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OS IDEAIS DE PERFORMANCE CONTEMPORÂNEOS – A EMPRESA E O ESPORTE

O “TEMPO LIVRE” PRODUTIVO: IDEAIS TECNOLÓGICOS DE UM TEMPO ACELERADO

OS IDEAIS DE PERFORMANCE CONTEMPORÂNEOS – A EMPRESA E O ESPORTE

A identificação da empresa com o indivíduo, frequen- temente observada na contemporaneidade, é consequência do neoliberalismo, que promove a competição generalizada pelos postos de reconhecimento social, tanto entre as pessoas quanto entre as empresas. Desse modo, baseado na concor- rência, o mercado de trabalho mantém uma aceleração regu- ladora que determina, constantemente, quem são os bem- -sucedidos e os fracassados na tarefa do empreendimento individual de suas vidas profissional e pessoal. Corroborando essa ideia, André Gorz (2005) nos diz, em seu livro O Imaterial:

conhecimento, valor e capital, que:

A pessoa deve, para si mesma, tornar-se uma empresa; ela deve se tornar, como força de trabalho, um capital fixo que exige ser continuamente reproduzido, modernizado, alar- gado, valorizado. Nenhum constrangimento lhe deve ser imposto do exterior, ela deve ser sua própria produtora, sua própria empregadora e sua própria vendedora, obri- gando-se a impor a si mesma constrangimentos necessá- rios para assegurar a viabilidade e a competitividade da empresa que ela é. Em suma, o regime salarial deve ser abolido (GORZ, 2005, p. 23).

Semelhante descrição é feita por Birman (2010, p. 38) ao referir-se ao imperativo da felicidade que se impõe aos indiví- duos nos dias que vivemos hoje e ao seu estado de “autoem- preendimento”, com base no qual ele deve superar seus con- correntes para se estabelecer como estimado vencedor: “[...] promovendo sempre a si mesmo como valor, e a expensas do outro, na roleta rivalitária em que se transmudou o espaço social transformado em mercado”. Esse autor prossegue, dizendo-nos que “Cada indivíduo passou a agir e a se repre- sentar, com efeito, como uma pequena empresa neoliberal, na busca pela sobrevivência e sem poder mais contar com a pro- teção de ninguém” (BIRMAN, 2010, p. 37).

Para Ehrenberg, a supervalorização do esportismo, cor- rente na sociedade atual, como forma de empreendimento da existência para o indivíduo, faz parte do que ele descreve como culto da performance. Segundo o autor, esse culto é conse- quência da preponderância do individualismo e da exortação do empreendedorismo como fórmula contemporânea de ser vitorioso, sobretudo no competitivo mundo dos negócios, em que se assumem riscos e desafios.

Desse modo, o modelo do esportista alia-se ao do empre- sário, e, assim, alimenta-se um ideal de herói contemporâneo, com uma forte identificação do indivíduo como uma empresa a ser gerida, objetivando uma alta performance no mercado. Ehrenberg (2010), ao refletir sobre a ideia de sobreviver na contemporaneidade, afirma que a superação dos riscos e das incertezas se dá no mercado, na capacidade de entrega do indi- víduo ao objetivo de vencer seus oponentes, como em uma competição esportiva, porém atuando como um “Indivíduo S/A” (WOOD JUNIOR; PAULA, 2010, p. 203), a fim de usu- fruir tanto de seu desempenho mercadológico, digno de pre- miação financeira para o consumo, quanto do reconhecimento

público, vivenciado como visibilidade alcançada nos meios de comunicação de massa.

De forma semelhante, Gilles Lipovetsky descreve um “culto do vencer” ou “culto do desempenho”, no qual o indi- víduo é chamado a superar a si mesmo e a praticar o “aperfei- çoamento pelo aperfeiçoamento”, seja na vida privada ou na vida pública, no lazer ou no trabalho, absorvendo o consumo em todas as direções. No seu livro A felicidade paradoxal, esse pensamento é evidenciado no seguinte trecho:

Enquanto os atletas, os empresários e outros supervence- dores posam de novos heróis, todos são intimados a ser superativos e operacionais em todas as coisas, a maximizar seus potenciais de forma e de saúde, de sexualidade e de beleza. Termina uma época: na que se anuncia, a sociedade é continuamente chamada a aceitar desafios da concorrên- cia globalizada, o consumo, a desenvolver nossas aptidões, e os indivíduos, a aperfeiçoar seu saber-fazer e saber-ser. Construir-se, destacar-se, aumentar suas capacidades, a “sociedade do desempenho” tende a tornar-se prevalente da hipermodernidade (LIPOVETSKY, 2007, p. 260).

Além de priorizar o “crescimento profissional” como tipo de sucesso, demanda-se que o indivíduo “chegue mais rápido a ele”, ascendendo socialmente e ganhando o reco- nhecimento empresarial desejado de quem “nunca para”. Assim, percebemos a celebração desse ideal de trabalhador(a) na atualidade, caracterizado pela capacidade de “assumir riscos” (o que desde já lembra a analogia entre o empresá- rio e o esportista). Como nos diz Ehrenberg (2010, p. 13), há “um estilo de vida que põe no comando a tomada de riscos

numa sociedade que faz da concorrência interindividual uma justa competição”.

Dessa maneira, concebemos a ampla divulgação e a celebração da figura do empreendedor como fortemente mar- cadas pelo discurso ideológico identificado com a manuten- ção da lógica predatória e concorrencial implementada pelo capitalismo de mercado e a racionalidade que o instrumenta- liza. Esse discurso reforça a imagem do empreendedor como “herói global” (COSTA et al., 2012, p. 368), verdadeiro dono do seu destino, controlador das incertezas e imprevisibili- dades do mercado, dinâmico, tenaz, ambicioso, destemido, autoconfiante, transformado em “[...] guerreiro, em esportista [...] indo à conquista de si mesmo, dos outros, dos merca- dos industriais e financeiros” (ENRIQUEZ, 1997, p. 1 apud COSTA et al., 2012, p. 368).

A face oculta desse discurso do empreendedorismo demonstra sua faceta fetichista e pseudolibertária, na medida em que celebra conquistas individuais de caráter mercadoló- gico, símbolos do sucesso empresarial e social, impulsionando o capitalismo de mercado e o “[...] crescimento econômico de todos baseado na lógica de produção capitalista de livre con- corrência” (ENRIQUEZ, 1997, p.1 apud COSTA et al., 2012, p. 370), ocultando, assim, a visão de uma realidade predatória e desumanizadora do mercado, em que nada se diz:

[...] a respeito das condições de trabalho, ou da precariza- ção que acompanham a vida profissional da maior parte dos empreendedores, sendo apenas reforçados os este- reótipos e mitos sobre as glórias do mundo dos negócios (SARAIVA, 2007 apud COSTA et al., 2012, p. 370).

No que concerne ao tema da (des)qualificação profissio- nal, mencionada há pouco como justificativa e determinante do sucesso ou fracasso dos indivíduos no mercado de traba- lho, o forte apelo à reciclagem de conhecimentos, formação contínua, desenvolvimento de habilidades e atitudes, como meios de sobrevivência ao darwinismo social que impera no mercado, tem repercussões relevantes para a subjetividade do trabalhador. A máxima popular de que “não mais se traba- lha para viver, mas se vive para o trabalhar” pode referir-se também ao tempo gasto como qualificação condicional para o trabalho. A respeito disso, Antunes e Alves (2004) ressaltam:

Um exemplo forte é dado pela necessidade crescente de qualificar-se melhor e preparar-se mais para conseguir trabalho. Parte importante do “tempo livre” dos trabalha- dores está crescentemente voltada para adquirir “empre- gabilidade”, palavra-fetiche que o capital usa para transfe- rir aos trabalhadores as necessidades de sua qualificação, que anteriormente eram em grande parte realizadas pelo capital (ANTUNES; ALVES, 2004, p. 347).

A internalização da lógica acelerada e capitalizada do tempo tem consequências decisivas sobre a forma como os indivíduos conduzem a própria vida. Ser uma pessoa “pro- ativa”, que se dedica às suas obrigações laborais incondicio- nalmente e procura cumpri-las de forma imediata e a con- tento da demanda, tornou-se a norma. Hoje, destaca-se no contexto laboral aquele que está disposto a sacrificar não mais apenas o tempo que lhe “sobra”, mas o máximo pos- sível do tempo que deveria ser dedicado a atividades essen- ciais, como descanso e alimentação. Em outras palavras, o ideal de sujeito da contemporaneidade é aquele que sacrifica

sua própria vida – tanto melhor se o fizer de bom grado – em função do trabalho; é o indivíduo que não tem tempo, e não tem tempo porque produz, “honrando” e fazendo valer a máxima de que tempo é dinheiro.

Talvez o atendimento irrefletido de tantas demandas se deva, em grande medida, à intensiva veiculação midiática de ideais identitários próprios à lógica produtivista no interior da esfera privada, incitando ao “empreendedorismo”, à “pro- atividade”, ao “investimento pessoal”, à “aptidão”, ao corpo “sarado”, entre outros ideais. Aqui, a ideologia neoliberal, ao mesmo tempo em que enfraquece a esfera pública a partir de um Estado mínimo, dessolidarizante e moralista, engolfa o homem em uma multiplicidade de mandatos e “obrigações” cotidianas inatingíveis, fazendo-o sentir-se sempre “atra- sado”, “insuficiente”, “endividado” e “estulto”.

A IMPOSSIBILIDADE DE UM TEMPO LIVRE NO