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A ESTRUTURA DESNUDADA: RECALQUE, LINGUAGEM E AFETO NA NEUROSE OBSESSIVA

LINGUAGEM E AFETO NA NEUROSE OBSESSIVA

Alguns dos mecanismos, característicos da neurose obsessiva, resultantes do aprisionamento do afeto (o isola- mento, a anulação, a racionalização), dão a tônica da relação com a linguagem que nela se observa. Parece que o próprio impossível presente na instauração de seus diversos parado- xos sintomáticos, que, por sua vez, remetem ao impossível da própria estrutura, acarreta aos neuróticos obsessivos os mes- mos tipos de problemas nos seus modos de emprego da lingua- gem, nos quais, geralmente, prestam-se a fazer algumas consi- derações sobre algo, apontamentos, pontuações, refletir sobre algum tipo de problema. Nesse modo estilístico de expressão, algo parece submetido ao adiamento de uma síntese, o que pode ser associado ao fato de que a estrutura se revela nessa neurose na medida em que o sem sentido insiste em retornar, levando o neurótico obsessivo a negá-lo ao submetê-lo ao sen- tido, produzindo diversas formas lógicas de conectivos, que, mesmo sendo falsos, possuem esse objetivo de promover um contrassenso. Esse recurso resulta na tentativa de neutralizar os significantes que retornam e que lhe conferem sua subjeti- vidade, a qual é evitada por meio das astúcias do pensamento racional que busca concatenar, preencher lacunas, ordenar e

completar o que falta ao sentido. Qualquer escrita e qualquer fala que sejam munidas desses recursos, como ocorre, geral- mente, com a escrita formalmente dita científica ou com a lei- tura do que foi escrito com essa tonalidade, provocam tanto o desaparecimento de seu autor como a possibilidade do apa- recimento de seu ouvinte ou interlocutor como sujeito, dei- xando-o enfadado, sujeito à sonolência e ao adormecimento (MAHONY,1991).

Não é à toa que os neuróticos obsessivos são considera- dos, por muitos, como sendo pessoas enfadonhas, mesmo a despeito de suas características notáveis de natureza empre- endedora e de sua ética de enorme valor para o processo civi- lizatório, já observadas pelo próprio Freud (1909/2000).

Uma tal dificuldade de lidar com o sem sentido está no coração da relação do neurótico obsessivo para com a lingua- gem, assim como seu subjugo a palavras de cunho imperativo e, em geral, de efeito funesto ou aterrorizador. As compulsões que lhe são características se inscrevem, no contexto de sua formação, em um universo de linguagem. No entanto, a rela- ção à linguagem, própria a essa neurose, só pode ser melhor vislumbrada se nos remetemos a um de seus principais tra- ços, conforme a metapsicologia freudiana, que consiste jus- tamente nos destinos sofridos pela representação e pelo afeto em decorrência da falha no processo de recalcamento que lhe é própria (descrita anteriormente).

Como vimos, na neurose obsessiva, o recalque cumpre a sua função em separar a representação do afeto, e, com isso, observa-se o seu caráter bem-sucedido de lograr o enfraque- cimento da representação aflitiva e/ou traumática. Por outro lado, constata-se, ao mesmo tempo, que algo dificulta a des- carga do afeto, o que consiste no lado fracassado da operação de recalque. É este o aspecto que confere à neurose obsessiva a

sua particularidade em relação às demais neuroses. Enquanto, na histeria, o afeto é descarregado no corpo e, na fobia, é descarregado em algo circunscrito na realidade, na neurose obsessiva, o afeto fica preso à esfera psíquica. Isso não se dá sem consequências para com o modo como se dá a relação do sujeito com a linguagem.

Do ponto de vista constitucional, Freud observa que a predisposição à neurose obsessiva deve-se justamente a uma impossibilidade de conversão do afeto. Perguntamo-nos, então: qual o motivo ou condição para que o afeto não possa ser convertido?

A nosso ver, em As fantasias histéricas e suas relações com

a bissexualidade, Freud (1908/2000) fornece-nos uma indica-

ção quanto a isso ao afirmar que a capacidade de conversão requer como substrato a ocorrência de uma simbolização, gra- ças à qual a representação se religa ao afeto. A partir desse postulado, podemos inferir que uma falha nesse processo de simbolização é observada na neurose obsessiva, e é precisa- mente ela que inviabiliza, pela via do isolamento, a descarga afetiva. Essa operação defensiva presta-se a fortalecer as rela- ções do eu com a realidade e o afastamento do sujeito obses- sivo de suas palavras, o que se dá às custas da erotização dos processos de pensamento.

Lembremos, quanto ao processo de simbolização, que tanto Freud como Lacan situam dois momentos fundamentais do advento do simbólico nos seres falantes: as operações de negação primordial e de negação propriamente dita. O pri- meiro, de ordem mítica, remete às operações de afirmação e expulsão fundamentais, correlativas ao surgimento do desejo, as quais são responsáveis pela produção das trilhas que levam à tendência do aparelho de buscar repetir o modo de descarga que proporcionou o prazer. Todo o processo de estratifica-

ção psíquica será orientado, a partir de então, pela ocorrência de diferentes modos da produção de operações de defesa e de negação, o que leva Lacan a afirmar que o desejo é a própria defesa. Observe-se, ainda, que a afirmação e a expulsão fun- damental consistem, juntas, na condição mesma de acesso do sujeito ao significante em sua dimensão de afirmar e negar, ou seja, o caráter de portar em si mesmo a diferença. O segundo momento do referido processo, que tem por condição o ante- rior, diz respeito à denegação ou negação propriamente dita, que, por sua vez, é solidária à edificação do eu. Esta tem a função geral de atribuir a algo uma propriedade e, para isso, requer uma ação judicativa, isto é, a produção de operações de juízo, que Freud reconhece como sendo fundamentalmente de duas espécies: de existência e de atribuição. Esses modos de juízo conduzirão à efetiva diferenciação entre o mundo interno e o mundo externo para o sujeito, possibilitando-lhe fazer o teste de realidade, que consiste em buscar reencon- trar na realidade a representação primitiva das coisas inscri- tas mediante a primeira operação de negação. Este é o ponto de encruzilhada entre neurose e psicose, pois as operações de negação, que são o recalque e a foraclusão, só poderão ope- rar por sobre o que foi objeto da negação primordial, ou seja, por sobre o que foi objeto dessa operação simbólica arcaica que envolve o próprio ser concernido na economia pulsional expressa sob a forma quantitativa relativa às sensações corpo- rais de prazer e desprazer.

Freud defende, ainda, conforme anteriormente exposto, que a neurose obsessiva é determinada por um tipo de expe- riência sexual traumática vivenciada num tempo em que o eu não disporia de recursos para integrá-la à sua estrutura. Em outros termos, poderíamos afirmar que a operação de defesa que permitiria a simbolização dessa vivência é precária, pois,

nesse momento, só se encontra realizado o enlace entre o real e o simbólico. O eu é forçado a se desenvolver precocemente e, antes do tempo, é levado a promover, sem o devido auxílio da instância imaginária, a produção das operações de juízo que só depois haveriam de se verificar, sem que mesmo a negação primordial tenha se tornado efetiva.

Supomos, a partir dessas considerações, que, na neurose obsessiva, a negação propriamente dita é antecipada para um momento no qual o que ainda está em vigor é a operação de negação primária que ainda se encontra entravada e acompa- nhada das tendências narcísicas e agressivas. As consequências disto para o modo como o obsessivo vai lidar com o significante fálico é que faz com que essa neurose, em seus estados mais graves, possa ser, muitas vezes, confundida com os quadros psicóticos, uma vez que os restos do vivido, impressos psiqui- camente, permanecem intactos, pois foram recalcados sem que houvesse a devida simbolização. Isso parece explicar a tenta- tiva do sujeito obsessivo em eliminar a instância fálica – em cor- rigir as falhas da simbolização –, o que se reflete no seu modo usual de referência ao significante em sua dupla face de afirmar e negar a simbolização mais que perfeita: o assassinato do pai. Ele fracassa nessa tarefa, não sem cansaço, não sem culpabili- dade, não sem descrédito. Esse dilema é o fardo do obsessivo. A dúvida, traço fundamental da referida neurose, tem sua razão estrutural nisso, pois a clivagem do eu não sendo resultado da negação é assegurada pela dupla negação que resta contraditória, levando o sujeito a hesitar entre um e outro de seus polos. São esses restos que, em retornando, convidam o sujeito à tarefa de simbolizá-los num só depois e, também, são a razão para não podermos pensar na existência de um discurso do obsessivo, como Lacan (1992) nos faz pensar em relação ao discurso histérico.

Isso pode ser melhor entendido se retomarmos a refe- rência feita por Lacan à teoria dos conjuntos no que ela remete ao conceito de par ordenado e à operação de reunião. Ivan Correia (2011), quanto a isso, em seu texto intitulado “O par ordenado e a clínica psicanalítica”, demonstra sinteticamente que, pela teoria dos conjuntos, obtemos o número 1 a partir do número zero, ou seja, do enlace entre o real e o simbólico, como referimos antes à propósito da negação primordial. O número do real é o zero, o do simbólico é o 1, uma vez que eu obtenho o 1 a partir do conjunto das partes de zero, assim como obtenho o 2 fazendo o conjunto das partes de 1. Sendo o 2, portanto, o número do imaginário. É importante, no entanto, observar, conforme ressalta esse autor, que, quando fazemos o conjunto das partes de 2, o que encontramos não é o 3, mas sim o 4, que é o número do discurso. O número 3, que é o da estrutura, só pode ser encontrado por meio da operação de reunião entre dois conjuntos, isto é, só podemos obter o 3 a partir do 4.

Se considerarmos a lógica nisto concernida, podería- mos, então, dizer que, na neurose obsessiva, a dificuldade de simbolização resulta numa dificuldade de constituição do 4, na medida em que a passagem para o 2 ainda não haveria se dado e, se eu só posso obter o 3 a partir do 4, isso nos levaria a uma confusão entre neurose obsessiva e psicose, onde efeti- vamente não se faz discurso.

É, também, pelo fato de que, na neurose obsessiva, o sujeito é obrigado a realizar uma operação simbólica para a qual não está apto, que ela tanto se aproxima das psicoses, levando, muitas vezes, a uma confusão diagnóstica entre ambas. Na primeira, a falha de simbolização tem por objeto a inscrição do significante do Nome-do-Pai, enquanto, na psi- cose, dá-se uma impossibilidade de simbolização em virtude

de não haver a inscrição desse significante. São dois modos de uso do significante que se debruçam por sobre o sem sen- tido, mas o fazem de forma diversa. Na primeira, o significante fálico é potencializado e, na segunda, resta sem esteio. O fato de a castração ser bem-sucedida na primeira, mesmo que a despeito da degradação simbólica da imago do pai, faz com que o pai – conforme já explicitado por Freud e outros auto- res – não pare de não morrer e ganhe a exclusividade do gozo em decorrência de uma dívida que o obsessivo procura pagar, mas que é impagável. A tentativa de saldá-la, no entanto, é o recurso de que dispõe para promover a ocupação pelo pai de um lugar simbólico. Com isso, o que se observa é que a força adquirida pelo significante fálico busca, paradoxalmente, eli- minar a instância fálica, ou seja, busca produzir a castração ideal, a simbolização perfeita – o assassinato do pai –, o que lhe permitiria encontrar efetivamente na realidade as marcas do que primitivamente foi inscrito e que resta isolado. Contudo, nisso o obsessivo fracassa reiteradamente, o que não o impede de continuar tentando. Quanto mais ele se aproxima do recal- cado, portanto, do seu desejo, mais encontra uma barreira ao caminho que lhe daria o acesso a ele, pois essa carência de sim- bolização o coloca na dependência do assentimento do Outro. Exemplificando melhor a lógica do par ordenado a partir da situação analítica, Ivan Correia (2011) nos mostra que toda análise, uma vez partindo da transferência imaginária, começa do 2 – isso é a condição para que se dê a fala do paciente. Dessa forma, do 2 surge o 4, que é o discurso, o qual vai possibilitar que algo do que aí advém possa vir a ser elaborado. Assim, vai surgir o 1 do simbólico e, havendo interpretação, vai surgir o sujeito, o 3, da estrutura, que, com isso, poderá ser revelada. Por fim, o 0 – zero –, o real, seria o tropeço que surge como o que poderia levar ao fim de uma análise.

Isso parece esclarecer a dificuldade que a neurose obsessiva oferece tanto à busca pela análise como à entrada nela, pois o seu sintoma resulta de sua tentativa de refazer o recalque e, com isso, o que surge é a estrutura que se antecipa ao discurso e à interpretação. Tal fato é melhor vislumbrado pelo recurso à exemplificação, tão comum nessa neurose, em que o sujeito surge e desaparece ao mesmo tempo, pois ele diz sem dizer e fala de si como se falasse de um outro. Por isso, Lacan (1989), no seminário “O desejo e sua interpreta- ção”, mostra que ele se coloca em posição terceira em relação ao Outro a fim de garantir o seu desejo, que se coloca, por sua vez, como uma demanda subtraída à lei.

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