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Lugar de criança é na escola? Ponderações sobre modos de institucionalizar a

Apoiada pelas narrativas apresentadas até este ponto, é possível traçar algumas considerações que, por um lado são afirmativas sobre os modos de viver a infância, e por outro não devem perder o seu caráter provisório e constitutivo. Foi possível identificar, nas discussões feitas pelos/as pesquisadores/as mencionados,

que não é possível conceituar infância de maneira definitiva e singular. As infâncias são decorrência de constituições culturais, que perpassam o tempo e dependem das condições sociais. Nesse cenário, diferentes instituições se detiveram ao controle desse grupo de sujeitos, narrando, instituindo formas de viver e traçando saberes que moldaram o fazer da infância.

Chamo a atenção para um período histórico que elaborou saberes cada vez mais específicos, esquadrinhando as infâncias e dando a elas contornos que se apresentam como verdades na atualidade. Refiro-me à Modernidade. A sociedade moderna emerge, por volta do século XV, resultante de uma série de eventos que provocam crises e abalos na estrutura medieval. Com a revolução geográfica abriram-se horizontes que se deslocaram do Oriente para o Ocidente, como as grandes colonizações. Com a revolução científica, a razão é responsável por explicar todas as coisas do mundo, o que implica grandes transformações culturais e artísticas (CAMBI, 1999).

Todo esse novo quadro social, produziu grandes transformações também na educação. Pouco a pouco a educação vai sendo configurada com uma visão realista e científica, dando espaço para o surgimento de diversos espaços formativos, além da Igreja e das oficinas, alimentando novos valores educacionais para uma nova sociedade.

Para me ajudar a pensar como esse período constituiu um aparato organizacional que se ateve em capturar as infâncias, destaco as argumentações apresentadas por Varela e Uria (1992). Os autores discorrem sobre as bases administrativas e legislativas que tornam a escola um espaço de socialização, um lugar obrigatório de passagem e sua institucionalização. Esse processo é recente, pouco mais de um século. Os autores apresentam as condições históricas e sociais que fizeram da escola a instituição que conhecemos atualmente, sobretudo enquanto um espaço que foi naturalizado como o único a transmitir os conhecimentos necessários para o desenvolvimento das infâncias em suas diferentes etapas.

Iniciam problematizando o que caracteriza esta instituição (escola) que se propõe a “imobilizar” as crianças a partir dos seis anos de idade? A escola, de acordo com os autores, organiza um conjunto do que chamaram de “maquinarias” que se propõe a governar as infâncias. Esse aparato não surgiu repentinamente, mas se constituiu a partir de uma série de dispositivos que se configuraram desde

meados do século XVI.

A criança, tal como a conhecemos na atualidade, nem sempre foi pensada desta forma. Condições familiares recentes, formas de educação institucionalizada e a organização social em classes foram fatores que colaboraram para que emergissem narrativas que naturalizaram as infâncias.

Varela e Uria (1992) iniciam a abordagem desse percurso com o surgimento dos Estados modernos. Para que a Igreja pudesse sustentar seu prestígio frente aos novos desafios sociais que reconfiguraram a sociedade moderna por cerca de trezentos anos, desenvolveram-se formas de educação que visavam regular a vida e os costumes das pessoas. A Igreja, então, organiza-se em uma proposta missionária, a fim de educar os príncipes e os filhos das famílias abastadas. Colégios e instituições foram fundadas pela Igreja, ocupando-se da educação desse nicho da sociedade. Para os mais pobres restava a proteção de poucas instituições caritativas e beneficiárias, que se detiveram a prestar os cuidados básicos de sobrevivências.

Alguns concílios, como de Trento, decretaram que deveria existir um missionário em cada Igreja, a fim de educar também os meninos pobres, com o intuito de convertê-los à doutrina cristã e aos costumes virtuosos. Pouco a pouco, a educação se configura em um instrumento fundamental para naturalizar uma sociedade de classes, com diferentes programas educativos que atendam os pobres e os ricos. Como consequência, diferentes infâncias são naturalizadas como a infância angélica dos príncipes, a infância de qualidade dos filhos de classes distinguidas e a infância rude dos filhos dos pobres.

Do século XV ao XVII, protestantes e católicos conferiram às infâncias características que convergiam com seus interesses. Em geral, as características conferidas a esta etapa da vida eram: maleabilidade, fragilidade, rudeza, fraqueza de juízo e inocência. Todas essas características justificavam a necessidade de moralizar, civilizar, tutelar e converter as infâncias em espaços designados especificamente para tal, como pessoas designadas para esta tarefa. Os autores falam de uma “ortopedia moral”, um engenhoso corpo organizacional que envolvia espaço físico, recursos humanos, técnicas e metodologias especiais para colocar os corpos infantis em uma ordem que estava se configurando nos séculos em que decorreram a modernidade. (VARELA; URIA, 1992)

a infância. A escola aparece como uma instituição que retira as crianças do convívio dos adultos, reduzindo drasticamente o contato com eles. A criança passa a ser mantida a certa distância dos adultos, dando início a um processo de enclausuramento das crianças. A esse processo de enclausuramento, conhecemos como escolarização. Segundo Varela e Uria, (1992, p. 76)

As novas instituições fechadas, destinadas ao recolhimento e instrução da juventude, que emergem a partir do século XVI (colégios, albergues, casas, prisões, casas de doutrina, casas de misericórdia, hospícios, hospitais, seminários...) têm em comum esta funcionalidade ordenadora, regulamentadora e sobretudo transformadora do espaço conventual.

O isolamento passa a ser um dispositivo que contribui para a constituição da infância de tal forma que o próprio conceito de infância fica naturalmente demarcado pelo espaço escolar.

Chega-se ao século XVIII com o entendimento de uma infância inocente, especialmente quando atribuída às classes distinguidas. Isso se deve em decorrência de que nos duzentos anos anteriores (aproximadamente), práticas educativas iniciadas nas instituições religiosas e posteriormente reafirmadas nas instituições familiares, promovem uma vigilância constante, dirigindo a vida espiritual, impondo linguagem pura e proibindo ações desonestas. É importante ressaltar que essa especificidade atribuída à infância, a qual me refiro, está fortemente vinculada à infância das famílias distinguidas. Segundo Varela e Uria (1992), até por volta do século XIX, a infância pobre não recebia atenção do poder público, cabendo aos hospitais, hospícios e casas de abrigo, modelar a infância pobre.

Os espaços dedicados à infância passam a ser institucionalizados, servindo de verdadeiros laboratórios, onde serão aplicadas práticas de ordenamento próprias para o sujeito biológico e psicológico que emergia com o estabelecimento das ciências médicas e biológicas como as novas verdades da modernidade dos séculos XVIII e XIX. Com isso organizam-se saberes sobre como orientar e dirigir essa infância psicobiológica, como é o caso da ciência pedagógica.

Outro aspecto destacado pelos autores se refere à formação docente. A constituição da infância está fortemente ligada à formação dos profissionais designados para educar as crianças. Os autores evidenciam que na educação jesuítica há uma mudança do arquétipo atribuído ao mestre. Investem em uma

educação menos punitiva, com intervenções mais dóceis e individualizadas. O mestre, na perspectiva dos jesuítas, seria alguém que deveria conduzir para a boa moral, para os costumes cristãos, cuidar dos espaços de forma íntegra. Percebe-se uma ruptura em relação à educação nas Universidades medievais, já que o professor jesuíta deveria ser o exemplo primeiro das lições que ele mesmo transmitia.

O professor recebe um status de líder moral. Além de possuir conhecimentos sobre diversos saberes do mundo, somente ele teria a chave para interpretar as infâncias, assim como criar as condições necessárias e ideais para conduzi-las. Vale retomar que a educação jesuítica era voltada aos nobres. A classe menos favorecida não tinha um sistema organizado de educação (pelo menos até a segunda metade do século XIX), sendo esta oferecida por casas de abrigo, que ofereciam técnicas rudimentares de escrita e cálculo, bem como um ofício, uma profissão. Seria o ensino rudimentar para os rudes, inculcando valores que eram específicos das classes destacadas da sociedade.

Muitos dos aspectos presentes na organização das instituições escolares, tal como a conhecemos hoje, a saber níveis de ensino, conteúdos específicos, didática e técnicas de ensino, foram pouco a pouco sendo constituídas na medida em que se criavam formas de governo sobre as infâncias. As características de uma forma institucionalizada de ensino com métodos, técnicas específicas, segregação por idade e um perfil específico de professorado, foram constituindo um aparato de

maquinarias que modelaram um tipo específico de indivíduo. Um sujeito que logo na

tenra idade rompe com os laços que estabeleceu com seu grupo de origem, para ter sua conduta e sua aprendizagem modeladas às formas da nova sociedade moderna que se constituía no início do século XIX (VARELA; URIA, 1992).

A instauração da escola não apenas promoveu o governamento das condutas dos infantes, mas também desqualificou outras formas de aquisição do conhecimento. Os colégios rompem com a antiga forma de aprendizagem dos ofícios, sendo responsáveis pela disseminação de outros conhecimentos que se afastam da vida real, favorecendo um certo tipo de formalismo. O saber é propriedade do professor, que decide o que, quando e como ensinar. Os saberes que o professor detém deveriam ser “neutros”, separados da vida cotidiana e política, valendo-se de mecanismos de censura e exclusão quando necessário.

que deve ser separada das condições adultas de vida, valendo-se do moderno sentimento de família. A escola será o principal espaço público de preservação da infância, especialmente na segunda metade do século XIX, quando há a disseminação das escolas públicas, designadas às classes populares. Nesse sentido, Varela e Uria (1992) explicam que a escola serviria de clausura para afastar a infância dos efeitos nocivos da sociedade. Além disso, era o espaço ideal de controle, vigilância e condução da emergente classe trabalhadora.

Não muito distante das diferentes visões sobre infâncias que estamos aqui discutindo, nós educadores/as da pós-modernidade, pautados em diversas áreas especializadas, recorremos às múltiplas narrativas de uma infância que pode ser ingênua, maleável, inapta, ou ativa, que tem muito a dizer, capazes de ensinar inclusive aos adultos, com opinião e voz para reivindicarem suas vontades.

Creio que na contemporaneidade herdamos todas essas perspectivas sobre as infâncias. Em determinados contextos cabe relacionar a criança àquele ser frágil que nada sabe, em outros cabe compreender a criança como sujeito autônomo e capaz. Assim vamos, nós adultos, tutores das crianças, especialistas de várias correntes científicas, constituindo, criando, inventando, moldando as infâncias do nosso tempo.

Concluo este capítulo, observando que as crianças e suas infâncias foram sendo moldadas ao passo das transformações sociais, econômicas, políticas, culturais e pedagógicas de cada tempo. É nessa direção que pretendo conduzir o olhar para a análise dos PPPs, ou seja, buscando compreender as diferentes narrativas sobre as infâncias e como essas narrativas a constituem. O novo território que construí permitiu compreender o caráter polissêmico e instável dos conceitos que explicam as infâncias. Compreender as infâncias requer esse olhar multifocal.

6 FABRICAÇÃO DE INFÂNCIAS CONTEMPORÂNEAS: UMA ANÁLISE DOS SUJEITOS EM CONSTRUÇÃO

As crianças, todas as crianças, transportam o peso da sociedade que os adultos lhe legam, mas fazendo-o com a leveza da renovação e o sentido de que tudo é de novo possível (SARMENTO,2004).

Neste capítulo apresento o olhar investigativo o qual direcionei para problematizar as infâncias contemporâneas, representadas nos PPPs das escolas públicas de Educação Infantil da região metropolitana de Porto Alegre/RS.

As escolhas por eleger/criar estes ou aqueles eixos analíticos, que aqui serão apresentados, decorrem da leitura das produções de autores que articulam suas pesquisas com o campo teórico ao qual estou engajada. Essas leituras permitiram ajustar o olhar para “ver” nos PPPs as representações de infâncias acionadas/propagadas de formas diretas e indiretas. Também considerei as rupturas e as recorrências de ideias que reafirmavam como as infâncias contemporâneas são construídas a partir dos documentos ora em análise.

A construção das análises desta dissertação faz parte de um constructo em que foram realizadas escolhas e foram tomados posicionamentos, que não são ingênuos nem desprovidos de envolvimento. Enquanto docente que circula cotidianamente nos espaços escolares, as minhas inquietações em relação ao conteúdo dos documentos decorrem do fato de que este conteúdo, com frequência, faz parte das “falas”de educadores e educadoras, muitas vezes desprovidas de uma argumentação aprofundada e muito mais vinculada ao senso comum. Assim, é relevante destacar que as escolhas desta pesquisa se constituem em um envolvimento significativo entre quem pesquisa e o material empírico escolhido. Portanto, meu comprometimento é no sentido de tencionar formas de pensar, narrar e compreender as infâncias contemporâneas que emergem através dos PPPs. Por esta razão, os PPPs serão analisados, a partir do referencial teórico dos Estudos Culturais em Educação, como artefatos culturais que, na medida em que produzem representações sobre a categoria infâncias, na medida em que descrevem modos de vivê-las, vão constituindo e fixando identidades, naturalizando, de certa maneira, a forma como entendemos as crianças do nosso tempo.

Após uma leitura atenta e detalhada dos quatro PPPs que compuseram o material empírico desta investigação, organizei excertos em dois eixos principais. No

primeiro, com o título “A reiteração de uma infância dotada de essência”, analiso os excertos que evidenciam aspectos, construídos e reforçados durante a Modernidade, que seriam inatos à infância, como a pureza, a inocência, a imaturidade. Além disso, problematizo as evidências de duas representações de infâncias, “naturalizadas” através dos documentos: a infância que necessita de cuidados e a infância constituída a partir do lúdico e do brincar.

No eixo seguinte, com o título “Construindo identidades: infâncias capturadas

para um projeto de cidadania”, analiso as proposições que anunciam as infâncias

como um período crucial para o desenvolvimento dos sujeitos e que, nesse sentido, deve ser educado a fim de produzir um modelo de sociedade pautado nos princípios da democracia, liberdade e harmonia.

Ao longo das discussões, irei apresentar trechos dos PPPs que indicam as escolhas pelos eixos analíticos, bem como dialogam com produções acadêmicas atreladas ao campo teórico que tomei como referência. Ao final dos excertos, farei a referência ao PPP, utilizando a letra “P” maiúscula, para me referir ao documento. A numeração 1,2,3 ou 4 refere-se ao PPP específico de cada localidade, conforme quadro a seguir. Logo após farei a indicação da página.

O quadro abaixo é o mesmo apresentado no capítulo metodológico. Apresento-o aqui, novamente, com o objetivo de retomar qual número de PPP se refere a qual localidade, para que o/a leitor/a possa situar-se quanto aos excertos que serão apresentados e problematizados posteriormente.

Quadro 3: Material empírico utilizado na pesquisa

Referência ao

documento Localização Elaboração Forma de acesso

P1 São Leopoldo/RS 2014 Material físico

P2 Canoas/RS 2014 Material físico

P3 Canoas/RS 2018 Material físico

P4 Gravataí/RS 2015 Material físico

Vale ressaltar, ainda, que os excertos serão apresentados em itálico, com fonte inferior, sem recuo (mesmo quando houver mais de três linhas). Optei por esta

organização, pois facilitará a leitura dos excertos e os distinguirá das citações teóricas as quais utilizarei para discutir as representações de infância.