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Técnica cinematográfica e indústria cultural: considerações sobre as transformações nas

2 Rupturas com as instituições e refuncionalizações externas ao teatro burguês:

2.2 Técnica cinematográfica e indústria cultural: considerações sobre as transformações nas

O Processo dos Três Vinténs

Prosseguindo em torno do problema da técnica e da luta política por sua refuncionalização, inserindo-se no contexto dos embates brechtianos contra as instituições culturais burguesas, a indústria cultural e a condição de mercadoria da arte, realizemos, por um momento, um desvio em relação à produção brechtiana especificamente teatral, a fim de tratar de O Processo dos Três Vinténs: um experimento sociológico,45 embora, de certa                                                                                                                

45 Cf. BRECHT, Bertolt. “Der Dreigroschenprozess: Ein soziologisches Experiment”. In: GBA 21; e a tradução O Processo do filme A Ópera dos Três Vinténs: uma experiência sociológica. Tradução de João Barrento.

Porto: Campo das Letras, 2005 b. Acerca deste texto, cf. PASTA JÚNIOR, José Antônio. Trabalho de Brecht: Breve introdução ao estudo de uma classicidade contemporânea. São Paulo: Editora Ática, 1986; PEIXOTO, Fernando. Brecht, Vida e Obra. 3a. Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979; FREDERICO, Celso. Comunicação e arte: o experimento sociológico de Brecht. Comunicação & Educação. Ano XIII, no 3, set/dez 2008, p. 13-18; NEIVA, Sara Mello. Análise de “O Processo do Filme A Ópera dos Três Vinténs”. Disponível em: https://contraaarte.wordpress.com/2011/10/24/analise-de-%E2%80%9Co-processo-do-filme-a-opera-dos- tres-vintens%E2%80%9D/

forma, ele não deixe de se configurar como um experimento dotado de aspectos extremamente “teatrais”, no sentido de uma “dramatização”, constituindo um “escândalo” de caráter público, das contradições sociais, conforme ressaltam José Antônio Pasta Júnior (1986, p. 56-58) e Celso Frederico (2008, p. 14).

Em O Processo dos Três Vinténs, Brecht realiza uma crítica do alastramento da forma mercadoria no âmbito da arte e da cultura, enquanto esfera da ideologia burguesa, que se torna, então, como bem mostrou Pasta Júnior (1986, p. 74-75), um diagnóstico acerca da “totalidade da arte”, revelando-se crucial para o desenvolvimento de seu projeto estético- político: com o desenvolvimento técnico, segundo Brecht, “toda a arte, sem exceção”, encontrar-se-ia na condição de mercadoria, “nesta nova situação” imposta à arte “como um todo” (2005 b, p. 82). O texto apresenta inúmeras afinidades e pontos de contato com A

obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de Benjamin, cuja primeira versão foi

publicada em 1936, no qual, assim como Brecht, também relaciona o desenvolvimento técnico à transformação de “toda a função social da arte”, emancipando-se, “destacando-se do ritual” (BENJAMIN, OE I, p. 171),46 bem como a transformações da percepção humana – assunto em que nos aprofundaremos no próximo capítulo.47

Brecht escreve O Processo dos Três Vinténs após perder, em 1930, o processo

judicial contra a empresa cinematográfica Nero-Filme, encarregada da adaptação da Ópera

dos Três Vinténs, publicando-o no terceiro caderno dos Versuche, em 1931. Ele havia

assinado, em 1929, um contrato de adaptação da ópera, no qual constava que teria avalizado                                                                                                                

46 Conforme ressaltado por autores, cf. PASTA JÚNIOR, José Antônio. Trabalho de Brecht: Breve introdução

ao estudo de uma classicidade contemporânea. São Paulo: Editora Ática, 1986, p. 69-74; WIZISLA, Erdmut.

Benjamin e Brecht: História de uma amizade. Tradução de Rogério Silva Assis. São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo, 2013, p. 206; FREDERICO, Celso. Comunicação e arte: o experimento sociológico de Brecht. Comunicação & Educação. Ano XIII, no 3, set/dez 2008, p. 13-18.

47 Cf. Primeira versão do ensaio, in: BENJAMIN, Walter. OE I, p. 165-196; tradução da última versão, in: Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 9-40. A despeito

das diversas afinidades entre os textos, Brecht apresentou uma leitura bastante negativa da categoria de “aura”, central no texto de Benjamin, conectada à “existência única” da obra e seu “valor de culto”, criticando-a por seu “misticismo”. Conforme anota em seu Diário de Trabalho, em 1938, na ocasião em que Benjamin estava em sua casa e escrevia sobre Baudelaire: “Ele usa como ponto de partida algo a que dá o nome de aura, que está ligada aos sonhos (devaneios). Diz ele: se você sente um olhar dirigido a você, mesmo nas suas costas, você o retribui (!). A expectativa de que aquilo para que você olha olhará de volta para você cria a aura. Supõe- se que isso está em decadência nos últimos tempos, junto com o elemento de culto na vida. B[enjamin] descobriu isso enquanto analisava filmes, onde a aura é decomposta pela reprodutibilidade da obra de arte. Uma carga de misticismo, embora sua atitude seja contra o misticismo. Este é o modo como o entendimento materialista da história é adaptado. É abominável” (Cf. BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho, volume I: 1938-1941. Organização de Werner Hecht; tradução de Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2002 a. p. 8-9). Acerca da noção benjaminiana de “aura”, cf. o livro de Taisa Palhares (PALHARES, Taisa Helena Pascale. Aura: a crise da arte em Walter Benjamin. São Paulo: Editora Barracuda, 2006).

o seu direito de colaboração na escrita do roteiro final para a filmagem, “para a proteção da tendência e da forma artística” (BRECHT, GBA 21, p. 449-450). Na ocasião, Brecht produziu, conforme lembra Fernando Peixoto (1979, p. 87), um roteiro, destinado à filmagem, chamado O Tumor. No entanto, rompendo com o contrato, a empresa cinematográfica iniciou as filmagens privando-o de sua colaboração, resultando no filme A

Ópera dos Três Vinténs, de 1931, dirigido por G. W. Pabst, com música de Kurt Weill, que,

também havendo processado a empresa, diferentemente de Brecht, ganhou o processo e obteve poder de decisão sobre a música na versão final da obra, e roteiro de Leo Lania, Bela Balasz e Laszlo Wajda.48 O filme encontra-se disponível, em versão restaurada e com legendas em português, na coletânea Brecht no cinema.49

Conforme enfatiza Celso Frederico, com este processo judicial, longe de pretender realizar uma defesa da propriedade privada, do “direito de propriedade” intelectual – inclusive, sequer acreditava que o ganharia –, Brecht, que já havia se encontrado mergulhado em escândalos de plágio exatamente em torno desta ópera, “consciente da contradição em que se envolvera”, utiliza a ocasião, precisamente, para realizar um exercício de dialética acerca do “funcionamento da cultura” (FREDERICO, 2008, p. 14). Segundo o próprio Brecht, ele levou o processo adiante enquanto um “experimento sociológico”, buscando explorar “as contradições imanentes da sociedade” (GBA 21, p. 509-510), as contradições da ideologia burguesa e suas instituições. Como escreve na epígrafe do texto, “as contradições são as esperanças” (BRECHT, GBA 21, p. 448). Assim, seu objetivo com esse “experimento sociológico” era, realizando um trabalho dialético de crítica imanente da ideologia burguesa, contrapor e explorar as contradições existentes entre as “concepções” ideológicas e a “práxis” de algumas “instituições públicas” burguesas, “da imprensa, da indústria cinematográfica e da Justiça”, levando a cabo um experimento que permitisse observar o movimento de sua atuação na sociedade (BRECHT, GBA 21, p. 448). O caso do processo ganhou grande e polêmica repercussão na imprensa, que publicou matérias nas quais se faziam visíveis diferentes concepções hegemônicas acerca do âmbito da cultura, da                                                                                                                

48 Como relata Fernando Peixoto, na ocasião, o crítico Herbert Ihering “ataca o cenarista comunista Balasz por

ter compactuado com os produtores contra o autor; Balasz defende-se afirmando que seu trabalho visava preservar o sentido político do original” (Cf. PEIXOTO, Fernando. Brecht, Vida e Obra. 3a. Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 90).

49 Cf. A ópera dos três vinténs (Die 3 Groschen-Opera). Direção de G. W. Pabst, Alemanha: Nero-Film, 1931.

In: Brecht no cinema. Versátil Home Video, 2010. Legendas – Português, 3 DVDs (duração total: 453 min.), vol. 1, cap 1 (110 min), p&b. Nesta coletânea, que reúne três DVDs, encontram-se, além de o filme da ópera, outros filmes, como Kuhle Wampe, com roteiro de Brecht e Ernst Ottwalt, Os carrascos também morrem, com direção de Fritz Lang e roteiro de Brecht, bem como depoimentos de Iná Camargo Costa, Marcos Soares e Maria Silvia Betti sobre o trabalho de Brecht.

superestrutura capitalista, configurando um experimento caracterizado por Pasta Júnior (1986, p. 56) como uma “suma ou teoria do escândalo” de Brecht, saturado de implicações para seu trabalho, como veremos. Levando a cabo um embate contra a indústria cultural, conforme escreve Pasta Júnior, ele realiza, com este “experimento sociológico”, uma “dramatização do escândalo”, concebida “em termos teatrais”, na qual estabelece, como “palco”, “os tribunais da Alemanha. Como público, basicamente a Imprensa e, com ela, escritores, militantes políticos, cidadãos” (1986, p. 58). Em O Processo dos Três Vinténs, registro deste grande espetáculo público, ele analisa uma série de excertos de tais matérias publicadas pela imprensa, examinando, dissecando os discursos sociais hegemônicos por ela veiculados, confrontando-os, explicitando seus pressupostos e realizando uma crítica imanente das concepções mutuamente contraditórias às quais recorrem, das quais lançam mão, explorando suas contradições internas e com a perspectiva da práxis no processo de produção. Como diz Brecht, estes excertos, retirados de diferentes jornais, poderiam, no entanto, constar “num único jornal, sem que isso deixasse os leitores muito espantados”, já que tais perspectivas contraditórias remeteriam, segundo afirma, a “uma única postura básica, a postura burguesa” (2005, p. 109; tradução modificada; GBA 21, p. 489).

No texto, Brecht reflete, então, sobre as condições materiais de produção artística no capitalismo, com o desenvolvimento das novas técnicas, das novas mídias e do processo de produção mercantil, vendo também seus potenciais revolucionários, expondo como estariam em contradição com a própria ideologia burguesa e suas concepções “idealistas”, contribuindo para realizar uma crítica imanente das concepções ideológicas idealistas acera da arte e do trabalho artístico presentes na ideologia burguesa, disseminadas pela imprensa. Explorando as contradições das concepções da imprensa, ele afirma que a pequena- burguesia que escreve nos jornais conviveria simultaneamente com dois “diferentes âmbitos de ideias” sobre as mesmas coisas, constituindo-se como uma “esquizofrenia ideológica”: de um lado, “o grande idealismo burguês”, que impõe o “indivíduo” e a “liberdade” sobre a “realidade”; de outro, impõe-se “a própria realidade” regida por interesses econômicos, pelos imperativos do capital, “em todas as suas tendências contra o idealismo”, dominando-o e moldando-o, mas convivendo com ele (BRECHT, 2005 b, p. 109-110; GBA 21, p. 489- 490). Brecht identifica, assim, uma contradição fundamental entre os âmbitos do sistema econômico capitalista e da ideologia burguesa – com suas concepções de teor “idealista” –, entre a práxis de suas instituições e suas “concepções”, que haveria emergido em seu processo judicial: ele havia perdido um processo no qual mobilizou justamente as

concepções do direito da ideologia burguesa, as concepções do “direito do indivíduo”, do direito da propriedade privada “imaterial”, da “propriedade intelectual” – contra as quais se opunha abertamente –, confirmando que “a maquinaria do direito”, na prática, apresentaria a função de permitir e garantir a movimentação do sistema econômico, a lógica de auto- valorização do capital, “enquanto uma peça da maquinaria geral da produção”, negando tais concepções quando se opõem a este objetivo, aos imperativos do capital que regem a realidade (BRECHT, GBA 21, p. 503). Nesta “suma ou teoria do escândalo”, conforme Pasta Júnior caracteriza O Processo dos Três Vinténs, como mencionado, Brecht haveria efetuado um experimento com caráter “exemplar”, “de exemplo dos exemplos”, no qual sintetiza, em um único acontecimento complexo, “o questionamento de padrões literários vigentes e da privatização da propriedade intelectual”, já levado a cabo anteriormente visando a imprensa e a crítica literária50, que se insere em sua luta por uma “performance pública e exemplar” levada a cabo na década de 1920 e no começo da década de 1930 até o exílio (PASTA JÚNIOR, 1986, p. 56-57). Assim, ressalta o autor, ao escrever e publicar O

Processo, Brecht estaria, então, atuando publicamente em um experimento que visava

cotejar a práxis das instituições com suas concepções, mas na medida em que intervém no sentido daquela “dramatização do escândalo”, agora, voltando-se ao cerne da questão: “o problema da mercadoria”, “de onde rebate em cadeia na Imprensa e aparelhos conexos, na indústria cultural, em geral, e no próprio aparelho de Justiça”, além de rebater “na própria obra de Brecht” (PASTA JÚNIOR, 1986, p. 56). Conforme afirma o dramaturgo, o processo teria trazido à tona, assim, uma série de concepções características do “estado atual da ideologia burguesa”, mostrando, a partir de tais instituições envolvidas em seu experimento, apenas “uma pequena parte do enorme complexo ideológico que constitui a cultura”, que, diz Brecht, “apenas pode ser julgada quando este complexo é observado, e a observação é feita de forma acessível, em sua práxis”, em uma relação dialética com a “realidade” (BRECHT, GBA 21, p. 448). Ao perder o processo, segundo Brecht, “demonstrou-se a elasticidade das leis, deu-se o direito à áspera realidade, mostrou-se a versatilidade e o inevitável declínio das concepções burguesas com relação à propriedade (que só pode ser sagrada para os proprietários) e à arte (cujas unidades ‘orgânicas’ precisam ser cada vez mais quebradas)”, no processo de produção artística mercantil (GBA 21, p. 462). Esta                                                                                                                

50 Aqui se inserem os escândalos públicos levados a cabo por Brecht em torno da crítica aos “padrões literários

vigentes” e à noção de “propriedade intelectual” envolvendo a questão do plágio, analisados por Pasta Júnior (Cf. PASTA JÚNIOR, José Antônio. “Hydatopyranthropos (A organização do escândalo)”. In: Trabalho de

contradição fundamental entre o “grande idealismo burguês” e o âmbito da própria estrutura econômica capitalista, afirma, não pode ser liquidada “sem com isso liquidar também todo o sistema burguês” (BRECHT, 2005 b, p. 110; GBA 21, p. 490).

Assim, no texto, Brecht proporciona-nos um exercício dialético de crítica da ideologia burguesa, no contexto de uma aprofundada reflexão materialista sobre a arte, pensando-a pela perspectiva das transformações modernas em suas condições materiais de produção, circulação e recepção no capitalismo. De acordo com Brecht, o filme da Ópera

dos Três Vinténs haveria sido realizado “de forma tão comercial quanto (e só assim)

possível” (BRECHT, GBA 21, p. 449). Constituindo-se, na época, em êxito comercial e gerando diversas polêmicas, como observa Fernando Peixoto, o filme “chega a manter certa coerência política” em seu enredo, no qual “Macheath salva-se, no final, por ter assumido a direção de um banco, tornando-se assim ‘acima de qualquer suspeita’” (1979, p. 89-90), tornando-se, portanto, um grande capitalista, passando de criminoso marginal, que tem conchavo com a polícia, a um grande criminoso explorador perfeitamente inserido na legalidade do sistema econômico estabelecido, radicalizando a exposição do caráter criminoso do modo de produção capitalista presente na Ópera dos três vinténs, resumido em sua famosa frase: “o que é um assalto a um banco comparado à fundação de um banco?” (BRECHT, TC 3, p. 103). Tal movimento de radicalização temática da exposição da estrutura criminosa exploradora do sistema capitalista, em sua própria esfera legal, será ainda acentuado, retrabalhado e levado adiante por Brecht no Romance dos três vinténs, no qual, segundo Benjamin, Brecht haveria dotado a “sátira”, “uma arte materialista”, de caráter “dialético” (BENJAMIN, VB, p. 94), promovendo experimentações e inovações na forma do “romance policial”.51

O filme, no entanto, em sua forma, apresenta fortes aspectos ilusionistas, ou “culinários”, para utilizar a expressão brechtiana, para os quais as canções contribuem especialmente, como já ocorrido na montagem da ópera, adequando-se ao paladar estético burguês mercadológico, porém, agora tendo seu uso ilusionista ainda mais acentuado, sem romper com as estabelecidas formas de representação e percepção ideológicas, como na mencionada canção Jenny-Pirata, retirada da boca de Polly, em sua cena de casamento com Mac, e colocada, no filme, na boca da própria personagem Jenny, na cena em que delata                                                                                                                

51. Cf. BRECHT, Bertolt. Romance dos três vinténs. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1976; BENJAMIN, Walter. “Brechts Dreigroschenroman”. In: VB, p. 84-94. Infelizmente, uma análise do romance foge à proposta deste trabalho. Acerca do romance, cf. também PEIXOTO, Fernando. Brecht, Vida e

Mac, vingando-se dele, amenizando, deste modo, a função de choque e contradição em relação à ação antes cumprida pela canção, contribuindo para a criação de um universo “enfeitiçador”. Na época, conforme registra Peixoto, “um jornal de direita afirma que o filme parecia um conto de fadas, narrado com tanta elegância que o espectador esquece completamente as intenções do autor, fixando-se exclusivamente na extraordinária beleza da forma” (1979, p. 90).

Na produção do filme, portanto, não teriam sido explorados os potenciais políticos da própria técnica cinematográfica em seu âmbito formal, sobre os quais Brecht discorre em

O Processo dos três vinténs. Com o desenvolvimento técnico, temos agudas transformações nas condições materiais de produção e circulação da arte, assim como de recepção. O desenvolvimento da técnica, como o rádio e o cinema, com seu procedimento de montagem, acarreta também uma transformação da percepção, como também tematizará Benjamin, assunto ao qual retornaremos no próximo capítulo, que constituirá aspecto central de sua interpretação do teatro épico reconstituída neste trabalho, com a noção de “vivência de choque” (Schockerlebnis), intimamente associada ao desenvolvimento técnico moderno e às transformações no âmbito material com o capitalismo, conforme escreverá em Sobre alguns

temas em Baudelaire. Já no século XIX, o próprio desenvolvimento da imprensa moderna,

do mercado editoral, confrontando a literatura com a condição de mercadoria, e da escrita publicitária, dos reclames, como reflete Benjamin, teria provocado impactantes modificações nas formas de percepção e linguagem. Como escreve em 1928, em Rua de

Mão Única (Einbahnstraße), acerca das mutações na percepção, na linguagem, na própria

palavra escrita, associadas ao desenvolvimento técnico e aos imperativos econômicos da “vida pública” na sociedade capitalista:

A escrita, que no livro impresso havia encontrado um asilo onde levava sua existência autônoma, é inexoravelmente arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do caos econômico. Essa é a rigorosa escola de sua nova forma. Se há séculos ela havia graduamente começado a deitar-se, da inscrição ereta tornou-se manuscrito repousando oblíquo sobre escrivaninhas, para afinal acalmar-se na impressão, ela começa agora, com a mesma lentidão, a erguer-se novamente do chão. Já o jornal é lido mais a prumo que na horizontal, filmes e reclames forçam a escrita a submeter-se de todo à ditatorial verticalidade. E, antes que um contemporâneo chegue a abrir um livro, caiu sobre seus olhos um tão denso turbilhão de letras cambiantes, coloridas, conflitantes, que as chances de sua penetração na arcaica quietude do livro se tornaram mínimas (BENJAMIN, OE II, p. 28).

Deste modo, como veremos melhor no próximo capítulo, se, conforme Benjamin, o advento da imprensa teria sido uma condição material de possibilidade para a difusão do romance burguês, constituindo-se como uma das manifestações da destruição das formas tradicionais de narrativa oral, como abordará em seu ensaio, de 1936, O Narrador.

Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, o desenvolvimento da técnica cinematográfica, por outro lado, impactará a própria escrita moderna, a própria forma do romance. Com o cinema, teríamos, então, outra fase de transformações nas formas de percepção humana, de sensibilidade e de linguagem, incidindo sobre as formas de recepção da arte, de espetáculos teatrais, bem como sobre a própria forma de leitura da palavra escrita: “o espectador de cinema”, como diz Brecht em O processo dos três vinténs, em uma reflexão semelhante à de Benjamin, “lê uma narrativa de forma diferente” (BRECHT, 2005 b, p. 79), assim como assiste a uma peça de teatro de forma diferente. O sujeito da era do cinema teria uma outra forma de percepção, à qual o teatro e a literatura devem conseguir corresponder. Isso vale também para aquele que escreve, que, como enfatiza Brecht, também é um espectador de cinema, tendo, portanto, suas formas e técnicas de expressão radical e profundamente transformadas, modificadas, metamorfoseadas com o desenvolvimento de novas técnicas:

A utilização da aparelhagem força igualmente o romancista que a utiliza a querer fazer também o que a aparelhagem consegue fazer, a integrar na realidade que constitui o seu assunto aquilo que ela mostra (ou pode mostrar), e sobretudo a conferir à sua própria atitude no acto da escrita o caráter próprio do recurso à aparelhagem (BRECHT, 2005 b, p. 79).

Tal “caráter próprio do recurso à aparelhagem”, enfatizado por Brecht, leva-nos diretamente à noção de “montagem”, princípio mesmo da técnica cinematográfica. A transformação “das funções sociais” da arte requer, segundo Brecht, como temos visto, uma mudança dos seus “meios de representação” (BRECHT, 2005 b, p. 80). Neste processo de pesquisa e experimentação formal, radical, inovadora e profunda, a questão da técnica é crucial para Brecht, que, além de realizar experimentos em busca da apropriação dos novos