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2. LITERATURA NOS DOCUMENTOS OFICIAIS

2.1 LITERATURA POTIGUAR

Jamais se escreverá corretamente a História da Literatura Brasileira enquanto não se fizer o exato balanço das nossas literaturas regionais. Muita coisa, da maior importância cultural, morre na província não conseguindo ultrapassar os limites que injustamente a separam dos grandes centros culturais. (Rômulo Wanderley)

Talvez haja poucas divergências sobre o conceito de universalidade, em se tratando de Literatura. Sabemos que a Literatura é universal e o texto literário não tem, exatamente, certidão de nascimento ou título de cidadania, posto que se trata de um aspecto imaterial em seu conteúdo (o texto literário), embora circule em suportes materiais (livros, periódicos, sítios na internet etc).

Muitas são as discussões sobre as manifestações literárias locais ou regionais (estaduais) e sua legitimidade dentro um sistema literário abrangente e pretensiosamente harmônico (Candido, 1995).

Em seu “Provincianismo e literatura mundial”, Luís Bueno (2013), p. 173, afirma que:

Num tempo em que muitos dizem que o conceito de nação já não se aplica mais, superado que estaria por uma ordem mundial nova, defender a ideia de que regionalismo é um conceito ainda operável, então, virou uma espécie de confissão de provincianismo.

No referido texto e na amostra do excerto, Bueno discorre sobre a legitimidade do termo “Literatura gaúcha”, a exemplo do que ora tratamos, no caso, a pertinência do termo “literatura potiguar”. As manifestações literárias locais estão para o que se entende por “literatura brasileira”, assim como a própria literatura brasileira canônica está para uma literatura que se presume “universal”. E defende, ainda, a adoção dos conceitos de periferia e centralidade; em que invisibilidade e inexistência não teriam qualquer relação de sinonímia.

Nesse sentido, podemos pensar que, mesmo dentro da “literatura potiguar” canônica, pode haver manifestações também consideradas periféricas, em especial na produção literária contemporânea do estado.

Araújo (2013) no ensaio “As literaturas locais como manifestações periféricas determinantes”, de igual modo, apresenta concepções sobre as produções literárias e culturais de estados e regiões como manifestações que têm “uma função histórica determinante na formação do sistema literário brasileiro” (p.107). Semelhantemente ao proposto por Bueno

(2013), Araújo trata da problemática centro/periferia, considerando que existem “outras histórias de processos locais relacionados à discussão do processo nacional”.

Como parte de um processo nacional, as chamadas literaturas estaduais

são determinantes também no que diz respeito à construção da cultura e da sociedade, em situações não menos essenciais do que aquelas dos principais centros do País. Com essa perspectiva, torna-se interessante

observar os momentos em que ocorrem rupturas em relação ao cosmopolitismo e ao regionalismo nas literaturas locais, uma vez que são essas duas as tendências mais evidentes na vida literária dos espaços periféricos. (ARAÚJO, 2013, grifo nosso).

Segundo Araújo, é por meio da análise de documentos históricos e registros literários que se tem acesso a como essa literatura (regional, periférica) reverbera temáticas como “nacionalidade, modernidade e novas práticas literárias”.

É certo que o conjunto de obras que aqui tratamos como Literatura Potiguar está inserido no sistema literário brasileiro, este que somente teria se estabelecido no Brasil em meados do século XVIII, período em que predominava a estética do Romantismo, reflexo do mesmo movimento europeu.

Nesta perspectiva, a expressão sistema literário, como o considera Antonio Candido, implica uma discussão a partir de um ponto de vista concreto: a formação de um sistema em um território historicamente constituído. (ARAÚJO, 2013, p. 111).

Nessa perspectiva adotada por Araújo, Veríssimo de Melo é, ao mesmo tempo um escritor potiguar e, paradoxalmente, um autor “não-regional”, visto que sua obra Folclore

infantil ultrapassou as barreiras estaduais e é obra referenciada em muitos outros lugares e

espaços literários.

Ainda no que se refere à questão local, Araújo (2016) volta a considerar a discussão do aspecto regional do ensino de literatura como reflexo de um processo de urbanização que tende à uniformização de vários aspectos da vida e, dentre estes, as questões culturais, onde estaria inserida a literatura. 9

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Araújo refere-se ao ensino de literatura na pós-graduação, mas sabemos que na Educação básica, especialmente no Ensino médio, não é diferente. Ele afirma que “[...] discutir a questão regional significa, pois, discutir os desafios dos programas, as suas linhas de pesquisa e, sobretudo, o conhecimento acumulado sobre a questão no âmbito dos estudos contemporâneos e do ponto de vista social.” (ARAÚJO, 2016, p. 59).

O professor Tarcísio Gurgel, em Informação da Literatura potiguar (2001), traça uma espécie de “linha do tempo” em que organiza a evolução das primeiras manifestações literárias do Rio Grande do Norte, tendo como limite temporal da pesquisa o ano de 1898:

A primeira preocupação explícita com o registro historiográfico e crítico da literatura potiguar, embora manifestada em 1897, só veio a público no ano seguinte. Teve-a um audacioso crítico, um quase imberbe rapaz, de nome Antonio Marinho, que, pelas páginas de A Tribuna, espécie de revista cultural de uma associação denominada Congresso Literário, propôs-se, nas edições de janeiro e fevereiro de 1898, a fazer um balanço de nossa produção literária até então, pondo em relevo alguns nomes ainda hoje lembrados, outros que caíram no esquecimento. (GURGEL, 2001, p. 21, grifo do autor).

Conforme aponta o professor Tarcísio Gurgel em sua pesquisa, Antonio Marinho teria se tornado, “por conta da coragem e da franqueza”, aquele que seria “o maior escândalo da nossa vida literária”. 10

Anos depois, Câmara Cascudo teria o mesmo intento, por volta de 1921, quando da publicação de “Alma Patrícia”. Tal ideia teria sido retomada nos fins dos anos 1950, organizada por Veríssimo de Melo e Manoel Rodrigues de Melo, tendo os originais desaparecido. Anos depois, Veríssimo publicou o que seria a sua “parte”, com

Patronos e acadêmico, 1972.

Em se tratando de produção literária propriamente, foi na segunda metade do século XIX que aconteceu a nossa primeira manifestação literária, quando surge Lourival Açucena, pseudônimo de Joaquim Eduvirges de Mello Açucena:

Impressa em forma de poemas, artigos, contos, crônicas, a Literatura começa a existir no Rio Grande do Norte [...] num jornalzinho chamado O Recreio, que existia na capital e circulou no ano de 1861. Foi o primeiro impresso pioneiro a difundir, de modo sistemático, esse tipo de manifestação cultural. (GURGEL, 2001, p. 32, grifo do autor).

Embora reconheça que tenham surgido bons nomes em se tratando de pesquisa sobre a nossa literatura, o professor Tarcísio faz uma ressalva nesse sentido:

[...] a produção historiográfica voltada à nossa literatura tem pago o preço do registro, por vezes apressado, quando não meramente laudatório. Bem verdade que a visada impressionista foi compensadora em alguns casos,

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São constantes na obra Informação da Literatura potiguar as referências a Antonio Marinho como primeiro crítico literário do Rio Grande do Norte. Além de escrever muito bem, Marinho teria sido o primeiro a pensar em sistematizar a literatura potiguar.

como no de Veríssimo de Melo com [...] Patronos e Acadêmicos. Mas a ausência de fontes históricas melhor ordenadas (sic) e uma crítica militante, provocando uma sadia emulação, sempre deixaram o estudioso interessado na Literatura Potiguar, exposto, ora à acomodação de recorrer, ora aos mestres (em nosso caso aos nomes de Cascudo e Castriciano, certamente), ora à busca desordenada de informações – nem sempre disponíveis, diga-se de passagem, em publicações como as revistas da ANRL, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Oásis, Rio Grande do Norte, e de modo muito especial A Tribuna, A República, A Imprensa. Sem falar na contribuição contemporânea de Diário de Natal/ O Poti e Tribuna do Norte. (GURGEL, 2001, p. 26, grifos do autor).

Constância Duarte e Diva Cunha sentiram a necessidade de esquematizar os períodos da literatura potiguar, após constatar evidente desconhecimento dos estudantes de Letras.

Dentre as várias antologias empreendidas no Rio Grande do Norte, as autoras citam a organizada por Ezequiel Wanderley, em 1922, constando 108 autores, denominada Poetas do

Rio Grande do Norte e uma outra, de Rômulo Wanderley, “Panorama da poesia norte-rio- grandense, de 1965, com 226 poetas”. Segundo as pesquisadoras, todas as outras antologias

que se seguiram são igualmente importantes, embora não tenham obedecido a critérios muito bem estabelecidos.

Nesse sentido, Diva Cunha e Constância Duarte citam Veríssimo de Melo e a importância que teve a publicação da bibliografia dos acadêmicos da Academia Norte-rio- grandense de Letras.

A primeira dificuldade foi estabelecer os nomes que constituiriam o corpus da literatura norte-rio-grandense. Seriam “autores potiguares” apenas os que nasceram no Estado, como defendia Ezequiel Wanderley no passado? Ou deveriam ser incluídos também os que não nasceram, mas aqui residiram e publicaram, como propõe Manoel Onofre Júnior? Outra questão: Como ficariam os que nasceram no Rio Grande do Norte, mas publicaram em outras terras? Caso adotássemos o primeiro critério, não pertenceria à literatura potiguar um nome como Eulício Farias de Lacerda, por exemplo, paraibano que aqui chegou adulto. Ou, como prescindir de nomes como Nísia Floresta, Peregrino Júnior e Homero Homem, apenas porque viveram e produziram fora? Como seria possível decretar quem tinha (ou não) a “terra entranhada” em sua obra? (DUARTE e MACEDO, 2001, p. 28).

E acrescenta que

Henrique Castriciano, Câmara Cascudo, Manoel Rodrigues de Melo e Veríssimo de Melo são, portanto, a nosso ver, os guias seguros para quem se aventura a buscar os começos de uma historiografia literária potiguar (DUARTE e MACEDO, 2001, p. 28).

Por fim, o critério adotado pelas autoras foi incluir “autores que, nascidos ou não no Rio Grande do Norte, contribuíram para a formação e o crescimento da literatura do Estado” (DUARTE e MACEDO, 2001, p. 29). Desse modo, as autoras resolvem estabelecer as seguintes “etapas”, com finalidade meramente didática em períodos, a saber: “um primeiro, que seria o da Formação; um segundo, que chamamos de Transição; um terceiro, o Modernista; e, por fim, um quarto, que compreendesse as Vertentes Contemporâneas. (DUARTE e MACEDO, 2001, p. 30).

A literatura do Rio Grande do Norte, com suas matizes e peculiaridades é, antes de tudo, literatura brasileira. É fundamental marcar que essa é a concepção que adotamos nesta pesquisa. Essa literatura produzida aqui traz, obviamente, especificidades culturais, linguísticas e artísticas que é metonímia dos dizeres e do modo de viver e enxergar o mundo dos potiguares. É possível que se questione o que seria Literatura Potiguar.

Trataremos, por fim, o termo como o conjunto de produções artístico-literárias de autoria de escritores potiguares radicados ou não em outros chãos. Sobre isso, Manoel Onofre Júnior escreveu:

Antes, porém, convém esclarecer: que é um autor potiguar? Seria potiguar, apenas, aquele que tivesse nascido no Rio Grande do Norte? Não. Potiguar é o escritor que, sendo ou não, natural deste Estado, tem a terra norte-rio- grandense entranhada em sua obra; é o que aí morou bastante tempo ou mora e aí construiu ou vem construindo sua obra. (ONOFRE JÚNIOR, 2014, p. 17).

Ao nos referirmos à Literatura Potiguar, adotaremos doravante, a perspectiva de Manoel Onofre Júnior, ancorados nos textos de Araújo (2013): a escrita que produzida aqui por potiguares residentes ou não nas terras norte-rio-grandenses traga, em suas entranhas, as cores, cheiros e expressões das terras potiguares.

Sobre isso, assim depôs Pablo Capistrano acerca da obra Salvados de Manoel Onofre Júnior, no Jornal de Hoje (fragmento de texto publicado como prefácio da obra Salvados: livros e autores norte-rio-grandenses, de Manoel Onofre Júnior):

Se o que me leva a gostar do que se produz aqui são motivos estéticos ou razões idiossincráticas pouco importa, o fato é que me senti de certa forma privilegiado por ter acesso a uma informação literária que nem todo mundo neste país tem. Se isso é uma vantagem ou um defeito não sei, só sei que eu realmente fui aprendendo a cada dia a gostar do ritmo das letras deste estado. (CAPISTRANO, 2014).

Como já pontuamos, não existe uma prática de ensino de literatura potiguar sistematizada nas redes estadual e municipal. O que existem, de fato, são práticas pulverizadas de alguns professores entusiastas da produção local. Geralmente, são professores que cursaram disciplinas que valorizavam tal questão. Chamamos de práticas pulverizadas porque não se tratam de políticas de ensino legitimadas nas instâncias governamentais. São iniciativas de profissionais que compreendem a importância das letras potiguares como fatores de reconhecimento e pertencimento por parte dos alunos, do patrimônio cultural e literário que lhes é devido e como apropriação de uma produção artístico-literária por muito tempo sonegada aos estudantes do Rio Grande do Norte. É preciso reconsiderar a Literatura que ensinamos (ROUXEL, 2014). Não como negação do que é legitimado nos livros didáticos, mas como inclusão do que é nosso.

A experiência com o texto literário distancia-se, em muito, da formação de um leitor pragmático que lê (decodifica), conhece nomes de autores e respectivas obras, mas não é capaz de envolver-se no enredo, emocionar-se com a poesia latente de um poema que traga evocação dos espaços da sua terra ou reconhecer-se numa narrativa ficcional que mapeie seu lugar de habitação.

Sobre a necessária liberdade dos professores na escolha do corpus, Alice Vieira (2008) comenta que é necessário que o professor tenha a liberdade de escolher obras que estabeleçam uma relação sincrônica e diacrônica com a prática do ensino de literatura, observado o contexto social dos estudantes.

Assim como nas escolas se cultiva a cultura do ensino de Língua Portuguesa com ênfase na análise linguística em detrimento do cuidado devido com o ensino de literatura, nas faculdades de Letras também se cultiva a preocupação com práticas de ensino engessadas e, muitas vezes, voltadas para a realidade dos concursos, como pontua Neide Luzia de Rezende:

É importante frisar que essa vertente também pode ser observada nas provas de concursos docentes para o ensino fundamental II e ensino médio, promovidos pelo Estado e Município, que ignoram o que eles próprios propõem nos documentos de orientação e contratam, nas licitações, empresas sem tradição no ramo, que elaboram provas malfeitas, com conteúdo desatualizado, sem conhecimento das pesquisas que, bem ou mal, estão na base dos novos paradigmas adotados oficialmente. (REZENDE, 2014, p. 44).

À exceção de provas de concurso para o IFRN (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte), os demais certames para professor das redes básicas

do município de Natal e do estado do Rio Grande do Norte não trouxeram em seu conteúdo programático qualquer coisa relativa à produção literária potiguar, o que encerra no imaginário docente a certeza de que é necessário especializar-se em estudos de Análise linguística ou mesmo Produção textual, uma vez que terão validade para a sua prática docente e será útil para concursos e processos seletivos.

Nesse caso, qual a “vantagem” de estudar/ensinar sobre autores norte-rio-grandenses? Por isso, defendemos que o ensino de literatura potiguar seja incluído nos documentos oficiais do currículo estadual, como forma de valorização da produção literária do estado, bem como proporcionar aos estudantes da rede básica a apropriação da cultura e das coisas do seu chão, por meio do acesso à literatura produzida no Rio Grande do Norte.

Ainda na época que se aplicava o vestibular na UFRN, por um tempo se exigiu dos alunos que fizessem leituras sobre as questões do Rio Grande do Norte – História, Geografia e Literatura local. Porém, com a adoção do ENEM como meio de acesso às vagas de graduação na UFRN, devido ao seu caráter nacional e uniformizante, aos alunos é exigido tão somente a leitura de autores e obras do cânone nacional, ainda assim fragmentadas sob o viés historicista dos manuais e livros didáticos. Geralmente, os estudantes recorrem a vídeo-aulas via Youtube ou resumos prontos garimpados via Google.11

Por fim, destacamos o fato de o professor Hélder Pinheiro (2014) chamar a atenção para um aspecto importante: a academia precisa se abrir a novas práticas que o leitor exige. Defendemos a inclusão sistemática da produção literária potiguar nas escolas, sobretudo pelo que ela pode representar em termos de etnocentrismo, pertencimento. Se não devemos sonegar aos estudantes o direito à literatura (CANDIDO, 1995), também não o podemos com relação à literatura produzida em sua terra, expressão das coisas do seu lugar, representação e simbolismo da cultura do estado. É fundamental que os estudantes da rede básica, especialmente do ensino médio, possam ler Câmara Cascudo e sua múltipla obra; os poemas “clássicos” como “Serenata do pescador”, de Othoniel Menezes, as cartas de Veríssimo de Melo, os poemas náuticos de Gilberto Avelino e tantas outras igualmente valiosas produções literárias potiguares.

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Em rápida busca no “Youtube”, encontramos um sem-número de vídeo-aulas com “dicas” e resumos de obras literárias dos mais conhecidos autores. Resumos rasos, sem qualquer aprofundamento, apenas com o intuito de fornecer informações para resolução de provas do ENEM.

PARTE 2

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