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Representação de infâncias articulada ao imperativo do cuidado e do afeto

6.1 A reiteração de uma infância dotada de essência

6.1.1 Representação de infâncias articulada ao imperativo do cuidado e do afeto

São muitas as formas de representar as infâncias. Como já foi possível observar na seção anterior, as infâncias vêm sendo apresentadas nos documentos analisados como dotadas de uma série de características, dentre as quais aquelas propagadas especialmente na Modernidade: fragilidade, pureza, inocência, etc. Além de outras como, por exemplo, curiosidade e capacidade de imaginação. Nesta seção, busco tecer discussões sobre dois imperativos que se articulam à representação de criança frágil e carente de cuidados que é recorrente no material empírico desta dissertação.

Ao deparar-me com a história das quatro instituições de Educação Infantil pesquisadas – presentes nas primeiras seções dos PPPs – observei que todas foram criadas inicialmente como projetos assistenciais, associações ou casas de cuidados às crianças, cujas mães necessitavam trabalhar fora do âmbito do lar. O quadro de funcionários era composto basicamente pelas próprias mulheres/mães da comunidade, tendo como principal função a atenção aos cuidados básicos das crianças, que poderiam ficar até 12 horas nessas “casas de cuidados”. Alguns desses projetos foram elaborados pelas igrejas locais e, ao longo dos anos, foram ganhando caráter pedagógico, mas sem perderem o enfoque nos cuidados. Os excertos a seguir demonstram o início das escolas como um projeto assistencial.

E assim, uma comissão formada por assistente social, psicólogo e nutricionistas passaram a orientar as mães moradoras que dali para frente estariam incumbidas de cuidar das crianças, em turno integral, das 6 horas às 19 horas, de segunda a sexta feira. (P1, p. 8) E o Projeto Barracão deu certo. Por dois anos muitas crianças da Vila Brás foram alimentadas e atendidas, pois se tratava de um projeto essencialmente assistencial. (P1, p. 9)

O terreno em que a escola foi construída localizada à Rua (...) e pertencia ao senhor (...), um grande empresário da cidade, que gentilmente cedeu a área à Prefeitura para que nela fosse construído um local adequado para atender as crianças enquanto as mães trabalhassem. (P3, p. 8)

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira de 1996, muda esse cenário, já que a partir desta lei a Educação Infantil passa a ser considerada a primeira etapa da Educação Básica. Se, até a aprovação da lei, a educação nas creches era voltada especialmente aos cuidados básicos, a nova LDB integra à Educação Infantil um caráter pedagógico, até então atribuído ao Ensino Fundamental e Médio.

Isso não significa dizer que até 1996 não houvesse investimento pedagógico nas atividades realizadas nas creches, porém a Lei Federal normatiza e normaliza saberes e fazeres que irão tornar o sujeito da educação infantil um sujeito a ser capturado pelas racionalidades que constituem a pedagogia.

A esse respeito, Fernandes (2016) realizou uma pesquisa sobre o processo de constituição da Educação Infantil no Brasil, refletindo sobre a passagem da liberdade de escolha das famílias em deixarem seus filhos aos cuidados das creches, para a obrigatoriedade de frequência desses sujeitos na escola de educação infantil. Esse processo permite pensar sobre as concepções de infâncias que tiveram representações diversas durante as mudanças na legislação.

De acordo com Fernandes (2016), na segunda LDB (lei número 5.692/1971), a frequência às creches e aos jardins de infância ainda não era obrigatória, mas recebiam uma ênfase como trabalho pedagógico sistematizado, o que poderia garantir a diminuição do fracasso escolar nos anos iniciais e a superação da pobreza. Havia uma ênfase nas políticas compensatórias, que buscavam, através da educação institucionalizada, compensar as carências de ordem social e cultural. Neste período, a educação pré-escolar era confiada ao Ministério da Saúde e da Previdência. As décadas de 1970 e 1980 foram marcadas por lutas sociais no sentido de buscar um caráter educacional e não somente assistencial às creches e pré-escolas.

A partir deste entendimento, propõe-se que as instituições de educação para crianças de 0 a 6 anos de idade deveriam ser compreendidas para além de um direito familiar ou da mãe, mas também, como um direito da criança. Nesse contexto, inicia-se a trajetória de lutas para propor uma função pedagógica às creches e pré-escolas. Junto a esta definição da necessidade de estabelecer um caráter pedagógico para a idade de 0 a 6 anos, lutas por democratização da escola pública e movimentos feministas e sociais de luta por creches conquistaram, na Constituição de 1988, o reconhecimento da educação em creches e pré-escolas como um direito da criança e um dever do Estado, a serem cumpridos pelos sistemas de ensino (FERNANDES, 2016, P. 52)

Já na década de 1990, uma nova vertente de discussões se volta para a qualidade da educação ofertada nas creches e pré-escolas. Os debates impulsionaram uma série de setores a defender um novo modelo de Educação Infantil, com pesquisas e publicações, que tiveram um papel importante na elaboração da terceira LDB (lei número 9.694/1996).

Este cenário composto a partir da Constituição de 1988 levou à aprovação da Lei n. 9.394/1996 – LDB. Esta estabelece a Educação Infantil como etapa inicial da Educação Básica, determina a desvinculação das creches dos órgãos assistenciais, realiza a diferenciação de creches e pré-escolas pela idade das crianças, além de colocar as duas na posição de integralidade da Educação Básica brasileira (FERNANDES, 2016, p. 53).

No contexto histórico mencionado, as narrativas de caráter assistencial foram sendo substituídas por discursos jurídicos, articulando a infância à educação escolarizada, passando a assumir um caráter pedagógico. Antes da LDB de 1996, a pré-escola antecedia o ingresso ao ensino fundamental e a creche estava vinculada à assistência social. As escolas cujos PPPs foram analisados, foram fundadas antes da aprovação da LDB de 1996, o que justifica o fato de terem iniciado suas atividades de forma assistencial, como é percebido nos excertos extraídos do material empírico reproduzidos anteriormente. A nova LDB atribui tanto à creche quanto à pré-escola, caráter pedagógico e classifica estes níveis como os primeiros da Educação Básica. A Educação Infantil passa a ser responsabilidade das Secretarias de Educação, que subdivide a escola infantil de acordo com a faixa etária das crianças (FERNANDES, 2016).

Nesse sentido, o ato de cuidar, até então preocupação primeira das instituições de Educação Infantil, não fica deslocado da lógica pedagógica. Ao contrário, cuidar passa a ser pedagógico.

Também, é revelada a compreensão de que as instituições de Educação Infantil têm por função educar e cuidar de forma indissociável e complementar a família, buscando o desenvolvimento integral das crianças.(...)Nesse sentido, é realizada a busca por construção de propostas pedagógicas, que devem levar em conta a especificidade da ação educativa para este nível de ensino: integralizar o cuidado e a educação, não esquecendo de pensá-la como etapa anterior ao Ensino Fundamental (FERNANDES, 2016, p. 54)

O caráter relacional entre cuidar e educar estabelecida pela LDB é reforçada em leis estaduais e municipais, emendas e pareceres que irão ser referenciados em documentos escolares, como os PPPs, desdobrando-se no fazer escolar. Os documentos pesquisados apresentam, em várias passagens, a confirmação de que cuidar e educar são indissociáveis.

A educação infantil possui duas dimensões: a de cuidar e a de educar, que devem ser consideradas como essenciais e importantes nas propostas pedagógicas voltadas para essa faixa etária, sendo necessário ressaltar que o cuidar compreende os cuidados básicos com a alimentação, a higiene e o vestuário. E além do cuidar é necessário o educar a criança, colocando-a como indivíduo que possui o direito de se apropriar do conhecimento. (P3, p. 9/10)

Assim, a criança, como um ser completo e em desenvolvimento, necessita de cuidados em um contexto educativo. Portanto, o cuidar e o educar são elementos indissociáveis. (P4, p. 14)

Apesar da mudança de ênfase de instituições assistencialistas para instituições educativas, o cuidado continua sendo um imperativo nas escolas voltadas às crianças até cinco anos de idade. Isso decorre, como mencionei no início desta seção, da naturalização de que a infância é um período de fragilidade, docilidade, devendo ser preservada e protegida das mazelas do mundo. Nesse sentido, cuidar das crianças torna-se um imperativo na educação infantil.

Contudo, considero relevante retomar que a naturalização de uma infância dócil e frágil, que necessita de cuidados e afeto, é uma invenção da modernidade. Bujes e Dornelles (2012, p. 13/14) elucidam que “a infância, tal como a concebemos hoje, poder-se-ia dizer, é um fato recente, fruto de um modo novo de pensar as crianças que se disseminou num passado muito próximo, no espaço temporal”. Carvalho (2014) é outro autor que colabora para essa discussão. Segundo ele, cuidado e afeto são vistos como atributos indispensáveis para a docência na Educação Infantil. Entretanto, salienta que eles não são naturais, mas construídos cultural e socialmente. Ou seja,

[...] eles são históricos, cambiantes, construídos e aprendidos diariamente nas relações estabelecidas pela professora no contexto da sala de aula, ao educar, cuidar e brincar com as crianças, respeitando-as como sujeitos de direitos e produtoras de culturas infantis. (CARVALHO, 2014, p. 6)

O que ponho em questão aqui é que colocar a forma de viver a infância como algo “natural”, é desconsiderar que esta categoria é fruto de intervenções de instituições modernas como a família e a escola, fruto de condições específicas da vida em sociedade, consequência do aparato de regras, narrativas e condições a ela

atribuídas.

Além disso, é importante observarmos que a Pedagogia, conforme referido anteriormente, vale-se de conhecimentos elaborados em determinado momento histórico, recente e que privilegia o discurso científico. Desta forma,

As práticas pedagógicas, ao se valerem de conceitos tomados de empréstimo da Psicologia, criam um sujeito ideal, parâmetro ao qual todas as crianças de ‘carne e osso’ deveriam se assemelhar(BUJES; DORNELLES, 2012, p. 25).

O que pretendo nesta subseção, em articulação como as autoras referidas, é evidenciar que as práticas pedagógicas assumidas nas escolas de educação infantil a partir do que consta nos PPPs não estão “revelando” a infância, mas estão pondo em circulação representações de infância que podem produzir efeitos nas constituições identitárias infantis.

Tal como Carvalho (2014) questiono, portanto, o imperativo do afeto e do cuidado como “essencial” e “inerente” à docência na Educação Infantil, em decorrência de uma representação de infância, cuja “natureza” é frágil, delicada, pura. Talvez essa representação reforce esse imperativo nos PPPs, como é possível perceber no trecho a seguir:

A Escola de Educação Infantil (...) tem a tarefa de proporcionar trocas de experiências com outras crianças e um relacionamento de afeto, respeito e responsabilidade[...]. (P2, p. 9, destaques meus).

A afirmativa em torno da importância do afeto e do cuidado na Educação Infantil não está sendo questionada neste trabalho. O que me proponho a colocar em destaque é que tomo essas narrativas como produções sociais, criadas em determinadas condições que são históricas. Creio que esta discussão seja importante para a prática docente, a fim de colocar sob suspeita as prescrições tidas como verdades sobre o sujeito infantil.

Retomando o viés estabelecido para esta seção, o cuidar associado ao educar, atrelado a uma “natureza” infantil que precisa de proteção, são recorrentes e aparecem extensamente em vários capítulos dos PPPs, como destacado a seguir:

e EDUCAR esteja aliado ao compromisso com os Princípios Éticos da Autonomia, Responsabilidade, Solidariedade e do Respeito ao Bem Comum, procurando entrelaçar a história do EU INDIVIDUAL a do EU COLETIVO, onde a criança possa aprender a socializar-se, ser independente, cooperativa e autônoma, tendo como eixo norteador a ludicidade. (P2, p. 14)

Apreciar o cuidado na Educação Infantil significa compreendê-lo como parte integrante da educação, embora cuidar de uma criança em um ambiente educativo constitua a interação de vários conhecimentos e o comprometimento dos profissionais no sentido de auxiliar o outro a se desenvolver como ser humano e estabelecer vínculos entre quem cuida e quem é cuidado. (P4, p. 14/15)

O excerto apresentado, referente ao PPP número 2, coloca em destaque o cuidar e o educar, utilizando a fonte com letras maiúsculas. A socialização, o desenvolvimento da autonomia e a cooperação aparecem como o resultado desse processo em que cuidar e educar são fundamentais na educação das crianças pequenas. Vale ressaltar que o esse sujeito será o “cidadão do futuro”, portanto necessita ser investido de uma educação de qualidade e cuidados específicos, devendo ser afastado de uma realidade social degradante.

O trecho do PPP número 4 destaca o caráter pedagógico do cuidar, na medida em que nomeia o cuidado como parte integrante da educação. Além disso, “cuidar de uma criança no ambiente educativo” é uma tarefa que envolve diferentes áreas do saber e profissionais capacitados, no sentido de promover o vínculo afetivo entre o adulto que cuida e a criança que é cuidada. Neste último trecho do excerto, o

comprometimento dos profissionais no sentido de auxiliar o outro a se desenvolver como ser humano, o adulto desta relação é posicionado como alguém responsável pela constituição do outro, a criança, enquanto ser humano.

As discussões propostas em capítulo anterior, sobre identidade e diferença, oferecem ferramentas para repensarmos essa relação adulto/criança. No excerto apresentado, a infância é posicionada como o diferente em relação à identidade adulta, tida como o ideal em um processo de desenvolvimento. Esse outro da relação, a infância, é representada como desprotegida, necessitada de cuidados e afeto, a fim de, no futuro, alcançar o “estágio pleno” de seu desenvolvimento, a adultez. Essa relação, adulto/criança, está permeada por sistemas que classificam os sujeitos e os posicionam a partir de processos que envolvem disputas, poder e hierarquias (SILVA, 2000).

oferecerem às infâncias – período de incompletude – as ferramentas para seu desenvolvimento pleno. Assim, os adultos são capazes de agir sobre as infâncias, constituindo suas identidades, na medida em que as narram como o outro de uma relação que não deixa de ser desigual.

As afirmativas que venho construindo ao longo de todo este trabalho, direcionam para um tencionamento frente às proposições dispostas nos PPPs, que acabam frequentemente tornando-se hegemônicas e tomadas como verdades praticamente inquestionáveis.

Neste momento das discussões, considerando que entrei na seara das identidades afirmadas pelos adultos, retomo a pesquisa realizada por Carvalho (2014), cujo foco de análise são os relatos discentes que dizem respeito à forma como compreendem a relação “cuidar e educar”.

Carvalho (2014) apresenta vários relatos em que a aprendizagem é tida como consequência do cuidado e do carinho que as professoras demonstram pelas crianças. Esse tipo de narrativa está condicionado a uma rede de práticas na qual as acadêmicas estão inscritas. O pesquisador afirma que os discursos pedagógicos definem o afeto como algo natural e que indo na contramão desse ideário

O estabelecimento de vínculos afetivos com as crianças é uma prática desenvolvida no interior da cultura (via escolarização, formação docente, exercício profissional, pedagogias culturais que instituem e fazem discursos generificados sobre a docência, a aprendizagem, o trabalho pedagógico, etc) e, portanto, contingente e sujeito a múltiplas significações pelos indivíduos (CARVALHO, 2014, p. 6)

Não se trata de negar os atributos do cuidado e do afeto, mas é importante problematizar a forma como as representações que vinculam educação e cuidado estão sendo naturalizadas, especialmente na Educação Infantil. Articulado às discussões que estão sendo propostas nesta seção, elegi passagens nos PPPs que traçam o perfil do profissional da educação infantil. Em meio a um conjunto de atributos, o cuidado, o afeto e o compromisso com o desenvolvimento da criança são assim narrados:

Atribuições do professor da educação infantil:

7. conhecer o desenvolvimento integral da criança e do aluno (aspectos físicos, emocionais, afetivos, cognitivos e sociais), propondo estratégias educativas que promovam o pleno desenvolvimento do educando e seu projeto par o exercício da cidadania; (P3, p. 20).

25. assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à educação, à saúde, à alimentação, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão; (P3, p. 21).

O que Carvalho (2014) evidencia em sua pesquisa, e que tomo como ponto de articulação nas análises aqui propostas, é que o afeto, seja enquanto prática pedagógica dos adultos em relação às crianças, seja como elemento constitutivo da própria criança, não ocorre de forma natural. Os afetos são contingentes, constituídos historicamente e construídos diariamente no cotidiano escolar. Eles não são puros, naturais, instintivos ou eternos.

Considero importante destacar que as formas de representar as infâncias contemporâneas, presentes nos PPPs analisados, colocam em evidência uma infância eminentemente afetuosa, que precisa ser cuidada, que está em processo de desenvolvimento e por isso deve ser investida de atenção e cuidado. Os autores que constituem o aporte teórico apresentado, auxiliam-me a compreender que os PPPs não estão pondo em circulação representações sobre como a infância é em sua “essência”, mas, ao representá-la de determinado modo, acabam colaborando para a constituição de identidades infantis.

6.1.2 Um corpo em movimento, uma infância que brinca: o lúdico na educação