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2 Rupturas com as instituições e refuncionalizações externas ao teatro burguês:

3.3 Linguagem gestual, experiência e narração

Os múltiplos e variados recursos cênicos mencionados, empregados por Brecht em

Um homem é um homem, como os recursos de “literarização do teatro”, as diferentes

projeções, de títulos e imagens, a utilização de caráter épico das canções, a cortina, apresentavam a função de técnica de montagem, interrompendo o desenvolvimento da ação em sua habitual linearidade do drama burguês e provocando uma ruptura com a forma orgânica, ilusionista, “mágica” e “hipnotizante” do espetáculo, em sua forma ideológica de representação e percepção, voltando-se à construção de um espetáculo pleno de “tensões”, como afirma. Conforme temos visto, a questão da técnica é, em diversos sentidos, de importância crucial para a construção do teatro épico. Benjamin afirma que “as formas do teatro épico correspondem às novas formas técnicas, o cinema e o rádio. Ele está situado no ponto mais alto da técnica” (OE I, p. 83). Em vez de se esforçar naquela “concorrência inútil com o cinema e o rádio”, como diz Benjamin, Brecht buscaria se apropriar e aprender com estes novos aparatos, apropriando-se, em seu trabalho, da técnica de montagem neles presente, intrínseca a eles:

                                                                                                               

Com o princípio da interrupção, o teatro épico adota um procedimento que se tornou familiar para nós, nos últimos anos, com o desenvolvimento do cinema e do rádio, da imprensa e da fotografia. Refiro-me ao procedimento da montagem: pois o material montado interrompe o contexto no qual é montado (BENJAMIN, OE I, p. 133).

Assim, mediante a técnica da montagem, mina-se e frustra-se o desenvolvimento da ação dramática, interrompendo-a, paralisando-a, imobilizando-a e desmantelando-a em suas distintas partes e elementos constitutivos. Acerca do cinema, Benjamin diz que ele teria, com a técnica de montagem que lhe é intrínseca, permitido penetrar “profundamente as vísceras”, “o âmago da realidade”, conforme escreve em A obra de arte na era de sua

reprodutibilidade técnica, desmontando-a tecnicamente, produzindo “imagens” compostas

“de inúmeros fragmentos, que se recompõem segundo novas leis”, desbravando e explorando, então, novas perspectivas e dimensões, construções de olhares, percepções visuais, espaciais e temporais (OE I, 187). Assim, Benjamin compara o “cinegrafista” a um “cirurgião da realidade” (OE I, p. 186-187). Tais considerações poderiam ser estendidas à sua compreensão do trabalho de Brecht e de seus procedimentos, nos quais também identifica, como veremos melhor, um tal trabalho de “desmontagem técnica” da realidade e e recomposição de seus elementos “segundo novas leis”, afirmando que “o teatro épico [...] avança em choques, de forma comparável às imagens de uma tira de filme. Sua forma fundamental é a do choque com o qual se confrontam as situações individuais e bem separadas da peça” (BENJAMIN, VB, p. 45). É importante ressaltar, como observa Sean Carney, que o que se coloca aqui em questão não é uma mera “reprodução da realidade”, mas as possibilidades de “construção” de formas de percepção “novas e históricas” (2005, p. 58).

Segundo Benjamin, o teatro épico seria um “teatro gestual”. Nas duas versões de O

que é o teatro épico?, ele interpreta o seu uso das técnicas de montagem como voltado à

“interrupção da ação”, que estaria “no primeiro plano” no teatro épico, e à obtenção de “gestos” (OE I, p. 80). “O gesto é seu material, e a aplicação mais adequada desse material é a sua tarefa” (BENJAMIN, OE I, p. 80; VB, p. 9), sendo o objetivo do ator, sua “mais alta realização”, “tornar os gestos citáveis” (BENJAMIN, OE I, p. 88; VB, p. 19; 27). Em

Estudos para uma teoria do Teatro épico (Studien zur Theorie des epischen Theaters),

afirma que o “material bruto” a partir do qual trabalha o teatro épico seria “o Gestus encontrado hoje”, tanto “o Gestus de uma ação” quanto “o da imitação de uma ação”

(BENJAMIN, VB, p. 31).

Conforme já abordamos, ao tratar da peça A Medida, a questão da linguagem gestual em sua dimensão de caráter político e histórico-social ocupa lugar crucial no teatro de Brecht. Em traduções disponíveis em português de textos teóricos de Brecht191 e de Benjamin sobre o dramaturgo, tanto o termo Gestus quanto Geste são traduzidos por “gesto”. No entanto, é importante estabelecer aqui uma diferenciação. Inicialmente, os termos aparecem em Brecht de forma não especificada, sem caracterização e distinção clara, dando a entender muitas vezes que são tomados por sinônimos, bem como nos escritos de Benjamin, o que dificulta a compreensão. Porém, ao longo da década de 1930 e 1940, os textos de Brecht dão lugar a algumas definições, especificações conceituais mais precisas, que trazemos aqui para ajudar a melhor compreender e diferenciar as perspectivas dos autores em suas especificidades. Uma das questões centrais para Brecht durante a década de 1930 é justamente o estudo, a pesquisa e a experimentação com o que ele denominará

Gestus, que caracterizará e conceitualizará ao longo de textos a partir da segunda metade

dessa década.192 Como escreve, entre 1937 e 1938, em Sobre a música gestual (Über

gestiche Musik), o Gestus não se reduz à “gesticulação” (Gestikulieren): “não se trata de

movimentos das mãos, que sublinham ou explicam. Trata-se de posturas globais. Uma linguagem é gestual (gestisch) quando ela se baseia no Gestus, mostra determinadas posturas daquele que fala, que ele assume em relação a outros seres humanos” (BRECHT, GBA 22.1, p. 329; 1967, p. 77). Ele diz: “a frase ‘arranca o olho que te incomoda’ é menos eficiente, do ponto de vista do Gestus, do que ‘se teu olho te incomoda, arranca-o’. A última começa apresentando o olho e sua primeira parte tem o Gestus definido de colocar um suposto. A segunda parte, principal, vem como uma surpresa, um conselho libertador” (BRECHT, 1967, p. 77; GBA 22.1, p. 329). O termo latino Gestus será então utilizado, como escreve,                                                                                                                

191 Com exceção da edição Teatro Dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. Porém, em alguns

trechos, também aqui o termo Gestus é traduzido por “gesto”.

192 Cf., acerca desta questão, BORNHEIM, Gerd. “O efeito de distanciamento: o ator”. In: Brecht: a Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992; YUN, Mi-Ae. Walter Benjamin als Zeitgenosse Bertolt Brechts: eine

paradoxe Beziehung zwischen Nähe und Ferne. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 2000, p. 55-57; BOLLE, Willi. A linguagem gestual no teatro de Brecht. Revista Língua e Literatura, São Paulo, n. 5, 1976; e os textos de Brecht: “Über die Verwendung von Musik für ein episches Theater” (1935/1936), in: GBA 22.1, p. 155-164, e a tradução “Sobre o uso da música no teatro épico”, in: Teatro Dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 81-89; “Über gestiche Musik” (1937/1938), in: GBA 22.1, p. 329-331; e as traduções “A Música-‘Gestus’”, in: Teatro Dialético, op. cit., e “Acerca da música-gesto”, in: Estudos sobre Teatro. Tradução de Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978; “Über den Gestus” (Sobre o

Gestus) (1940/1941), in: GBA 22.2, p. 616; “Kurze Beschreibung einer neuen Technik der Schauspielkunst, die einen Verfremdungseffekt hervorbringt” (Breve descrição de uma nova técnica da arte de representar, que produz um efeito de estranhamento) (1940/1941), in: Ibidem, p. 641. O ultimo texto encontra-se traduzido, in: BRECHT, Bertolt. Teatro Dialético, op. cit., p. 165; Idem. Estudos sobre Teatro, op cit., p. 84.

em 1940, em Breve descrição de uma nova técnica da arte de representar, que produz um

efeito de estranhamento (Kurze Beschreibung einer neuen Technik der Schauspielkunst, die einen Verfremdungseffekt hervorbringt), para se referir à “expressão mímica e gestual das

relações sociais que existem entre as pessoas de uma determinada época” (BRECHT, 1967, p. 165; tradução modificada; GBA 22.2, p. 646).193 “Sob um Gestus é compreendido um complexo de gestos (Geste), mímica e declarações”, que as pessoas dirigem umas às outras (BRECHT, 22.2, p. 616). O Gestus, então, apresenta-se como uma “postura global”, “complexa”, dotada de significação histórico-social, que compreende “gesto”, “palavras” e “mímica”: inclusive, “palavras podem ser substituídas por meio de outras palavras, gestos podem ser substituídos por meio de outros gestos, sem que o Gestus mude”; ou ainda, um

Gestus pode apresentar-se também “só em palavras”, como no rádio, ou da mímica sem

palavras, como nos filmes mudos (GBA 22.2, p. 617); também a música pode apresentar um

Gestus.194 Em Sobre o Gestus (Über den Gestus), Brecht fornece o seguinte exemplo: “um homem que vende um peixe mostra entre outras coisas o Gestus de vender”, que é um “Gestus social” (GBA 22.2, p. 617). Em Um homem é um homem, como vimos, o Gestus de compra e venda, de troca de mercadorias, permeia e constitui toda a peça, a partir do qual as relações entre as personagens são mostradas, expostas. Então, ele afirma que o efeito de estranhamento teria por “objetivo”, justamente, “estranhar o Gestus social que subjaz a todos os acontecimentos” (BRECHT, GBA 22.2, p. 646; 1967, p. 165; 1978, p. 84). O efeito de estranhamento “exige a premissa de que aquilo que deve ser mostrado o seja complementado pelo ator com o claro Gestus de mostrar” (BRECHT, 1967, p. 161;

tradução modificada; GBA 22.2, p. 641; 1978, p. 79-80). Assim, o trabalho de exposição do Gestus social permite “adotar uma postura política” frente ao que se representa e apresenta,

frente às ações, comportamentos, acontecimentos, devendo “substituir o princípio da imitação” (BRECHT, 1967, p. 78, p. 84; GBA 22.1, p. 158, p. 329-330). Diz Brecht, em 1940:

                                                                                                               

193 O “termo latino gestus”, como observa Willi Bolle, remonta a Cícero, que o utilizava “no sentido de

‘atitude do corpo’, em particular ‘gestos do ator ou do orador’”, remetendo, portanto, a uma dimensão da “função pública” da linguagem central para Brecht (Cf . BOLLE, Willi. A linguagem gestual no teatro de Brecht. Revista Língua e Literatura, São Paulo, n. 5, 1976, p. 393).

194  Brecht desenvolve a noção de “música-Gestus”, buscando definir e atribuir uma função de Gestus para a

música, na qual ela apresentaria uma postura crítica, política, em relação à ação (Cf: BRECHT, Bertolt. “Über gestiche Musik”. In: GBA 22.1, p. 329-331; “A Música-‘Gestus’”. In: Teatro Dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967; “Acerca da música-gesto”. In: Estudos sobre Teatro. Tradução de Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978).

O ator deve representar os acontecimentos como acontecimentos históricos, isto é, que só acontecem uma vez, que são transitórios e que estão unidos a uma determinada época. O comportamento das pessoas nestes acontecimentos não é simplesmente humano e imutável, tem certas particularidades, tem características ultrapassadas e a serem ultrapassadas em virtude do caminhar da História e está sujeito à crítica do ponto de vista de cada época posterior. O desenvolvimento constante nos distancia o comportamento daqueles que nasceram antes de nós.

Em relação aos acontecimentos e comportamentos da época atual, o ator deve usar a mesma distância que é mantida pelo historiador. Ele deve nos distanciar estes acontecimentos e estas pessoas (BRECHT, 1967, p. 165-166; GBA 22.2, p. 646).

Assim, o trabalho de estranhamento, exposição, apresentação do Gestus social estaria relacionado, conforme afirma, à técnica da “historicização” dos comportamentos humanos: caberia ao ator, então, elaborar o gestual, “os acontecimentos e comportamentos da época atual”, “o Gestus encontrado hoje”, como diz Benjamin, de modo a mostrá-lo assumindo “uma visão crítica da sociedade” (BRECHT, 1967, p. 165; GBA 22.2, p. 645). Deste modo, teríamos uma exposição da esfera das relações sociais de forma historicizada, buscando elaborar suas contradições históricas e estruturais, as contradições não resolvidas do passado que permanecem no presente, “a serem ultrapassadas”. Para isto, o ator “tem de adquirir os conhecimentos sobre o convívio humano que são patrimônio da sua época, tem de adquiri- los participando da luta de classes”, conforme escreve posteriormente, no Pequeno Organon

para o Teatro (BRECHT, 1978, p. 122). Neste texto, afirma que o conceito de Gestus

refere-se ao “âmbito das posturas que as figuras assumem em relação às outras [...] A postura corporal, a entonação e a expressão facial são determinadas por um Gestus social” (BRECHT, GBA 23, p. 89; 1967, p. 209; 1978, p. 124). Mesmo posturas de aparência privada podem ser dotadas de significação histórico-social, política, contraditória, pertencendo ao âmbito do Gestus social, enquanto suas manifestações e exteriorizações: intrinsecamente contraditórias, constituem uma totalidade expressiva “complexa”, uma “postura global”, que remete à totalidade das relações sociais, carregando e expressando, portanto, suas contradições estruturais. Como observa Koudela, Brecht opera uma inversão frente à compreensão usual do gestual, segundo a qual ele seria uma “‘expressão corporal’ de sentimentos e idéias”, vendo-o como “expressão do comportamento real, de atitudes reais”: “não é o ‘interior’ que se objetiva para o ‘exterior’. O interior é orientado pelo exterior, torna-se o seu gestus. [...] O gestus torna, portanto, compreensível e acessível aquilo que é subjetivo (comportamento subjetivo, atitude subjetiva) através daquilo que é intersubjetivo, social” (1991, p. 102). A “postura” ou “atitude” (Haltung), como vimos, seria

mais do que um “estado corporal”, expressando “uma forma determinada através da qual alguém (ou um grupo) se confronta com o ambiente social” (KOUDELA, 1991, p. 102).

Todo acontecimento, de acordo com Brecht, comportaria um “Gestus fundamental” (Grundgestus), que subjaz, molda, informa a ação, cabendo ao ator mostrá-lo (GBA 23, p. 92; 1967, p. 213; 1978, p. 128). Segundo afirma no Pequeno Organon, deve-se enfatizar o “Gestus geral da representação”: aquele “que sempre sublinha o que está sendo mostrado” (BRECHT, 1967, p. 216). O trabalho de elaboração, exteriorização e exposição do Gestus da personagem, pelo ator, deveria ser acompanhado de uma postura crítica, sempre mostrando também que mostra, mostrando “o Gestus de mostrar” e explicitando que esta não é a única possibilidade, mas uma dentre várias, diversas – mostrar o “não – mas”, conforme mencionado. Como afirma entre 1935 e 1936, deve-se garantir ao espectador a chance de imaginar outras ações e comportamentos possíveis, outras posturas “frente às relações dadas”, ou “outras relações político-econômicas” nas quais as personagens poderiam assumir outras posturas, comportar-se, agir e falar de outras formas: assim, “o espectador obtém a ocasião para a crítica do comportamento humano a partir de uma perspectiva social, e a cena é representada como cena histórica. [...] Trata-se, para a arte, de um cultivo do

Gestus” (BRECHT, GBA 22.1, p. 158; 1967, p. 84). O Gestus seria, portanto, a forma de

concretização e expressão das contradições histórico-sociais, de caráter estrutural, a partir do âmbito da materialidade corporal do ator, da “postura global” por ele assumida, sendo por meio de sua exposição, do processo de mostrar o Gestus, mostrando também o “Gestus de mostrar”, que os espectadores poderiam conceber, ponderar, refletir e imaginar as diferentes alternativas possíveis das cenas, comportamentos e ações das personagens, adotando uma postura crítica frente a elas e reconhecendo-as em seu caráter “histórico”, político e socialmente contraditório.195

Segundo Brecht, a recepção negativa de sua montagem de Um homem é um homem por parte da crítica teatral na imprensa da época constituía, principalmente, um “conflito de opiniões” em torno da atuação de Peter Lorre no papel de Galy Gay, remetendo não a uma “mera falta de talento do ator”, mas justamente à “nova arte de atuação” que visa o estranhamento do Gestus e à estranheza gerada devido à sua especificidade, afastando-se                                                                                                                

195 Tendo em vista o que foi dito, seguimos o original no presente texto, mantendo, quando utilizado, o termo

latino, Gestus, traduzindo por “gesto” apenas quando o termo presente no original for o termo alemão, Geste. Para uma análise mais detalhada do aparecimento dos termos nos textos de Brecht, cf. BORNHEIM, Gerd. “O efeito de distanciamento: o ator”. In: Brecht: a Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992; BOLLE, Willi. A linguagem gestual no teatro de Brecht. Revista Língua e Literatura, São Paulo, n. 5, 1976.

radicalmente do modo de atuação dramática convencional e seus habituais “critérios de avaliação” estabelecidos (GBA 24, p. 47). Mesmo Herbert Ihering, crítico que se posicionava a favor de Brecht, publicou um artigo no jornal Berliner Börsen-Courier, no qual critica a pretensão de “radicalização” operada por Brecht com este espetáculo, afirmando que a teoria do teatro épico anunciaria, aqui, um “raciocínio incorreto”, havendo uma má utilização do “estilo épico”, tornado “meio da crítica, da decomposição”, elogiando, por um lado, a atuação de Helene Weigel no papel da viúva Begbick, mas criticando Peter Lorre por não possuir “o pré-requisito decisivo”, sobretudo “para o endurecimento das últimas cenas”, de “clareza e capacidade para falar de forma ilustrativa e expositiva.”196

O próprio Brecht respondeu publicamente a tais críticas, reunindo-as, analisando-as e comentando-as em uma Carta ao “Berliner Börsen-Courier”, intitulada Para a questão dos critérios na avaliação da arte de representar (Zur frage der Masstäbe bei der Beurteilung der Schauspielkunst). Segundo ele, as duas principais críticas à atuação de Lorre

voltavam-se contra “sua forma de falar sem sentido claro” e contra o fato de que “ele só teria representado episódios” (BRECHT, GBA 24, p. 47). Quanto à primeira crítica, Brecht afirma que ela “ocorre menos contra a primeira parte da peça do que contra a segunda, com seus longos discursos”: “os argumentos contra o julgamento em sua própria proclamação, as reclamações no muro antes do fuzilamento e o monólogo de identidade sobre o caixão antes do enterro” (BRECHT, GBA 24, p. 47). Em seu monólogo junto ao caixão, diz Galy Gay: “E eu, meu eu e o outro eu, / Nós somos úteis e por isso somos utilizáveis./ E se não olhei com muita atenção este elefante/ Fecho os olhos também para o que me toca, / E me desprendo do que em mim não agrada aos outros, e assim / Sou agradável” (BRECHT, TC 2, p. 204). Aqui, está subjacente à sua assimilação à lógica da massificação e sua incorporação ao exército, à sua transformação em “máquina de guerra”, o Gestus de compra e venda, presente em toda a peça, como vimos, a partir do qual as relações entre as personagens são expostas: Galy Gay, que inicialmente sai de casa para comprar um peixe,                                                                                                                

196 Cf. IHERING, Herbert. In: Brechts Mann ist Mann: Herausgegeben von Carl Wege. Frankfurt am Main:

Suhrkamp Verlag, 1982, p. 314-316. Acerca de tal “raciocínio incorreto”, Ihering afirma que, ao transmitir a “tipicização, que ele ambiciona, de forma mais clara nos soldados”, ou seja, “nas pessoas que ele critica”, Brecht instauraria aqui uma “contradição”, dado que ele “demonstra uma teoria, que ele afirma, em pessoas que ele nega. Ele experimenta um princípio expositivo, que ele propaga, em um mundo que ele combate. Assim, Brecht elimina seu próprio mundo de pensamento. Deste modo, destrói seu próprio sistema” (Cf.

Ibidem, p. 315). Também o crítico teatral Alfred Kerr, em um artigo sobre a peça publicado no dia seguinte à

estréia, no Berliner Tageblatt, afirma que “não havia nada para salvar” na peça, mas que a “senhora Weigel [...] tentou mesmo assim. Falou com sua brilhante força de articulação”; já “Peter Lorre, o homem no centro”, afirma Kerr, “guardou suas possibilidades de humor para outras tarefas” (Cf. KERR, Alfred. In: Ibidem, p. 318-319).

acaba, pela venda de um falso elefante, sendo incorporado ao exército. Ao “não saber dizer não” e agir orientado pela troca de mercadorias, torna-se um número e um instrumento a serviço da guerra imperialista, é transformado em “máquina de guerra”. Segundo Brecht, foi-lhe relatado que um grande comerciante teria assistido a sua encenação da peça e “compreendido muito bem a cena da venda do falso elefante, rejeitada pelo público em geral”, dizendo: “assim é, [...] assim se realiza um negócio em nosso tempo. Ninguém quer saber algo sobre a mercadoria, contanto que seja comprada”. Poucos saberiam algo sobre comércio, “e um número ainda menor quer saber algo sobre” (GBA 24, p. 45). Enquanto na primeira parte da peça, segundo Brecht, “a forma de falar” teria sido “dissolvida por inteiro segundo o gestual” e não teria atraído muito a atenção e prendido o interesse do espectador, na segunda parte, com seus “longos e conclusivos discursos”, ela teria sido percebida como “monótona em aparência”, “não favorável ao sentido” do espetáculo e à sua clareza (GBA 24, p. 48). Defendendo, desde o início da carta, o modo de atuação de Lorre, Brecht afirma que, na segunda parte da peça, tratava-se de trabalhar e desenvolver um “Gestus fundamental (Grundgestus) muito preciso”, para o qual não se fazia tão crucial o “sentido das frases individuais”, que, frente à exposição do sentido geral da contradição ali presente, seria necessário somente “como meio para um objetivo” (GBA 24, p. 48). As contradições que constituíam o próprio conteúdo dos longos discursos deveriam, segundo Brecht, ser trabalhadas e expostas pelo ator, não buscando “envolver o espectador nas contradições, por meio da identificação com as próprias frases individuais, mas mantendo-o de fora” do processo: “precisava ser a exposição o mais objetiva possível de um processo internamente contraditório como um todo” (GBA 24, p. 48). Assim, suas declarações, ou seus “ditos”, como diz Brecht, enfatizando o caráter de citação, “não foram aproximadas do espectador”, conduzindo-o, “mas afastadas”, mostradas, expostas de forma estranhada, para que ele realize por si próprio a “descoberta” de tais contradições (GBA 24, p. 48). Os “processos intelectuais” que o teatro épico almeja suscitar, proporcionar no espectador, exigiriam uma “transformação dos critérios de avaliação” habituais – relacionada à “refuncionalização social do teatro” – e um outro tipo de temporalidade teatral, a partir de “curvas e saltos”, como vimos, distinto do tempo acelerado, linear, contínuo e progressivo do teatro “tradicional”, voltado para a produção de “processos afetivos”, apresentando-se como “monótono” para o espectador cuja forma de sensibilidade, de percepção estaria habituada, formada e moldada por ele (BRECHT, GBA 24, 49).