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2 A CONTRUÇÃO TEÓRICA DO OBJETO DE PESQUISA: TEORIAS

3.5 Livro didático: materialização da disciplina escolar e currículo escrito direcionador

Apesar de o livro didático poder ser hoje facilmente identificado dentre uma gama de obras diversas, devido a familiaridade com esse objeto por parte de professores, novos e antigos estudantes e pais, a ação de compreendê-lo requer certos

cuidados por parte dos pesquisadores, a começar pelo cuidado com a sua definição. Definir o que se entende por livro didático é, sem sombra de dúvidas, uma tarefa que deve ser realizada de forma cuidadosa, pois ultrapassa o ato de simplesmente discriminá-lo diante de um conjunto diverso de publicações. Nesse sentido, questionamo-nos, primeiramente, o que caracteriza um livro didático? Como os pesquisadores que se debruçam sobre tal objeto o concebem? “Quais limites, quais fronteiras separam ou separaram o ‘território’ dos manuais escolares e das categorias editoriais vizinhas?” (Choppin, 2009, p. 14).

Para o autor mencionado, a dificuldade em se definir um manual escolar se dá porque este:

Asume simultáneamente varias funciones y se pueden tener de él visiones de naturaleza bien distinta. Para sobrepasar la visión inmediata y apasionada que todos tenemos de forma espontánea de los libros de clase, es necesario optar por una perspectiva histórica y/o comparativa. (CHOPPIN, 2001, p. 209).

Para este destacado autor francês, os pesquisadores, ao buscar definir os livros didáticos, devem se afastar o quanto possível de visões espontâneas dos livros escolares para se acercarem, cada vez mais, de perspectivas históricas e/ou comparativas. Em outro texto de sua autoria (2009), realça que foram os historiadores a primeira comunidade científica a se interessar, ainda na década de 1960, pelos antigos livros escolares (CHOPPIN, 2009).

Circe Bittencourt, ao tratar a questão, afirma:

A familiaridade com o uso do livro didático faz que seja fácil identificá-lo e estabelecer distinções entre ele e os demais livros. Entretanto, trata-se de objeto cultural de difícil definição, por ser obra bastante complexa, que se caracteriza pela interferência de vários sujeitos em sua produção, circulação e consumo. Possui ou pode assumir funções diferentes, dependendo das condições, do lugar e do momento em que é produzido e utilizado nas diferentes situações escolares. É um objeto de “múltiplas facetas”, e para sua elaboração e uso existem muitas interferências (BITTENCOURT, 2004, p. 301).

Importante destacar, assim como faz Bittencourt, que os materiais didáticos utilizados em sala de aula não se restringem aos livros escolares. A autora apresenta

dois tipos de materiais didáticos: os primeiros são os suportes informativos, ou seja, aqueles que têm previamente estabelecida uma finalidade didática – podemos citar como exemplo os próprios manuais didáticos e paradidáticos, assim como apostilas, CD-ROM, atlas, dentre outros; Os segundos são denominados pela autora como documentos, ou seja, aqueles materiais que em sua produção não se teve, como finalidade, uma preocupação didática, mas passam a ser utilizados como tal por professores, que realizam o processo de didatização desses materiais – como exemplos podem ser citados filmes, minisséries televisivas, músicas, literatura e etc. (BITTENCOURT, 2004, p. 296-297).

Choppin (2004), ainda buscando explicações em torno da dificuldade de definição dos livros escolares, assim como de sua complexa natureza, diz o seguinte:

Se hoje consideramos o livro didático como um objeto banal, um objeto tão familiar que parece inútil defini-lo, o historiador que se interessa pela evolução dos livros escolares – ou das edições escolares – depara, logo de início, com um problema de definição. A natureza da literatura escolar é complexa porque ela se situa no cruzamento de três gêneros que participam, cada um em seu próprio meio, do processo educativo: de início, a literatura religiosa de onde se origina a literatura escolar, da qual são exemplos, no Ocidente cristão, os livros escolares laicos “por perguntas e respostas”, que retomam o método e a estrutura familiar aos catecismos; em seguida, a literatura didática, técnica ou profissional que se apossou progressivamente da instituição escolar, em épocas variadas – entre os anos 1760 e 1830, na Europa -, de acordo com o lugar e o tipo de ensino; enfim, a literatura “de lazer”, tanto a de caráter moral quanto a de recreação ou de vulgarização, que inicialmente se manteve separada do universo escolar, mas à qual os livros didáticos mais recentes e em vários países incorporaram seu dinamismo e características essenciais. Essas categorias, sem se excluírem, frequentemente se interpenetram [...] (p.552).

Para Itamar Freitas de Oliveira (2009), não é suficiente a definição que os dicionários de língua portuguesa fornecem em relação ao livro didático. É preciso, antes de qualquer coisa, perceber as finalidades que esses livros cumprem. Para Oliveira (2009), uma das principais características dos livros didáticos seria a materialização da disciplina escolar, o que quer dizer que este “artefato está intimamente ligado ao processo de disciplinarização dos saberes escolares” (OLIVEIRA, 2009, p.13) (grifos nossos). Para Stamatto,

Parece óbvio afirmar que o livro didático de História, nas várias nomenclaturas que já teve, como por exemplo, manual escolar, compêndio, está intrinsecamente associado à disciplina História. Mas ao se afirmar isto, quer-se evidenciar a estreita relação biunívoca entre o livro escolar e a disciplina que o usa como recurso didático, ou seja, o manual de História é um dos elementos constituidor da disciplina História e é constituído pela e para esta matéria. (STAMATTO, 2009, p. 23, grifos nossos).

O livro didático de História, para além de reunir conteúdos desta disciplina para situações de ensino, cumpre, antes de qualquer coisa, uma função de materialização da disciplina histórica escolar. Como afirma Maria Inês Stamatto, o livro didático de História é um dos elementos constituidores da disciplina História e, ao mesmo tempo, em uma perspectiva dialética, é constituído por ela.

Para Munakata (2016), o livro didático “é, em primeiro lugar, o portador dos saberes escolares, um dos componentes explícitos da cultura escolar” (p. 123). Assim, ao ser selecionado para fazer parte do currículo escolar e figurar nos livros didáticos de História, o evento Guerra do Paraguai passa a se constituir enquanto conhecimento escolar.Para o referido autor, “de modo geral o livro didático é a transcrição do que era ensinado, ou que deveria ser ensinado, em cada momento da história da escolarização” (p. 123). De tal modo, ao se investigar sobre o conhecimento escolar Guerra do Paraguai em diferentes períodos, podemos vislumbrar como cada época construiu o conhecimento sobre esse evento histórico para a escola. Tendo em vista o livro didático como elemento próprio da cultura escolar, afirma:

[...] não há como negar que haja coisas que só existem na escola. [...] Uma dessas coisas peculiares à escola é precisamente o livro didático. Certamente ele pode estar em outros lugares, como na biblioteca de um colecionador excêntrico, nos gabinetes do avaliador ou do pesquisador de livros didáticos, mas a sua existência só se justifica na e pela escola (MUNAKATA, 2016, p. 122. (grifos nossos).

Não obstante, é preciso que se diga que, na seleção dos conteúdos que estarão presentes nos livros didáticos, não houve/há consenso. O livro didático, como elemento materializador da disciplina curricular História, se constitui em um “terreno de grande contestação, fragmentação e mudança” (GOODSON, 1997, p. 27). Os conteúdos a se constituírem em conhecimentos escolares são frutos de seleções, inclusive no âmbito da

forma em que os mesmos serão abordados, não apenas em termos historiográficos, mas pedagógicos (a reelaboração didática de que fala Forquin, 1993). Nesse sentido, Munakata (2016) assinala que o livro didático, além da função de ‘depositário de conteúdos escolares’, é também ‘depositário de métodos de ensino’:

Toda essa incursão pelas lições de coisas mostra outro aspecto do livro didático: ele não é apenas o depositário dos conteúdos, mas também dos métodos de ensino, dimensão fundamental da cultura escolar. A esse respeito as cartilhas e os abecedários são exemplares, pois não têm, a rigor, nenhum conteúdo, mas apenas método. Isso não significa que esses livros não apresentem valores ideológicos, religiosos, políticos, morais, cívicos, de gênero, de etnia - o que de resto acontece com todos os livros, didáticos ou não, mas tão somente que as cartilhas e os abecedários não têm propriamente um conteúdo disciplinar (MUNAKATA, 2016, p. 130. Grifos nossos).

Os livros didáticos passam a ser concebidos com uma função curricular quando a análise que dele fazemos os aponta como “depositário de conteúdos escolares”, quer dizer, como um “suporte básico e sistematizador privilegiado dos conteúdos elencados pelas propostas curriculares” (BITTENCOURT, 2008a, p.72). Nesse sentido, os livros didáticos tornam-se “um instrumento fundamental na própria constituição dos saberes escolares” (Bittencourt, 2004, p. 302). Choppin (2004) e Bittencourt (2004; 2008a; 2008b), ao apontarem as funções que os livros didáticos podem exercer, assinalam, também, a função instrumental, segundo a qual o livro didático passa a ser entendido como um instrumento pedagógico, um suporte de métodos e técnicas de aprendizagem, tendo em vista os exercícios, questionários, leituras complementares e sugestões de trabalho em equipe e/ou individual.

Conforme assinala Munakata (2016), apesar de o livro didático poder ser entendido como ‘depositário de conteúdos escolares’, “não é sempre que o livro didático se limita a transcrever os conteúdos consagrados ou em vias de consolidação de uma disciplina escolar. Há vezes que ele tem papel determinante na definição da disciplina” (p. 126). O autor cita o exemplo de um livro escolar de Matemática que, juntamente com outros fatores envolvidos, contribuiu para estimular uma reforma curricular em relação à disciplina. Nesse sentido, nem sempre os livros didáticos estariam em consonância completa com a sua ciência de referência.

Além de ser entendido como depositário de conteúdos escolares e de métodos de ensino, o livro didático pode ser analisado, ainda, como um veículo portador de sistemas de valores e ideologias, carregados de concepções, de ideias, de conceitos e preconceitos de uma determinada época (Choppin, 2004; Bittencourt, 2004, 2008a; 2008b, Munakata, 2016). O livro didático, nessa perspectiva, passa a ser entendido como um produto cultural, produzido por grupos sociais que, intencionalmente ou não, veiculam suas formas de pensar e agir, além de suas identidades culturais e tradições, ultrapassando, deste modo, a questão puramente pedagógica, apresentando “implicações políticas, econômicas, ideológicas e teóricas”(CAIMI, 1999, p.28)35.

Uma importante perspectiva para se pensar o livro didático, é aquela suscitada pela professora Alice Casimiro Lopes, que assenta o livro escolar como um texto curricular híbrido. Segundo esta autora:

Em tal acepção, um livro é um texto curricular cuja autoria é sujeita a uma ambiguidade tensa, na medida em que envolve profundos interesses econômicos (BITTENCOURT, 2004), mas também em virtude das relações culturais complexas e conflituosas assumidas pelo autor com as instâncias de influência do texto curricular. São múltiplos os discursos curriculares, relativos à seleção e organização de conteúdos culturais, às atividades de ensino e à própria concepção de livro didático, que constituem as práticas que formam os livros como materiais escolares. Um dos discursos predominantes é o do livro didático como um currículo escrito direcionador das práticas curriculares, em virtude de sua capacidade de orientar as possíveis leituras a serem realizadas pelo professor no contexto da prática. (LOPES, 2005, p.73. Grifos nossos).

A autoria dos livros didáticos, segundo a perspectiva apresentada acima, passa a ser entendida não apenas sob o ponto de vista exclusivo da formação intelectual do autor, mas somam-se a esta, os diversos sujeitos e elementos condicionantes da escrita desse material. Sujeitos estes que explicitam interesses privados, de caráter econômico, a exemplo das editoras, e interesses públicos, de caráter político-pedagógico, expressos

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Oliveira (2009) reconhece pelo menos seis funções ao livro didático: (1) “reproduzir ideologia; (2) difundir o currículo oficial; (3) condensar princípios e fatos das ciências de referência; (4) guiar o processo de ensino; (5) guiar o processo de aprendizagem; (6) possibilitar formação continuada” (OLIVEIRA, 2009, p.14). Uma importante característica destacada por Oliveira (2009), que serviria para caracterizar o livro didático, é o suporte no qual este material está inscrito, o papel. Contudo, entendemos, assim como Choppin (2009), que mais importante do que o suporte é a organização do material (apresentação dos conteúdos, progressão da complexidade etc.) e mesmo sua destinação para uso.

pelo Estado – tendo este ou não uma política educacional e/ou curricular explícitas ou mesmo uma política pública formulada para o livro didático36.

Os livros didáticos de cada época reúnem estas tensas discussões e conflitos em torno de sua construção, desde os discursos legitimadores da disciplina de referência e suas instituições37, passando pela formação profissional e intelectual do autor – e suas vinculações e aproximação com esses discursos legitimadores -, a questões econômicas suscitadas pelas editoras, como também as questões de ordem político-pedagógicas, referenciadas nas (re)definições curriculares ou de direcionamentos de certas políticas educacionais.

Consideramos que uma importante perspectiva para se pensar o livro didático é aquela suscitada pela professora Lopes (2005), em que o mesmo passa a ser concebido enquanto currículo escrito direcionador de práticas curriculares. Entraríamos aqui na seara da formação dos professores e de como, em alguns casos, o livro didático pode, também, cumprir uma função de formação continuada para professores cuja formação foi insatisfatória. É sabido que, no Brasil, os livros didáticos exercem nos professores um poder maior – até mesmo, talvez, pela proximidade dada pelo uso sistemático – do que programas curriculares (como os PCN, por exemplo), se tornando em muitos casos no próprio currículo a ser cumprido. (LOPES, 2005).

Evidenciamos, contudo, que afirmar sobre o potencial do livro didático enquanto direcionador de práticas curriculares, não implica, necessariamente, em negar a inventividade das práticas e leituras que professores e alunos realizam cotidianamente em suas salas de aula. Temos a certeza, como nos afirma Chartier (1990; 1999a; 1999b;

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Stamatto (2009) realça que “é preciso levar em consideração, que para os editores e autores, não há sentido em elaborar um livro como recurso didático e o mesmo estar impedido de ser usado nas salas de aula por não atender critérios legais ou por não haver mais a disciplina que o teria como apoio pedagógico.” (p. 29).

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No caso da disciplina História, a instituição que legitimou este conhecimento no Brasil desde o século XIX até meados da década de 1970, foi o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e seus congêneres regionais. Inclusive, a maioria dos autores dos manuais de História desse período era sócio deste instituto. Só depois que a pesquisa se consolidou em instituições universitárias no Brasil, sobretudo com a constituição de programas de pós-graduações em História e Educação, é que os discursos legitimadores do conhecimento histórico foram migrando para a universidade. No Paraguai, a Academia Paraguaya de la Historia, assim como suas precedentes - o Instituto Histórico Nacional (IHN) e o Instituto Paraguaio de Investigações Históricas (IPIH), representaram, e ainda representam, um importante centro legitimador da produção do conhecimento histórico. No nosso entender, ao contrário do que aconteceu no Brasil, onde o IHGB foi perdendo legitimidade frente às universidades no que se refere à produção de conhecimento histórico, a Academia Paraguaya de la Historia manteve-se, junto com as universidades do país, como um dos principais lócus de produção do conhecimento histórico nacional.

2001), de que a leitura não é anulada no próprio texto lido, mas ao contrário, ela ganha vida nas mãos de seus leitores (professores e alunos).

De acordo com Lopes (2005):

[...] Como os livros didáticos compõem um currículo escrito com poder significativo de orientar decisões curriculares, em sua análise sobre o conhecimento oficial, Apple (1994) afirma que, antes mesmo das políticas de currículo nacional, já existia um currículo nacional velado, constituído pela inter-relação das políticas estatais do livro didático com o mercado editorial. Em virtude da intensa competição e das pressões por lucros no mercado capitalista, o livro didático torna-se um produto econômico. Isso não diminui, contudo, seu caráter político e cultural. Para Apple, as decisões relativas aos livros são condicionadas por políticas governamentais, bem como expressam as visões sobre o que se entende por conhecimento legítimo. (p. 79) (grifos nossos).

Como destaca Lopes, o livro didático pode ser caracterizado enquanto produto mercadológico, haja vista que está inscrito em uma lógica mercantil de produção e circulação, obedecendo a técnicas de fabricação e comercialização, em que se registra, por trás dessa lógica, uma preocupação com o lucro38. Contudo, como apontado pela autora, falar do caráter mercadológico do livro didático não exclui, necessariamente, os aspectos políticos e culturais do mesmo. Da mesma forma, Munakata (2012a) aponta que “mercado e cultura não se excluem” (p. 58) e que “convém evitar o esquematismo simplista que vê em toda mercadoria a sombra do mal (e da indústria cultural)”. (2012b, p. 184-185).

Reforçando o aspecto político do livro didático, Décio Gatti Jr. (2004) alerta para a complexidade das relações estabelecidas entre os órgãos públicos, responsáveis pela educação, e as editoras de obras didáticas. Para o autor, as políticas públicas educacionais influenciam as editoras no que concerne a construção dos livros didáticos, mas, numa relação de mão dupla, as autoridades públicas, no momento de elaboração curricular, de alguma maneira, também sofrem influências das editoras de livros didáticos já postos no mercado, que atuam como grupo de pressão.

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Tal perspectiva vem ganhando espaço em produções acadêmicas desde os anos 1990, ainda mais porque o livro escolar representa, desde algum tempo, um importante ramo das atividades produtivas e comerciais das editoras e, hoje, indubitavelmente, constitui-se na atividade mais rentável do setor editorial brasileiro, cujo maior comprador é o Estado. Deste modo, como produto mercadológico, o livro didático sofre influências do mercado editorial, que como demonstram vários pesquisadores, tem um papel preponderante no resultado final do livro. A esse respeito, ver: MUNAKATA (1997; 2012), CASSIANO (2003; 2004a; 2004b; 2007) e GATTI Jr. (2004).

Em relação às pesquisas acadêmicas sobre os textos escolares no Brasil, Munakata (2004) afirma ter se realizado, entre as décadas de 1970 e 1980, uma verdadeira “caça às bruxas nos livros didáticos, em que se flagrava ideologia em cada frase, palavra ou vírgula” (MUNAKATA, 2004, p.10)39. Para este autor, durante o período mencionado, fez sucesso um gênero literário que poderia ser denominado de “as belas mentiras”:

Uma série de pesquisas acadêmicas dedicaram-se a flagrar nos livros didáticos e paradidáticos brasileiros a presença insidiosa da mentira, da manipulação, do preconceito, da mistificação, da legitimação da dominação e da exploração burguesas – em suma, da ideologia. Os títulos e os subtítulos de algumas dessas pesquisas já indicavam-lhes a intenção: versão fabricada, história mal contada, belas mentiras (MUNAKATA, 2003, p.271).

As belas mentiras: a ideologia subjacente aos textos didáticos, de Maria de Lourdes Deiró Nosella, foi publicada no final da década de 1970. Resultava de uma pesquisa que pretendeu analisar as obras didáticas de 1ª a 4ª séries do então I grau utilizadas no ano de 1977, na rede de ensino do Espírito Santo. A autora apresentou como resultado da pesquisa que os textos escolares se constituem como um instrumento da classe dominante. Tais livros, segundo a autora, escamoteavam os conflitos de classe “com a função de mascarar um mundo real, contraditório e injusto, de acordo com os interesses da classe hegemônica” (NOSELLA, 1981, p.177).

Em relação à obra de Nosella, Galzerani (1997) tece as seguintes críticas:

[...] Não conteriam [os livros escolares] também outros elementos relacionados a outras visões da sociedade, absorvidos e apresentados pelo autor da obra, até mesmo para garantir sua aceitação por uma parcela mais ampla da população? Em outras palavras, até que ponto o conteúdo do livro didático constitui apenas uma máscara que impede o conhecimento da vida social? Ou será que sua linguagem contraditória e ambígua não só esconderia, como também expressaria, os conflitos

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Muitas dessas obras que seguiram a perspectiva ideológica se assentaram em dois pilares excludentes entre si: as primeiras viam,nos livros didáticos, o grande vilão do ensino brasileiro, imputando-lhes todas as mazelas. As segundas concebiam os livros escolares como “panaceia universal”, na expressão utilizada pela professora Fonseca (2003, p. 52). Uma e outra, a nosso ver, trazem sérios problemas que merecem uma melhor reflexão. O primeiro porque defende a extinção ou a não utilização dos livros escolares e o segundo por acreditar que “seja possível existir ‘um livro didático ideal’, uma obra capaz de solucionar todos os problemas do ensino, um substituto do trabalho do professor” (BITTENCOURT, 2004, p.300. Grifo da autora).

da própria sociedade? Em nossa opinião, a autora [Nosella] apresenta