• Nenhum resultado encontrado

2 Rupturas com as instituições e refuncionalizações externas ao teatro burguês:

2.4 O caso da peça de aprendizagem A Medida: concerto-comício e partido

2.4.2 Texto

Tendo em vista o que foi dito, A Medida não deve ser interpretada como uma peça para demonstração de “tese”, na qual haveria uma defesa autoritária da submissão do individuo ao Partido, tampouco é mostrado o “comportamento político correto”, seja por meio dos “quatro agitadores”, seja por meio do “coro de controle”, diferentemente do que defendem as leituras tradicionalmente realizadas por grande parte da crítica, como bem observam alguns autores.133 Isto é ressaltado pelo próprio Brecht em suas anotações sobre a peça, afirmando que ela não apresentaria “receitas para a ação política” (GBA 24, p. 101). Neste sentido, compreendido, como vimos, enquanto um “modelo” para o exercício coletivo de imitação crítica da ação, o texto da peça é atravessado pelo estranhamento em sua construção formal, a fim de possibilitar aquele exercício de “dialética”, como afirma Brecht acerca da peça,134 em que a construção coletiva da ação política revolucionária, a relação entre indivíduo e coletivo revolucionário, a “estratégia e tática do Partido”, conforme ressaltado por Eisler, são objetos de investigação crítica, debate, discussão, explorando suas contradições. O Partido não é apresentado como organização hierárquica, verticalizada, burocratizada e dotada de autoridade absoluta, mas, como observa Andrzej Wirth, citado por Hans-Thies Lehmann, coloca-se, enquanto instância coletiva, como um dos participantes do experimento, do jogo: o coro de controle “nunca fica no papel do julgador, mas participa da ação e funciona de forma diversa como a voz das massas. Por causa desta posição vaga e                                                                                                                

133 Cf. GATTI, Luciano. A peça de aprendizagem: Heiner Müller e o modelo brechtiano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015, p. 70-71; KOUDELA, Ingrid. Brecht: Um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva; Editora da Universidade de São Paulo, 1991, p. 68.  

134 In: STEINWEG, Reiner. Die Maßnahme: Kritische Ausgabe mit einer Spielanleitung von Reiner Steinweg.

indistinta a sua sentença nunca pode valer como a última palavra” (WIRTH apud LEHMANN, 2009, p. 397). “Há muito já não os escutamos como juízes / Mas desde já como aprendizes”, diz o coro de controle (BRECHT, TC 3, p. 255). Aqui, a forma de organização do Partido, sua “estratégia e tática” tornam-se objeto de discussão do experimento coletivo, do exercício de atuação, em uma parábola que aponta para uma crítica do contexto atual do Partido Comunista Alemão. Inclusive, como bem observa Steinweg, enquanto o jovem camarada aguarda certas instruções específicas por parte do Partido, ao perguntar, de início, aos quatro agitadores se haviam trazido com eles alguma “carta do comitê central com instruções sobre o que devemos fazer” (TC 3, p. 238), o Partido, porém, nunca fornece “instruções concretas para situações concretas, como o jovem camarada espera”, mas “o coletivo precisa decidir autonomamente na situação concreta” (STEINWEG, 1971, p. 135). A peça se inicia com a seguinte diálogo entre o coro de controle e os quatro agitadores:

O CORO DE CONTROLE - Adiantem-se! Seu trabalho foi bem-sucedido, também nesse país a revolução está em marcha, e as fileiras de combatentes estão organizadas. Estamos de acordo com vocês.

OS QUATRO AGITADORES – Alto, temos algo a dizer! Queremos comunicar a morte de um camarada.

O CORO DE CONTROLE – Quem o matou?

OS QUATRO AGITADORES – Nós o matamos. Atiramos nele e o jogamos numa mina de cal.

O CORO DE CONTROLE – O que ele fez para que vocês o matassem? OS QUATRO AGITADORES – Muitas vezes fez o que era certo, algumas vezes o que era errado, mas por último colocou em risco o movimento. Ele queria o certo e fez o errado. Exigimos sua sentença.

O CORO DE CONTROLE – Mostrem-nos como e por que aconteceu e ouvirão nossa sentença. (BRECHT, TC 3, p. 237, grifos nossos).

O coro de controle, portanto, é logo interrompido pelos quatro agitadores, em sua afirmação precipitada do caráter “bem-sucedido” do trabalho, como bem observa Wirth, e quando, no fim da peça, o coro de controle volta a afirmar que o “trabalho foi bem sucedido”, a afirmação carece de fundamentação (WIRTH apud LEHMANN, 2009, p. 397). Deste modo, “o texto tem a forma de uma argumentação, mas não apresenta a substância de um argumento. Só se comunica a derrota, fuga e revés da revolução” (WIRTH apud LEHMANN, 2009, p. 397), além da morte de um camarada – e mesmo que, no meio tempo entre os acontecimentos e o relato, houvesse se desenvolvido um contexto de mobilização política revolucionária, seria significativo o fato de o texto da peça se calar quanto a isso, como afirma Wirth (apud LEHMANN, 2009, p. 397).

A peça, portanto, inicia-se com “a medida” já executada e a exigência, por parte dos quatro agitadores, de uma “sentença” do coro de controle. Eles passam, então, a encenar uma peça dentro da peça, na qual um dos quatro agitadores representa a cada vez o jovem camarada, em um recurso de estranhamento com o objetivo de mostrar como se sucederam os fatos que os fizeram matá-lo. Aqui, aquela postura de “mostrar” do estranhamento subjaz e perpassa toda a construção formal do texto. Então, como observa Luciano Gatti, a peça é constituída por três distintos registros temporais que se intercalam: o diálogo presente dos quatro agitadores com o coro de controle; a “narrativa” dos acontecimentos passados por parte dos quatro agitadores ao coro de controle, de modo que temos uma dimensão temporal narrativa de passado “épico”; e o recurso da peça dentro da peça, encenando o comportamento do jovem camarada em uma dimensão temporal de “presente dramático” (GATTI, 2015, p. 52).

No trecho citado, já está presente a questão do “estar de acordo” (Einverständnis

sein), que atravessa toda a peça: aqui, na primeira fala do coro de controle, mostra-se como

um “acordo” um tanto apressado com o caráter “bem-sucedido” do trabalho, como mencionado. Central nas peças de aprendizagem visando um debate, uma discussão crítica das relações entre indivíduo e o âmbito do coletivo, da coletividade, a questão do “estar de acordo” reaparece logo em seguida, quando, após os quatro agitadores encontrarem o jovem camarada na última Casa do Partido antes da fronteira com a China, ele expressa claramente seu “estar de acordo” com os pressupostos de clandestinidade do trabalho político revolucionário de agitação e propaganda a ser realizado por eles. Temos, então, a cena de “anulação” (Auslöschung) dos rostos dos militantes por meio do gesto de colocar uma máscara, realizado pelos quatro agitadores e o jovem camarada. Tal “anulação” remete, por um lado, a uma necessidade imposta pelas condições da militância política clandestina, do trabalho político ilegal, de modo que não podem ser reconhecidos, devendo atravessar a fronteira passando-se por chineses. Aqui, temos a necessidade de “apagar os vestígios”, os “rastros”: um motivo recorrente em Brecht – assim como em Benjamin –, presente no poema inicial do Manual para habitantes das cidades, intitulado “Apague os vestígios” (Verwisch die Spuren).135 Em seus comentários aos poemas de Brecht, Benjamin diz que tal poema, antes de “apresentar a cidade como o emigrante a experiencia em país estrangeiro”, conforme interpretado por Arnold Zweig, apresentaria a perspectiva dos que lutam “pela                                                                                                                

135 Cf. “Apague as pegadas” (“Poemas de um manual para habitantes das cidades”). In: BRECHT, Bertolt. Poemas 1913 – 1956. Seleção e tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 57.

classe explorada”, que seriam como um “emigrante em seu próprio país”: “o trabalho político na República de Weimar”, diz Benjamin, “significou para os comunistas prudentes uma cripto-emigração”, como “precursora da ilegalidade” (VB, p. 67-68). Assim, o tema do apagamento dos “vestígios”, dos “rastros”, faz-se aqui presente como necessidade imposta pela resistência política no contexto da militância clandestina, como condição de possibilidade do trabalho de luta política ilegal.136 Por outro lado, a “anulação” remete também à exigência de destruição da noção de individualidade burguesa e à renúncia ao heroísmo, à busca individualista de “glória” pessoal, para a construção coletiva da ação política revolucionária137: eles se tornariam “folhas em branco, nas quais a revolução escreve suas orientações”, diz o Diretor da Casa do Partido, representado por um dos quatro agitadores (BRECHT, GBA 3, p. 104). Ao entregar-lhes as máscaras, ele diz: “A partir deste momento vocês não são mais ninguém, a partir deste momento, e talvez até o seu desaparecimento, vocês são operários desconhecidos, combatentes, chineses” (BRECHT, TC 3, p. 241). Como ressalta Luciano Gatti, enfatiza-se, aqui, “o desprendimento em relação a uma concepção de individualidade anterior à dialética entre indivíduo e coletividade buscada pela peça” (2015, p. 55). “Falar, porém / ocultando o falante. / Vencer, porém / Ocultando o vencedor. Morrer, porém / Ocultando a morte. / Quem não faria muito pela                                                                                                                

136 Por outro lado, como ressalta Irving Wohlfarth, em um artigo em que realiza uma análise dos inúmeros

aspectos envolvidos no tema do “apagamento dos vestígios” em Benjamin, “apagar os vestígios”, os “rastros”, foi uma prática executada politicamente também pelo fascismo (Cf. WOHLFARTH, Irving. “‘Apagar os vestígios’: Sobre a dialética de um lema” (Tradução de Jaime Ginzburg). In: Walter Benjamin: Rastro, aura e história. Sabrina Sedlmayer, Jaime Ginzburg (Organizadores). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, p. 212). Neste sentido, comentando e interpretando os poemas de Brecht, Benjamin vê, no terceiro poema do Manual

para habitantes das cidades, uma referência à prática do nazismo, que, realizando uma “paródia sádica” do

“projeto histórico” revolucionário da esquerda de “expropriação dos expropriadores”, baniu os judeus do país, de modo que o poema seria extremamente “revelador”, já apresentando, antecipadamente, “para quais objetivos o nacional-socialismo precisa do antissemitismo” (Cf. BENJAMIN, Walter. VB, p. 70; “A Cronos”. In: BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956, op. cit., p. 61). Porém, Benjamin muda essa interpretação posteriormente, realizando uma crítica desse poema e autocrítica de seu comentário como “piedosa falsificação”, devido a diálogos com o ex-comunista Heinrich Blücher, que interpretava diferentemente o teor politicamente antecipador, o “caráter profético” de tais versos como remetendo a “nada além do que uma formulação da práxis da GPU”, da polícia secreta soviética. Benjamin passa, então, a interpretar o verso final do poema, “assim falamos com nossos pais”, como se tratando de uma “expropriação dos expropriadores não em proveito do proletariado, mas dos expropriadores mais poderosos”, afirmando que esses poemas de Brecht revelariam “como os piores elementos do PC comunicam-se com os mais sem escrúpulos no nacional- socialismo”. (Cf. BENJAMIN, Walter. GS VI, p. 540). Como observa Irving Wohlfarth, pode-se concluir dessa interpretação revista que “certos poemas de Brecht não eram destinados, como Benjamin alegou, para tornar-se um cifrado ‘amanhã’; eles precisam ser interpretados no momento”, referem-se à conjuntura (Cf. WOHLFARTH, Irving. “‘Apagar os vestígios’: Sobre a dialética de um lema” (Tradução de Jaime Ginzburg). In: Walter Benjamin: Rastro, aura e história, op. cit., p. 214).

137 Não se deve ver aqui, como ressaltam autores, uma negação e destruição da própria “pessoa” ou

“indivíduo”, mas desta antiga noção de “individualidade”, à qual se seguirá, então, uma nova individualidade a ser construída mediante a inserção do sujeito no coletivo revolucionário e sua atuação política (Cf. STEINWEG, Reiner. “Brechts ‘Die Maßnahme’ – Ubüngstext, nicht Tragödie”. In: Alternative 78/79, 1971, p. 142; KNOPF, Jan. Brecht-Handbuch: Theater. Stuttgart: Metzler, 1980, p. 420).

glória, mas quem / O faz pelo silêncio? [...] E a glória procura em vão / Pelos autores do grande feito” (BRECHT, TC 3, p. 242), dizem os versos da canção “Elogio ao trabalho ilegal”, cantada pelo coro de controle. Nestas condições, os quatro agitadores e o jovem camarada dirigem-se à China, levando os “ensinamentos dos clássicos” do comunismo e dos propagandistas, “o ABC do comunismo”. “Não erradicamos a miséria mas falamos da erradicação de sua origem”, dizem os quatro agitadores (BRECHT, TC 3, p. 242).

O “estar de acordo” do jovem camarada com as condições da militância política clandestina é então rompido quando, em desacordo com a avaliação dos quatro agitadores de que o momento não era ainda apropriado para uma insurreição e ocupação dos quartéis, retira a máscara e rasga-a em seguida, em um gesto desesperado de rompimento com o “acordo” antes manifestado com a necessidade do anonimato, da “anulação” do rosto, condição para a luta política clandestina. “E olhamos, e no crepúsculo/ Vimos seu rosto desvelado / Humano, aberto e sincero. Ele havia / rasgado a máscara”, dizem os quatro agitadores (BRECHT, TC 3, p. 261). Interpelado por seus companheiros sobre as razões para considerar o momento politicamente oportuno para revolta, a insurreição e a ocupação, o jovem camarada não se mostra capaz de expô-las, reduzindo-se a afirmar: “vejo com meus dois olhos que a miséria não pode esperar. Por isso me oponho à sua decisão de esperar”. E volta a afirmar: “faço apenas o que é humano”, “meu coração bate pela revolução” (BRECHT, TC 3, p. 260). Essa incapacidade de fornecer sua análise conjuntural, de fundamentar “sua avaliação da situação” e sua proposta de ação política, como ressalta Steinweg (1971, p. 135-136), revelar-se-ia nos próprios “modelos de linguagem” utilizados por Brecht para a construção do “papel do jovem camarada”, expondo “modelos de formas de pensamento idealistas”. Assim, defende Steinweg (1972, p. 479-480), Brecht expõe aqui “o perigo da ideologização”, de modo que “o jovem camarada não argumenta; ele ‘acredita’”. Em outro gesto de negação do compromisso assumido com a construção coletiva do trabalho de militância política, o jovem camarada rasga os panfletos contendo os “ensinamentos dos clássicos”, pois “falam de métodos que abrangem a miséria em toda sua extensão”, mas “não são a favor de que se dê ajuda imediata a todo miserável” (BRECHT, TC 3, p. 258). Quando os quatro agitadores exigem que, “em nome do Partido”, ele dissuada os desempregados de ocuparem os quartéis e os convença a unirem-se à manifestação dos trabalhadores, o jovem camarada questiona, então, a composição e legitimidade da autoridade do Partido. À pergunta “Mas quem é o Partido?”, do jovem camarada, os quatro

agitadores respondem: “Nós somos ele / Você e eu e vocês – nós todos” (TC 3, p. 259).138 Aqui, surge a polêmica imagem da oposição estabelecida entre os âmbitos individual e partidário, em termos dos “dois olhos do indivíduo” que, impelido e comovido pela “visão da miséria”, deseja agir de modo imediatista, e os “milhares de olhos do Partido” que, enquanto “tropa avançada das massas”, instância organizadora da construção coletiva da militância, apresentaria visão estratégica, como consta na canção “Elogio do Partido”. Segundo Brecht, “o ser humano individual está sujeito a uma causalidade exterior enredada e pode tornar-se senhor de seu destino apenas como membro de um coletivo, inevitavelmente contraditório em si mesmo. Ele registra apenas impressões fracas e crepusculares da causalidade que lhe é imposta” (GW 15, p. 274). Tal “inevitável contraditoridade” do coletivo e de suas relações com o indivíduo constitui, na peça, objeto de investigação.

A questão do “estar de acordo” reaparece, então, na ocasião da morte do jovem camarada que, após ter sido identificado como “elemento estranho” e gerado a perseguição do coletivo, manifesta seu “estar de acordo” com a “medida” de que os quatro agitadores nele atirassem e o jogassem numa mina de cal, de modo a queimar seu rosto, impedindo sua identificação. Aqui, reaparece também a questão da “anulação” do rosto como necessidade de “apagar os rastros”, agora relacionada à necessidade de fuga imediata para sobrevivência do coletivo, de forma que a “anulação”, como ressalta Gatti, apresenta um duplo sentido, podendo “indicar tanto a clandestinidade da militância comunista quando a morte física do jovem camarada. A relação entre indivíduo e coletivo determinará um ou outro resultado” (2015, p. 66). Lembrando a relação dialética existente entre as peças de aprendizagem, ressaltada por Steinweg (1971, p. 121), A Medida dialoga aqui com questões presentes nas peças de aprendizagem anteriores acerca do “estar de acordo”. Nas óperas escolares Aquele

que diz sim (Der Jasager) e Aquele que diz não (Der Neinsager),139 estava presente o “estar

de acordo” do indivíduo com a necessidade de sua própria morte, de seu sacrifício em função do coletivo, relacionada também ao risco de fracasso de uma missão realizada em uma viagem. Os desdobramentos da questão do “estar de acordo”, então, modificam-se nas                                                                                                                

138 Como ressalta Steinweg, tal trecho foi acrescentado por Brecht na versão de 1931 e remete ao artigo de

Otto Biha, publicado na revista Die Linkskurve após a estreia da peça, no qual ataca a suposta perspectiva teórica “abstrata” de Brecht acerca do Partido Comunista, conforme mencionado, e escreve: “o Partido somos nós – eu e você, camarada” (Cf. BIHA, Otto. Die Linkskurve, janeiro de 1931, n.1, p. 12-14. In: STEINWEG, Reiner. Die Maßnahme: Kritische Ausgabe mit einer Spielanleitung von Reiner Steinweg. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972, p. 355; STEINWEG, Reiner. “Die Maßnahme” – Ubüngstext, nicht Tragödie. In: Alternative 78/79, 1971, p. 135).

peças de acordo com as diferentes circunstâncias. Em Aquele que diz sim, um menino, cuja mãe encontra-se doente, acompanha uma viagem realizada por um professor e três estudantes a fim de obter ajuda médica para uma epidemia alastrada na comunidade; no entanto, durante a viagem o menino também fica doente, colocando em risco a missão de ajuda à comunidade. Nessas condições, manifesta seu “estar de acordo” com sua morte e é jogado no vale. Já em Aquele que diz não, trata-se de uma viagem de estudos para as montanhas: o menino, cuja mãe encontra-se enferma, deseja acompanhar o professor e os estudantes a fim de ajudar sua mãe, dado que existem muitos médicos que moram nas montanhas. Inicialmente, manifesta seu “estar de acordo” com os imprevistos que poderiam surgir; durante a viagem, ele mesmo fica doente e é então confrontado com um “grande costume” existente há tempos, conforme o qual quando alguém não é capaz de continuar na viagem, deve ser jogado no vale. Aqui, porém, o menino manifesta seu desacordo com o costume, dadas as diferentes condições, em que a volta da viagem não colocava em risco a existência de toda a comunidade, como em Aquele que diz sim. Questionado sobre o fato de antes ter dado seu “acordo” com as condições da viagem – “sobre ter dito a” e agora, portanto, dever “dizer b” –, diz ele:

Aquele que disse a, não tem que dizer b. Ele também pode reconhecer que a era falso. Eu queria buscar remédio para minha mãe, mas agora eu também fiquei doente, e, assim, isto não é mais possível. E diante desta nova situação, quero voltar imediatamente. E eu peço a vocês que também voltem e me levem para casa. Seus estudos podem muito bem esperar. E se há alguma coisa a aprender lá, o que eu espero, só poderia ser que, em nossa situação, nós temos que voltar. E quanto ao antigo grande costume, não vejo nele o menor sentido. Preciso é de um novo costume, que devemos introduzir imediatamente: o costume de refletir novamente diante de cada nova situação (BRECHT, TC 3, p. 231).

Dialogando entre si, as duas peças deveriam ser trabalhadas e encenadas conjuntamente.140 A questão do “estar de acordo” envolve um exercício de aprendizado. Deve-se “aprender a estar de acordo”, conforme a fala do coro no início das peças: “Muitos dizem sim, mas sem estar de acordo. / Muitos não são consultados, e muitos / Estão de acordo com o erro. Por isso: / O mais importante de tudo é aprender a estar de acordo” (BRECHT, TC 3, p. 217; p. 225).141 Segundo Steinweg, toda a sorte de afirmações                                                                                                                

140 Cf. STEINWEG, Reiner. “Die Lehrstücke als Versuchsreihe”. In: Alternative 78/79, 1971, p. 122.

141 Esta versão de Aquele que diz sim corresponde à segunda versão da peça. A primeira versão havia sido

escrita a partir de uma peça japonesa de teatro Nô, que fora traduzida para o alemão, por Elisabeth Hauptmann, com base na tradução para o inglês de Artur Waley, e apresentava também uma viagem motivada por estudos. A recepção positiva da peça, elogiada pela Igreja e por setores conservadores, impulsionou discussões. Foram

“ideológicas” do jovem camarada, de teor “idealista”, mostrariam que seu “estar de acordo” inicial era, na verdade, “falso”, dado a partir de um “desconhecimento” das reais condições do trabalho e de uma “exagerada auto-confiança” (1971, p. 138). A questão do “estar de acordo”, em A Medida, não deve, então, ser lida como exigência autoritária de submissão do indivíduo ao Partido, ou defesa de seu sacrifício, mas como movimentação da relação “dialética entre indivíduo e coletividade,” como observa Luciano Gatti (2015, p. 58), em que há um questionamento recíproco entre as duas instâncias, prevendo uma reflexão coletiva e crítica dos costumes, seu estranhamento, sua desnaturalização: nesse sentido, bem ressalta Gatti, a função do coletivo não seria “sobrepor-se à sabedoria individual, mas conferir-lhe sua dimensão coletiva, pois só merece o nome de sabedoria aquele conhecimento capaz de atender à tarefa coletiva chamada por Brecht de ‘transformação do mundo’. Somente a sabedoria produzida coletivamente é válida” (2015, p. 60). Aqui, coloca-se um debate sobre a construção coletiva do próprio conhecimento: a “sabedoria” é concebida como um conhecimento construído coletivamente e coletivamente útil, passível de ser “mostrado” aos