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3. VERÍSSIMO DE MELO – UM HOMEM DA CULTURA E DA LITERATURA –

3.1 VERÍSSIMO, O POETA

Embora conhecido mais pela verve de folclorista discípulo de Cascudo, Veríssimo de Melo também foi poeta. Talvez essa não tenha sido sua verdadeira vocação, mas percebe-se o lirismo em seus versos que expressam a inquietude de homem em sua época.

Fizemos um pequeno recorte de três poemas de Veríssimo; outros estão nos anexos desta pesquisa.

1. TESTAMENTO E ÚLTIMO DESEJO17 (Para Protásio)

Deixo para minha família, meu pó.

Para a humanidade, meu nome esquecido. Para a História, meus feitos invisíveis!

E a minha alma, continue vagando pelo espaço! Silenciosa... calada...

Das outras almas.

Escondas sempre o Romance do amor, que ainda encerras... Não contamines a eternidade...

Os eternos não admitem ilusões, Nem amor profundo, nem falsidade! Guardas tudo consigo...

E numa tarde semelhante àquela...

Penses um pouco na vida e na eternidade... Reúnas amor, ciúme, ilusão, ódio, saudade! E precipite-se no abismo virgem dos infinitos!

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Os poemas aqui reproduzidos foram disponibilizados por Diógenes da Cunha Lima; fazem parte do seu acervo pessoal, em virtude da estreita relação de amizade que cultivou com Veríssimo.

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Os primeiros versos sugerem a certeza de um homem frente à finitude da vida, como alguém que não espera celebridade e reconhecimento “Para a humanidade, meu nome esquecido.”, como que tomado de uma certeza de que o que produzia em seu tempo serviria de legado às futuras gerações. O eu-lírico, contudo, demonstra consciência ou desejo de reconhecimento de sua importância, o que se observa no verso “Para a História, meus feitos

invisíveis!”.

Pó, nome esquecido e feitos invisíveis, em uma enumeração gradativa, são a herança que o eu lírico deixa sob a responsabilidade do seu interlocutor Protásio – irmão do poeta Veríssimo de Melo – com quem dialoga não sem provocar no leitor uma reflexão sobre a brevidade da vida e do aspecto mais cruel que a morte traz: o apagamento.

Porém, ao mesmo tempo em que o texto mostra o silenciamento da voz provocado pela morte, o eu-lírico apresenta uma estratégia para mudar isso e fazer com que sua alma continue vagando pelo espaço, através da poesia, já que o instrumento poético impede que seja tragado pelo apagamento. Testamento é despedida, mas também permanência.

No meio do testamento, no sétimo verso, segunda estrofe, é feita referência ao

Romance do amor (1958), música de Dilermando Reis, de quem Veríssimo era

contemporâneo a admirador. Diógenes Cunha Lima (2019, p.1), no jornal Tribuna do Norte, relembra que “sua admiração musical era inconstante 18

. Ora as velhas canções brasileiras, ora a bossa nova, os guitarristas espanhóis, ou as composições de Oriano Almeida. Mas havia paixões permanentes.”.

Após fazer menção à música, faz uma série de recomendações que convergem para o desejo de não deixar contaminar a eternidade, pedido que reforça a ideia de não deixar que a morte venha impedir esse lugar de memória conquistado pela poesia, que escancara sentimentos da natureza humana, os quais são escondidos pelos homens em suas vivências. Nesse sentido, a poesia cumpre essa função de revelar com tamanha clareza os meandros dos sentimentos.

A última estrofe apresenta um dêitico que o leitor não tem como desvendar, a menos que tivesse vivenciado “aquela” tarde. Há um encontro relatado, do qual se pode deduzir uma partilha, um diálogo cifrado que aponta para a vida, embora o testamento aponte para o lado oposto, a morte. Entre essas duas pulsões de amor e de morte, o eu-lírico pede para seu

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Disponível em: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/vivi/451212. Acesso em: junho de 2019.

interlocutor reunir sentimentos capazes de fazer a vida seguir, mesmo entre os altos e baixos tão próprios à experiência do existir; e também pede para ele mergulhar, de modo intensa e apaixonadamente romântico, no abismo virgem, já que cada pessoa experimenta de forma única os sentimentos ao longo da vida diante do desconhecido. Praticamente, é uma sugestão de viver sem roteiro.

2. CANTO DE INQUIETAÇÃO

(Para Luís da Câmara Cascudo)

Temos o ouro das nuvens,

Que surge na tristeza dos crepúsculos! A prata das estrelas distantes

E os brilhantes das espumas de todos os mares! Temos tesouros imensos,

Nas profundezas imensas das águas escuras! Temos a música rebelde dos trovões

E a sinfonia suave e misteriosa

Dos vegetais desconhecidos no seio do mar! Temos o perfume livre dos campos

E o odor maravilhoso das flores mutiladas Em tempestades vorazes!

E a riqueza infinita dos mundos recuados, Vivos e mortos é nossa também!

E somos ainda pobres demais! E tudo isso é tão pequenino! Pequenininho demais...

Grande é essa dúvida,

Região de sombras e poesia... Refúgio de almas desaparecidas

Última cidade, da triste viagem dos homens!

Marcas linguísticas constantes na poesia de Veríssimo é o uso das exclamações e reticências. As primeiras parecem ensaiar um diálogo vigoroso com os eventuais leitores; as segundas estabelecem uma mensagem que parece intencionalmente incompleta.

Poema dedicado ao mestre Cascudo, de quem Veríssimo foi discípulo, revela um eu- poético deslumbrado com as riquezas naturais e humanas que a vida oferece, ao passo que assinala a certeza de que muito há ainda de desconhecido e que não encontra expressão satisfatória na linguagem:

E somos ainda pobres demais! E tudo isso é tão pequenino! Pequenininho demais...

Assim como Cascudo deixou impressa em sua obra a consciência de finitude ante um mundo em expansão, Veríssimo, de igual modo, sabia-se pequeno perante a grandeza do conhecimento do qual ainda não se havia apropriado.

O poeta mobiliza imagens que remetem a preciosidades; “ouro”, “prata”, “tesouros‟, em constante oposição a elementos que remetem a elementos contrários, tais como “águas escuras”. Outra oposição explícita são as metáforas “música rebelde” e “sinfonia suave”, que conota a pequenez humana frente à grande dúvida.

3. (Sem título)

É bom escutar o silêncio da noite...

O silêncio que se derrama das estrelas Em lágrimas frias...

O que desce em carvalho nos campos e nas Cidades...

Que dá brilho às árvores e aos telhados E cerra as nossas pálpebras cansadas e

Sonolentas...

O silêncio da noite vigia e vela o nosso sono, Em todas as madrugadas,

Como um grande e velho cão amigo, Solitário e manso...

A principal personagem dos versos acima é o espaço noturno, tão caro ao homem boêmio; talvez seu momento mais fértil, de inspiração para versos e letras de canções. Assim levou sua vida, habitando bares e rodas de conversa; fazendo amigos e colecionando vivências da Natal de sua época.

Neste poema, Veríssimo mobiliza figuras de expressividade (prosopopeias) para dar vida aos versos:

O silêncio que se derrama das estrelas O silêncio da noite vigia e vela o nosso sono,

Em todas as madrugadas,

Bem como metáfora:

Como um grande e velho cão amigo, Solitário e manso...

Aqui, o silêncio (ausência de som) é comparado a um cão, animal doméstico considerado o melhor amigo do homem por amá-lo e protegê-lo. Veríssimo faz uso da metáfora da amizade entre homem e bicho para representar a aproximação que teria com os momentos de solitude e silêncio. Seriam esses – os momentos a sós consigo próprio – a expressão encontrada para definir amizade.

Há, nos poemas, uma busca de universalidade, constatada na ausência de dados locais. Registra-se a ocorrência de elementos pluralizados que conotam generalidades “estrelas”, “lágrimas”, “campos”, “cidades”, “árvores”, “telhados”, “madrugadas”.

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