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A partir dessas considerações, esta pesquisa estuda os livros de bibliófilo e os livros de arte brasileiros produzidos por processos artesanais, caso de grande parte dos exemplares da Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil da BCE e de muitas tipografias particulares que se estabeleceram no país na primeira metade do século XX. Muitas vezes, as denominações, livro de arte e livro de bibliófilo se referem ao mesmo tipo de publicação. Esses termos possuem qualidades semelhantes, sendo difícil separá-los. Assim, neste estudo, os livros da SCBB serão considerados como livro de bibliófilo e livro de arte. Isto se justifica porque

18 ―A literatura sobre ciência da informação tem se concentrado estritamente em dados e documentos como

fontes de informação. Mas isso é contrário ao senso comum. Outros objetos são potencialmente informativos. Quanto saberíamos sobre dinossauros se nenhum fóssil de dinossauro tivesse sido encontrado? (Cf. Orna and Pettit (1980, p. 9), escrevendo sobre museus: ―No primeiro estágio, os objetos em si são o único repositório de informação‖) Por que centros de pesquisa juntariam muitos tipos de coleção de objetos se eles não esperassem que estudantes e pesquisadores aprendessem algo com eles? Qualquer universidade estabelecida, por exemplo, provavelmente possui uma coleção de pedras, um herbarium de plantas preservadas, um museu de artefatos humanos, uma variedade de ossos, fósseis e esqueletos, e muito mais. A resposta é, evidentemente, que objetos, não são documentos no sentido normal de serem textos, podem, no entanto, ser fontes de informação, informação-como-coisa. Objetos são colecionados, guardados, recuperados e examinados como informação, como uma base para tornar-se informado‖ (BUCKLAND, 1991, p. 354, tradução nossa).

33 muitos dos exemplares produzidos nas tipografias artesanais e pelos grupos de bibliófilos podem ser qualificados dentro dessas duas definições.

Este estudo considera, portanto, livro de arte e livro de bibliófilo os exemplares fabricados majoritariamente por processos artesanais; cujas imagens, caso o livro seja ilustrado, possuam qualidades artísticas; que possuam qualidades estéticas tais como: preocupação com a diagramação do texto e com a composição tipográfica; e cujo conteúdo literário seja relevante.

Alguns autores do início do século XX consideravam livro de arte somente as obras confeccionadas artesanalmente e cujos processos de reprodução das imagens usassem as técnicas da xilogravura, da gravura em metal e da litografia. A atribuição de valor ao livro como obra de arte o destaca dos objetos comuns de consumo. Existem livros que são produzidos com intenção de serem objetos de arte, caso do Livro de Artista e do Livro de

Pintor, por exemplo. Há também aqueles livros que recebem essa denominação muito tempo

após sua fabricação. A definição de livro de arte é complexa, ela pode variar de acordo com momento histórico e cultural em que o exemplar foi produzido.

Para Hesse (1927), um livro de arte tinha que ser, necessariamente, raro e à margem da produção industrial. Ele até considerava que um livro popular possuísse qualidades estéticas, mas em sua perspectiva um livro de arte devia ser produzido com materiais especiais e em tiragens limitadas. Hesse (1927, p. 6):

A notre sentiment, il y aura édicion d‘art lorsqu‘un livre dont le texte présentera un intérêt littéraire se verra imprimé avec soin sur un papier de choix, que le texte se verra commenté par un artiste au moyen d‘un procédé original qui ne sera ni photographique, ni mecanique, et que le livre sera devenu rare ou par suite de la disparicion d‘un certain nombre d‘exemplaires ou par la limitation volontaire du nombre d‘exemplaires tirés. La gravure, l‘eau-forte, la pointe sèche en noir ou en couleurs, le bois en noir ou en courleurs, la lithographie en noir ou en courleurs sont, à notre sentiment, les seuls modes d‘illustration qui doivent être emplyés, les seuls que présentent un caractère artistique, et nous écartons délibérément des modes d‘illustration tels que l‘héliogravure ou la photogravure, par exemple, malgré la perfection du procedé employé.19

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―Em nossa concepção, será edição de arte quando um livro cujo o texto apresente um interesse literário for impresso cuidadosamente em um papel selecionado, que o texto seja comentado por um artista, por meio de um processo original, que não seja nem fotográfico, nem mecânico, e que esse livro tenha se tornado raro, quer pelo desaparecimento de um certo número de exemplares ou pela limitação voluntária do número de exemplares tirados. A gravura, água forte, ponta seca, preto e branco ou colorida, em madeira, preto e branco ou colorida, em litografia, preto e branco ou colorida, são, na nossa forma de sentir, os únicos modos de ilustração que devem ser empregados, os únicos que apresentam um caráter artístico, e nós descartamos deliberadamente os modos de ilustração tais como a heliogravura ou a fotogravura, por exemplo, apesar da perfeição do procedimento empregado‖. (HESSE, 1927, p.6, tradução nossa)

34 Na concepção de Hesse (1927) o livro de arte deve ser produzido artesanalmente com os processos tradicionais de reprodução das imagens, deve possuir também qualidades estéticas, ser raro e o conteúdo literário ser relevante.

Nesse mesmo sentido, Koopman (1917) reagiu contra a produção industrial de sua época. Para esse autor, o livro do início do século XX era de baixa qualidade. A maior parte das publicações eram romances populares, muitas vezes sem valor literário, além disso, os materiais usados na fabricação eram muito inferiores em comparação aos livros feitos artesanalmente, antes do advento da produção mecânica. Koopman (1917) imaginava que se o público fosse educado a apreciar livros de qualidade, com conteúdos relevantes e feitos com bons materiais, naturalmente a indústria voltaria a produzir boas edições.

Hesse (1927) e Koopman (1917) estão inseridos em um contexto histórico em que era recente a produção mecânica de livros. Para um leitor atual, essas afirmações podem parecer anacrônicas, mas não se pode julgá-las sem considerar o contexto desses autores. Para um bibliófilo e apreciador do livro que viveu no início do século XX, a produção industrial se mostrava muito inferior à artesanal. Um olhar atencioso para os livros produzidos nessa época perceberia a precariedade das reproduções das imagens feitas com processos mecânicos em comparação às reproduções feitas diretamente da matriz de metal, de madeira ou de pedra.

Para um conhecedor da gravura, uma reprodução original guarda qualidades estéticas que outra forma de impressão não possui. A impressão da gravura a partir da matriz em que o desenho foi gravado possui características expressivas. Essas qualidades do suporte da gravura se somam ao conteúdo da imagem. A reprodução de uma pintura, por exemplo, é muito diferente da obra original, justamente por que a pintura também não se resume à imagem representada, mas sim às características do suporte em que o artista fez sua obra. Esses elementos, suporte e imagem, se complementam na fruição estética20.

As encadernações e as capas dos livros populares da primeira metade do século XX eram produzidas quase que exclusivamente com máquinas. Os materiais utilizados eram menos resistentes e de baixa qualidade. Os papéis usados eram feitos a partir das farpas de

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A dissociação do conteúdo da Obra de Arte em relação ao material e o suporte utilizado em sua fabricação é um fenômeno recente. Movimentos como o da Arte Contemporânea e a nova relação da Arte com o consumo de massa irá mudar a concepção de Obra de Arte. Argan (2002, p. 593) afirma: ―Lembremos que a Arte, em todo o seu passado, foi um modelo de experiência individual, um trabalho manual transposto numa comunicação conceitual. Numa sociedade de consumo de massa, o pensamento e a memória da arte também poderão ser, se estiver salvaguardada a liberdade dos indivíduos, os impulsos criativos que, provindos das profundezas da história, haverão de gerar uma experiência individual recaptuladora, porém não destruidora da experiência coletiva‖.

35 madeira, muito inferiores aos feitos de trapo das publicações anteriores a 184021. Muitos livros dessa época desapareceram ou estão em condições precárias devido à acidez do papel de madeira. Essa precariedade dos materiais levou muitos grupos de bibliófilos e de editores artesanais a preferirem papéis feitos a partir de trapos ou papéis especiais com baixa acidez (LEHMANN-HAUPT, 1957).

Para Knychala (1981) o aspecto artesanal de fabricação não é uma qualidade básica para o livro de arte, estes podem ser fabricados com processos industriais, sem perder suas qualidades artísticas. Knychala (1981, p.26) definiu livro de arte como:

(...) o livro que, além de símbolo cultural com valores semânticos, apresenta-se como objeto com valores artísticos tais como boa qualidade e beleza do papel, dos caracteres tipográficos e da encadernação, arquitetura e diagramação harmoniosas e não necessariamente ilustrado; mas se contiver ilustrações feitas com processos manuais, como a xilogravura, a gravura e metal, a litografia e a serigrafia, como também fotografias artísticas e reproduções por processos fotomecânicos.

A concepção de Knychala (1981) abrange os livros produzidos com processos manuais e mecânicos. A autora entende que não há motivos para classificar como livro de arte somente os exemplares feitos manualmente.

Alguns estudiosos defendem que os livros de arte diferem dos livros artesanais. Creni (2013, p. 22) afirmou:

Apesar de ter características coincidentes com o livro de arte no que tange os aspectos gráficos, o livro artesanal possui diferenças marcantes, principalmente em relação a objetivos e processo. Uma delas é a publicação de textos de autores não consagrados, já que o livro de arte privilegia textos clássicos já publicados. Existe o cuidado gráfico, mas nunca a preocupação com requintes de ‗luxo‘, como, por exemplo encadernações sofisticadas.

Os livros da Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil possuem algumas características que extrapolam a definição de Creni (2013). Uma vez que essa coleção é formada por títulos de autores consagrados, possuem encadernações luxuosas e são confeccionados por processos manuais. Assim, os livros da SCBB são artesanais e são livros de arte. Muitas vezes, não há uma distinção clara entre livro artesanal, livro de arte e livro de bibliófilo.

O poeta Tiago de Mello (1926-), um dos fundadores das Edições Hipocampo, afirmou que os livros produzidos por sua tipografia artesanal possuíam características semelhantes às dos livros de bibliófilo. As Edições Hipocampo possuíam tiragem limitada, eram financiadas por subscritores, os materiais eram de qualidade e os exemplares eram ilustrados por grandes artistas brasileiros. Nesse mesmo sentido, Pedro Moacir Maya (1929-2008), fundador das

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―Papel de trapo: papel inteiramente fabricado com pasta feita de trapo ou com pouca pasta de madeira. A percentagem mínima de pasta de trapo que se exige para um papel ser designado como papel de trapo difere de país para país‖ (FARIA; PERICÃO, 2008, p. 551).

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Edições Dinamene, declarou expressamente que os livros de sua tipografia se destinavam à

bibliófilos (CRENI, 2013).

Dessa forma, considera-se, para efeitos deste estudo, que a Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil produziu livros de arte e usou processos artesanais, já que dos 23 títulos publicados, somente três foram produzidos por máquinas industriais. A SCBB também está inserida em um contexto de produção artesanal de livros em que as edições eram financiadas por um grupo de colecionadores, possuíam ilustrações originais e prezavam pelos aspectos materiais. Essas qualidades são características dos livros de bibliófilo e muitos desses preceitos foram compartilhados pelos editores artesanais brasileiros.

As perspectivas de Hesse (1927) e de Koopman (1917) sobre o livro de arte e o livro de bibliófilo refletem uma visão crítica em relação à produção industrial do início do século XX. Essas perspectivas foram compartilhadas por muitos dos criadores das tipografias artesanais do final do século XIX e início do século XX. Alguns teóricos como Lehmann- Haupt (1957) e McMurtrie (1997) destacaram a revolta dos artesãos contra a precariedade da maior parte dos processos mecânicos. O ideal de produzir livros com os processos e com as qualidades dos exemplares antigos levou artistas como William Morris e tantos outros tipógrafos a criar livros de qualidade feitos artesanalmente.

A Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, assim como as tipografias criadas no Brasil, principalmente as que surgiram a partir da década de 1940, partilham alguns dos ideais dos criadores das tipografias artesanais europeias.

2.3 A fabricação artesanal de livros: uma reação dos artesãos contra a produção