completo de um assunto é ouvir o que sobre ele digam representantes de cada variedade de opinião, e considerar todas as formas para que cada classe de espíritos o possa encarar. Jamais qualquer homem sábio adquiriu a sua sabedoria por outro método que não esse, nem está na natureza do intelecto humano chegar à sabedoria de outra maneira (MILL, 2011, p.64).

Observando a relevância do confronto de opiniões e a partir do paradigma da utilidade, Mill (2011) propõe a liberdade de expressão como única forma de uma sociedade democrática alcançar o que seria a “verdade”, haja vista que impedir uma opinião (restringindo o direito à liberdade de expressão) é um dano para todos os indivíduos e à democracia, pois a voz oprimida pode conter uma parte da “verdade” que será permanentemente excluída. Embora não abordado pelo citado autor, da mesma forma, o direito à comunicação, compreendido como um elemento de troca interpessoal, é igualmente relevante na busca pela verdade, pois é o caminho pelo qual transita a livre manifestação em busca de alcançar eco no outro.

Assim, a liberdade de expressão e de comunicação estruturam a democracia, pois deve- se “considerar como um bem a possibilidade de cada um propor o que considera útil ao público

e é igualmente bom que se permita a cada um expressar livremente o seu pensamento sobre o que é proposto, de modo que o povo esclarecido na discussão adote o partido que achar melhor” (MAQUIAVEL, 2000, p.76).

Neste sentido, a própria história da democracia aponta para a relevância política da livre expressão e da comunicação para a sua concretização, pois, na sociedade ateniense, reconhecida como berço da democracia moderna, podiam os cidadãos exercer diretamente a participação nos assuntos públicos da pólis ao “expor em público os seus interesses e as suas opiniões, vê- los debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela maioria, devendo acatar a decisão tomada publicamente” (CHAUÍ, 2005, p.405). Assim, desde a ágora grega, a livre expressão e a comunicação são condições procedimentais da democracia, pois “a essência do fenômeno político designado pelo termo era a participação dos governados no governo, o princípio da liberdade no sentido de autodeterminação política” (KELSEN, 2000, p.140).

Ao evoluir no curso da história humana, a necessidade da liberdade de expressão como garantia da democracia nunca foi obscura aos líderes políticos. Isso se percebe na narrativa de Robert Dahl (2001) a respeito da experiência americana no século XVIII, precisamente quando Thomas Jefferson, após eleito para a presidência dos Estados Unidos da América, deu fim às leis dos Estrangeiros e do Tumulto promulgadas no governo do antecessor, as quais reprimiam a expressão política. Com isso, restou afirmado perante o mundo a compreensão americana de que não poderia haver uma república democrática sem a liberdade de expressão.

Esta visão resta reverberada no século XIX através de Stuart Mill quando afirma que “o único governo que pode corresponder plenamente a todas as exigências do estado social é um governo em que todo o povo participa” (1981, p.55), ainda que declare que, não podendo todos participarem pessoalmente, o tipo ideal de governo seria o representativo.

E é esse modelo de democracia representativa, em que haja liberdade de todos cidadãos

manifestarem suas opiniões e desta forma participarem do governo, que se tornou indispensável para a vida civilizada e para a realização da justiça social, pois, democracia sem justiça social, como referem Lênio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Morais (2001), é a negação da própria função social do Estado Contemporâneo, portanto, do Estado Democrático de Direito.

Nessa breve incursão história resta perceptível que a liberdade não existe apenas por ser parte da definição de democracia, mas tem um próprio valor como uma condição empiricamente necessária para a democracia existir.

E enquanto um valor, de acordo com Ronald Dworkin (2005) a liberdade de expressão deve ser entendida como um princípio moral e, por assim ser, um direito humano fundamental

que constitui um elemento integrante da concepção da democracia23 e não apenas instrumental.

Sob esta ótica, a liberdade de expressão é compreendida, pelo citado autor, como uma garantia de igualdade no sentido de que todos os cidadãos sejam respeitados em sua individualidade e na sua capacidade moral de argumentarem, interferirem politicamente nas questões públicas e procurarem a sua própria concepção de bem, não se permitindo "regulamentações do discurso político que prejudiquem a soberania dos cidadãos ou a igualdade entre eles" (2005, p. 535).

Ou seja, o exercício democrático pressupõe um amplo respeito ao direito de liberdade de expressão, pois uma decisão política ficaria comprometida caso algum indivíduo ou grupos dissidentes fossem proibidos ou restringidos em seu direito de contribuir para a formação da opinião e da vontade coletiva manifestando suas convicções políticas ou morais, seus gostos e até mesmo seus preconceitos (DWORKIN, 2006).

Percorrendo outra linha de pensamento acerca da concepção de democracia24, Robert

Dahl (2001) entende que a liberdade de expressão é um requisito para que os cidadãos realmente participem da vida política, uma vez que não existe outra forma para que eles possam tornar conhecidos seus pontos de vista e possam persuadir os seus pares e seus representantes a adotá- los. Da mesma forma, a liberdade de manifestação é necessária para que o homem possa levar em conta as ideias dos outros, para tanto sendo preciso escutar o que os outros tenham a dizer. Assim que

Para se adquirir uma compreensão esclarecida de possíveis atos e políticas do governo, também é preciso a liberdade de expressão. Para adquirir a competência cívica, os cidadãos precisam de oportunidades para expressar seus pontos de vista, aprender uns com os outros, discutir e deliberar, ler, escutar e questionar especialistas, candidatos políticos e pessoas em cujas opiniões confiem – e aprender de outras maneiras que dependem da liberdade de expressão (DAHL, 2001, p.110).

A estreita relação entre a liberdade de expressão e a democracia está presente, ainda, na concepção da teoria deliberativa proposta por Habermas (1997) que identifica no processo comunicativo, exercido dentro da esfera pública, a autonomia cidadã dos indivíduos. Nesta perspectiva, a democracia, fundada na ideia de autodeterminação política de uma coletividade, pressupõe decisões livres e legitimadas pelo diálogo entre os sujeitos, no qual deverá prevalecer

23 Cabe esclarecer que as afirmações de Dworkin sustentam-se em uma concepção co-participativa de democracia, segundo a qual "as instituições são democráticas até o ponto em que permitem aos cidadãos se governarem a si mesmos, coletivamente, por meio de uma parceria, na qual cada um é membro ativo e igual"(DWORKIN, 2005, p.510). Esta percepção da democracia opõe-se à denominada a concepção fundada em um aspecto quantitativo: a decisão por maioria.

24 A democracia é concebida por Robert Dahl (2001) como uma democracia poliárquica (ou democracia moderna representativa) a qual é um sistema político dotado de seis instituições: funcionários eleitos pelos cidadãos, eleições livres, justas e frequentes, liberdade de expressão, fontes de informação diversificadas, autonomia para as associações e cidadania inclusiva.

o melhor argumento. No entanto, tais decisões, livres de relações de poder e dominação, exigem um conjunto de condições para a formação racional da opinião, condições que se traduzem em um sistema de direitos entre os quais a liberdade de expressão, uma das condições necessárias para a participação dos indivíduos no processo democrático (HABERMAS, 1997).

Apesar de não serem poucas – e serem aceitáveis – as críticas25 ao modelo habermasiano

de esfera pública, este conceito é necessário para que se compreenda o lócus onde a opinião pública se forma. Conforme Habermas a esfera pública define-se como “uma rede adequada para a comunicação do conteúdo, tomadas de posições e opiniões” (1997, p.93), ou seja, é uma arena em que os assuntos de interesse geral podem ser discutidos e as opiniões são formadas, o que é necessário para a efetiva participação democrática. A esfera pública, assim, envolve uma reunião de indivíduos em um fórum comum no qual algumas manifestações são submetidas ao debate público racional e deste emerge a opinião pública, que se constitui em elemento da condução política e concretizador de uma democracia deliberativa.

Dentro de uma abordagem liberal, a liberdade de expressão também permeia o modelo de democracia caracterizada para além das garantias de liberdades e direitos, proposta por Touraine (1996) para quem a cidadania se fundamenta no direito de participar da gestão da sociedade e a representatividade decorre da pluralidade de atores sociais, sendo necessária a criação de canais de representação para garantir a liberdade de participação de todas as vozes.

Independentemente das conceituações de democracia, seja participativa, representativa, deliberativa ou fundada na soberania, a liberdade de expressão perpassa todas elas, pois

[...] tal princípio permeia, mesmo que subjetivamente, as mais diversas versões conceituais da democracia, atuando como uma dos indicadores da experiência democrática em cada expressão material desse fenômeno. Portanto, um regime democrático no qual coexistam classe de cidadãos portadores da prerrogativa de se expressar e outros tantos despossuídos de tal atributo, seria conceitualmente marcado pela inconsistência de sua estrutura de poder, desequilibrada pela participação pretensamente desigual dos indivíduos que integram essa sociedade. (HOSSOÉ, 2012, p.35)

Ainda, de acordo com Owen Fiss (2005, p.6) “a liberdade de expressão, sob tal ponto de vista, visa à construção de um ethos argumentativo-deliberativo, propiciando a realização do processo coletivo de debate e tomada de decisões na esfera pública”.

25 As críticas centralizam-se no fato de que Habermas ao situar a esfera pública parte de uma concepção eurocêntrica para a compreensão do mundo, a qual não contempla as peculiaridades dos países situados à margem de tal concepção. Assim, Habermas negligencia o desenvolvimento contemporâneo de espaços públicos opostos ao modelo europeu adotado.

Desta forma e como explicita Paulo Calazans (2003), há uma exigência intrínseca ao processo democrático de formação de vontade decisória que é o permanente intercâmbio de opiniões e informações entre os membros da comunidade – o que ocorre na esfera comunicativa – com o fito de permitir a constante reavaliação das diversas percepções e pontos de vista acerca dos assuntos postos em pauta na discussão política e, da mesma forma, contribuir para que as decisões que irão afetar a vida de todos, reflitam os interesses dos integrantes da comunidade

Este entorno faz emergir a percepção de que a livre expressão sob uma perspectiva democrática não significa apenas ter o direito de ser ouvido, mas ter também o direito de ouvir, o que estabelece o direito humano à liberdade de expressão dentro do contexto comunicacional, decorrendo disso que o próprio direito à comunicação, nas linhas traçadas no capítulo anterior, também venha a se configurar em uma condição para a democracia.

E em se tratando de direito à comunicação, quando o exercício deste é buscado em uma escala maior (meios de comunicação), os critérios democráticos exigem que sejam disponíveis informações alternativas e independentes, pois “como os cidadãos podem adquirir a informação de que precisam para entender as questões se o governo controla todas as fontes importantes de informação? Ou se apenas um grupo goza do monopólio de fornecer a informação?” (DAHL, 2001, p.111). Ao se buscar resposta a tais indagações, encontra-se em Vera Raddatz (2014) a lição de que não existe democracia sem uma imprensa livre que expresse amplamente os pontos de vista da sociedade, a qual engloba todos os cidadãos de todas as classes sociais e não apenas uma representação das classes privilegiadas economicamente. Ainda, conforme Raddatz (2014, p.108), “esta lógica vai ao encontro do que se espera em termos de uma mídia cidadã, ou seja, aquela em que o sujeito não tem apenas voz, mas também é ouvido. Sua comunicação encontra eco e produz sentido por meio das trocas simbólicas”.

Sob esta ótica não pode passar à margem da observação que os meios de comunicação, assim como os indivíduos, assumem o papel de protagonistas no âmbito da efetivação do direito da liberdade de expressão e à comunicação nas sociedades complexas contemporâneas. Isso porque os meios de comunicação se constituem espaços de manifestação de ideias e ideologias, além de responsáveis pela difusão de fatos, e a sua forma de funcionamento poderá refletir ou não os interesses públicos a depender do comprometimento de tais meios com o poder político. Portanto, uma comunicação democrática deve alcançar diretamente ao movimento do cidadão na sociedade, pois à medida que ele se informa, torna-se mais esclarecido e crítico e, por consequência, apto a participar das ações de interesse da coletividade, podendo posicionar- se, defender as suas ideias, discutir as dos outros, trocar informações e formar pontos de vista.

Para isso, é necessário que ele não apenas tenha acesso, mas possa optar por uma informação produzida numa instância comprometida com a pluralidade e a diversidade (RADDATZ, 2014). De fato, a democracia se estabelece a partir da participação ativa dos indivíduos, dando- se oportunidades iguais para que todos opinem sobre questões de interesse social. Ou seja, a vivência democrática pressupõe a existência de uma esfera pública na qual se permita o “livre debate entre iguais” (DAHL, 2001), restando que a liberdade de expressão, a comunicação e a democracia convergem para a concretização de um Estado ideal, onde haja o trânsito para as múltiplas ideias e para a pluralidade no debate e nas opiniões acerca de interesses comuns, os quais restam formatados dentro de uma prática dialógica capaz de promover a reflexão sobre o saber e o agir em relação a si e ao outro.

A participação na vida política democrática, portanto, pressupõe que todo cidadão tenha espaço para manifestar livremente a sua opinião, a fim de garantir-lhe uma efetiva integração às discussões sociais, tendo-se presente que “cidadãos silenciosos podem ser perfeitos para um governante autoritário, mas seriam desastrosos para uma democracia” (DAHL, 2001, p.110).

Tal afirmação é corroborada por Bedin (2002) ao abordar a incompatibilidade entre liberdade de expressão e regimes autoritários, quando afirma que nos momentos da história em que as sociedades estiveram sujeitas a regimes autoritários, viu-se a atitude e a preocupação dos mesmos em restringir ou até mesmo suprimir a liberdade de expressão, pois reconhecidamente ela estabelece o que pode ser considerado como a condição mínima para um espaço público democrático. De tal forma que a liberdade de expressão segue na contramão dos interesse dos governos autoritários na medida que viabiliza um ambiente de fomento a democracia.

A partir desta verificação, percebe-se que a América Latina, depois de anos cerceada por regimes ditatoriais, vem buscado construir um ambiente de liberdade de expressão de forma a assegurar que novas vozes sejam ouvidas para ampliar o sentido da democracia e criar uma esfera pública que possibilite a diversidade, capaz de recuperar os sonhos que historicamente lhe foram usurpados (MORAES, 2011). Trata-se, portanto, de construir espaços que protejam a diversidade e favoreçam a manifestação de vozes ignoradas ou excluídas e que “estimulem a compreensão e a interpretação dos fatos de maneira plural e abrangente, avaliando os múltiplos aspectos sociais, econômicos, culturais e políticos envolvidos” (MORAES, 2011, p.175).

Nessa jornada, percebe-se que as democracias dos Estados periféricos26 americanos tem

sido acompanhadas pelos organismos de proteção internacional aos direitos humanos, os quais

26 O termo “Estado periférico” é aqui tomado na acepção de uma sociedade politicamente organizada de tal forma, que, apesar de conceitualmente fazer-se nominar de democracia constitucional, permanece vinculada a uma rígida ordem econômica e institucional confirmada pela organização estatal do poder, concentração no monopólio da

mediante sua atuação jurisdicional ou não tem buscado a promoção e proteção da liberdade de expressão, resgatando as vozes de sujeitos sociais excluídos e assegurando a diversidade e a pluralidade de manifestações e informações.

soberania, centralização, secularização e burocracia administrativa, conforme conceito de RUBINSTEIN, Juan Carlos. El Estado Periferico Latinoamericano. Buenos Aires: EUDEBA, 1988.

3 SISTEMAS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E LIBERDADE DE