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3. VERÍSSIMO DE MELO – UM HOMEM DA CULTURA E DA LITERATURA –

3.2 VERÍSSIMO DE MELO, UM MISSIVISTA

Cartas produzem memórias, que se desdobram em críticas, que desencadeiam cartas, que engendram memórias...

(Marília Rothier Cardoso).

Sobre as cartas de Veríssimo, é possível, por meio de uma leitura preliminar, destacar nos enredos aspectos voltados ao estudo das tradições populares, da pesquisa engajada dos aspectos folclóricos das terras potiguares, bem como as reverberações na escrita de tendências historiográficas por parte de Veríssimo. Quanto ao recorte temporal, escolhemos analisar missivas do referido autor no contexto que compreende o acervo de “Cartas de Ascenso Ferreira a Veríssimo de Melo”, edição de 1989, não nos furtando de, ocasionalmente, visitar alguma possível correspondência que esteja fora – mas não distante – da época estabelecida, respeitando a razoabilidade cronológica.

Veríssimo de Melo ou Vivi, como era tratado na intimidade, nasceu em Natal em 1921, ano anterior à Semana de Arte Moderna de 1922, pois. Não teria, em princípio, recebido influência direta do movimento modernista em sua produção literária. No entanto, revela traços da vertente modernista pelo fato de sua obra ter se ocupado relevantemente de aspectos etnográficos, com grande interesse nas questões antropológicas e folclóricas, que valorizariam as características locais, perceptíveis na nossa literatura. Todos esses aspectos e sua estreita relação com o poeta modernista recifense Ascenso Ferreira estão registrados em cartas trocadas entre os dois.

Em certo sentido, pode parecer paradoxal levar cartas de autores norte-rio-grandenses para o ambiente escolar do Ensino Médio, no atual contexto da contemporaneidade e das redes sociais em grande uso. Mas imaginamos ser, exatamente, essa contradição que possa atrair o interesse dos nossos alunos.

O olhar que se dirige à correspondência alheia precisa primeiro assumir seu voyeurismo para depois transformá-lo em curiosidade intelectual. O fascínio exercido pelas cartas – esses registros precários de uma intimidade fugidia – estende-se a outros papéis pessoais [...] (CARDOSO, 2000).

Motivar uma turma a partir de uma carta da década de 1980, como exemplo, é também oferecer um mergulho no contexto histórico da época e suas linguagens. É dar aos estudantes a possibilidade de adentrar no mundo que viveu o ápice da correspondência epistolográfica. As cartas de Veríssimo tratam dos mais diversos temas, como pode se ver a seguir:

Você é um danado, mestre Veríssimo, a tudo atento e providenciando. [...]

Quanto à vaga na Academia, pode contar com o meu voto para o seu “protegido”. Você sabe que sou seu eleitor “de cabresto”.

Quando devo enviar o voto?

Você viu a minha entrevista na TV Educativa? Se viu gostaria de ter a sua opinião. [sic]

E as eleições? Viu como o povo tá ficando bom de voto?

O excerto acima é de uma carta do escritor potiguar Umberto Peregrino para Veríssimo de Melo, em janeiro de 1989. O assunto da carta é a resposta a um provável pedido de voto para a eleição da Academia Norte-rio-grandense de Letras. Com razoável intimidade, Umberto Peregrino ainda trata de uma aparição na TV e “brinca” com o resultado das eleições da época, não sabemos em que âmbito. Uma abordagem interessante nessa carta passaria, certamente, pela informalidade com a qual o remetente trata assuntos geralmente formais. Acrescente-se a inexistência, ainda na época, das facilidades das mensagens espontâneas de que hoje dispomos:

As dificuldades de comunicação eram tão significativas que as pessoas se correspondiam com assiduidade, em alguns casos, dentro da mesma cidade. A troca de correspondência pressupõe uma dificuldade natural e circunstancial de duas pessoas não estarem físico e geograficamente próximas uma da outra. Assim, a carta ofusca a distância entre duas temporalidades: aquela que se liga ao ato da escrita e aquela do ato da leitura, transportando as instâncias narrante e leitora ao presente da literatura. (RODRIGUES, 2003, p. 1).

Em se tratando de Rio Grande do Norte, podemos afirmar que há, no estado, certa tradição no que se refere ao gênero epistolar. Mencionamos aqui o “conjunto de cartas” de Paulo Bezerra (Paulo Balá), imortal da Academia Norte-rio-grandense de Letras, obra composta de cinco volumes.

Cartas dos Sertões do Seridó (2000), Outras cartas dos Sertões do Seridó (2004), Novas Cartas dos Sertões do Seridó (2009), Cartas dos Sertões do Seridó: 4º livro (2013) e Últimas cartas dos Sertões do Seridó (2018), são um conjunto de cartas literárias, escritas

para serem lidas, com um destinatário que, embora estejam endereçadas ao “caro Woden” (jornalista Woden Madruga, do jornal Tribuna do Norte), pode ser qualquer pessoa, qualquer leitor. Não são cartas endereçadas a um interlocutor específico, mas a qualquer interlocutor, aquele que deseja notícias da vida, sob a perspectiva do literário, do artístico, do arranjo com a palavra. Um compilado de cartas para a vida; a descrição da cena cotidiana, cuja paisagem é o sertão enevoado de memórias vividas e sonhadas.

No prefácio de um dos volumes das Cartas dos Sertões de Paulo Bezerra, Vicente Serejo19 declarou:

Mas há uma carta essencialmente literária. Escrita não para levar novidades ou pedir notícia, como uma prisioneira da vivência familiar, dos amigos e dos negócios. Carta que não pertence só ao seu destinatário, ainda que a ele se dirija, mas a quem, através dele, possa alcançar. Não a carta fechada, com endereço único.

E acrescenta:

A carta aberta a todos e a cada um, no sentido coletivo de sua publicação nas páginas de um jornal ou livro, sem perder a fruição de cada leitura individual. [...] Essa carta literária é matéria nobre de que é feita a literatura epistolar.

Serejo refere-se, no trecho acima, às cartas de Paulo Bezerra, intitulando-as de “cartas literárias”, isto é, cartas que nasciam para serem abertas. Em certa medida, tais cartas diferem um pouco das cartas trocadas por Veríssimo, visto que tinham finalidade de interlocução na esfera do privado, embora seus conteúdos tratassem de questões literárias e culturais. Mas aqui temos propósitos diferentes, desde a produção. Paulo Bezerra escreveu textos literários sob o nome de cartas; Veríssimo emitiu e recebeu cartas sobre diversos assuntos, dentre os quais as questões do universo literário.

19

Sobre essa temática, a literatura potiguar conta, de igual modo, com as cinco Cartas

Holandesas de Henrique Castriciano, publicadas no jornal A República, sob o pseudônimo

Erasmo van der Does. Segundo o jornalista Vicente Serejo, Henrique Castriciano, ao escrever as referidas cartas, parecia “um holandês desgarrado da sua terra a descrever, com humor e ironia, os hábitos do povo de uma pobre vila”. Dois grandes conjuntos de cartas consagram a literatura epistolar no Rio Grande do Norte: as sertanejas, de Eloy de Souza [...] e as três séries das Cartas da Praia, originalmente lançadas em três edições individuais e depois reunidas [...]. (2009).

Há também as Cartas de Eloy de Souza, as Cartas da praia, de Hélio Galvão, as cartas de Nilo Pereira, por Manoel Onofre e as Cartas humanas, de Agnelo Alves, publicadas em jornais. Todas elas representações literárias em formato de missivas, impregnadas da arte de escrever e engendrar arranjos estilísticos por meio da palavra impressa.

Acerca de tratar Literatura por meio de cartas, queremos lembrar a utilização deste gênero por parte de muitos modernistas, que cultivavam o hábito de corresponderem-se entre si e parece-nos que Veríssimo, embora não tenha vivido no surgimento do movimento modernista, tinha consciência da relevância que as correspondências teriam, pois era adepto de tal prática, tendo deixado grande número de cartas. Lendo as missivas de Veríssimo, temos a oportunidade de mergulhar nos bastidores da cena literária e cultural do estado.

Tivemos acesso a diversas cartas deixadas por Veríssimo que estão sob a guarda do Professor Diógenes da Cunha Lima. Outras, recebemos do jornalista Woden Madruga. Mas é certo que há muitas cartas de Veríssimo espalhadas entre seus amigos, visto que, se ele recebia tantas cartas, certamente também as escrevia. Imaginamos quão riqueza cultural e informativa reside nessas missivas.

Outras cartas lidas por nós foram publicadas em Cartas e cartões de Oswaldo

Lamartine, em Cartas de Ascenso Ferreira a Veríssimo de Melo e em Nilo Pereira – Cartas de emoção e de humor. Tais publicações reúnem um compilado de correspondências entre

autores potiguares, missivas que fazem relato do cotidiano da cidade, temperados com vieses literários.

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