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N ão se pesquisa antes para depois pensar/ler/escrever.

4.2 Um lugar junto ao grupo

A inserção de um pesquisador não indígena em uma comunidade indígena é sempre um grande desafio. Poucos grupos estão abertos ao diálogo e dispostos a um estreitamento de relações com pessoas de fora. Em referência aos Kaingang, há uma desconfiança tácita acerca das intenções que permeiam o interesse do “homem branco” que se aproxima da comunidade, e, em especial, o interesse do pesquisador. No decorrer do curso, pude observar isso na fala de alguns professores:

- A senhora tem que ver professora, vem muita gente de fora aqui e quer saber das coisas; gente que depois nunca mais parece mais aqui na aldeia; pedem de tudo um pouco, registram, escrevem, tiram fotos; a maioria é das faculdades por aí; tem gente de faculdade bem de longe, até de Brasília e São Paulo que nunca nem mandam nada sobre o que pesquisaram.

- A gente sabe que é cheio de pesquisa da nossa terra, é só entrar na internet, uma professora lá da Uno que falou e daí a gente viu, só coloca lá Xapecó e dá pra ver um monte, só que esses trabalhos não ficam aqui, tem bem poucos; tinha até que alguém imprimir tudo e deixar na escola pra consulta, né?

- Só o pessoal lá do laboratório de línguas da profa. Ana e lá da Uno do

prof. Leonel61 que continuam sempre vindo e trazendo as coisas

produzidas e envolvendo a comunidade; o resto some no mundo, e ninguém nem sabe o que é que eles escrevem de nós.

- Tem uns índios e umas índias, mais velhos, que são muito procurados, e agora eles até cobram pra dar entrevista, de tanto que dão. Eu não acho certo, mas eles já tão enjoados de tanto falar.

Não é difícil encontrar as razões para essas manifestações. Foram anos de exploração e opressão que esse povo sofreu – como já apresentei no capítulo II – marcados pela imposição de um modelo de cultura que não reconhecia os valores e a tradição dos Kaingang. Nesse contexto, familiarizaram-se com a ideia de que seus conhecimentos tinham pouco valor, e questionam-se por que agora os pesquisadores

61 Refere-se ao grupo do Laboratório de História Indígena da UFSC, coordenado pela Profa.

Ana Lúcia Vulfe Nötzold, e ao grupo de pesquisa da UNOCHAPECÓ, coordenado pelo Prof. Leonel Piovezana.

mobilizam-se para acessar esses conhecimentos. É coerente a preocupação da comunidade considerando que ela não recebe retorno de muitas das pesquisas ali desenvolvidas. A desconfiança funciona como um mecanismo de defesa dos interesses de uma sociedade que promoveu, por muitos anos, o apagamento da identidade desses indígenas.

Diante do tema que me propus identificar, com o foco na formação continuada de professores que ensinam matemática, estava confiante de que o caminho a ser seguido perpassava pela formação de um grupo de trabalho colaborativo com esses professores, de forma que “vencer” essa desconfiança era condição necessária para o desenvolvimento do trabalho. Pessoalmente, sentia-me desafiada em ser aceita por aquele grupo e sabia da importância da etapa de aproximação desenvolvida através do curso, de junho a setembro de 2009.

A estratégia utilizada foi simples: escutar.

Escutar histórias, ideias, dúvidas, relatos da experiência de ser professor, de ser lutador, de continuar acreditando na educação; escutar preocupações, angústias, mas também alegrias.

A inspiração vem de Freire:

Se na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que, em certas condições, precise de falar a ele. (1996, p.113). Freire (1996) nos diz ainda que aceitar e respeitar a diferença são virtudes sem as quais a escuta não se pode dar. Ouso complementar dizendo que a escuta indica o respeito pela diferença, o que possibilita a aceitação. Por isso, a escuta foi a âncora para todas as atividades: do que falavam e do que silenciavam.

Dessa forma, o curso desenvolvido possibilitou a construção de uma relação dialógica com os professores, criando as primeiras situações de troca de saberes e de experiências, os primeiros laços de confiança.

Essa etapa de trabalho constitui-se como um espaço de convivência com os professores indígenas, que me oportunizou identificar algumas concepções que fundamentam o seu trabalho no

cotidiano escolar, as suas dificuldades e as suas potencialidades. A partir das atividades desenvolvidas, através da análise das anotações pessoais dos participantes em seus cadernos de registro, bem como de cartazes elaborados, fotos e do meu diário campo, foi possível elencar alguns elementos fundamentais acerca desse cotidiano na TI Xapecó:

a) a maioria dos professores tem formação inicial em cursos superiores não diferenciados ou específicos para trabalhar em uma escola indígena; com uma formação fortemente impregnada pela cultura ocidental, desafiam-se na construção de uma escola indígena específica, bilíngue e intercultural;

b) o grupo tem participado de um processo de formação continuada constituído a partir de palestras, de cursos de capacitação e treinamentos que passa à margem do cotidiano da sala de aula - talvez muito teóricos, ou pautados na intenção de sugerir modelos;

c) o modelo de ensino nas escolas da TI Xapecó, o calendário, o currículo e o material didático disponível não atendem às demandas da escola indígena; os professores que ensinam matemática não desenvolvem processos que consideram os conhecimentos tradicionais de matemática kaingang e têm, ainda, dificuldade em relação à habilidade de lidar com noções matemáticas; a partir das atividades propostas, demonstraram a compreensão de que existe a matemática de seu povo e o desejo de conhecê-la, valorizá-la e encontrar formas para socializá-la no cotidiano escolar;

d) existe um discurso bem elaborado acerca de uma educação voltada para a cultura Kaingang, mas não existe uma prática docente que oportunize essa construção na escola. Há uma mudança sociológica mas não epistemológica nesses professores. Isso foi possível verificar no decorrer do curso desenvolvido com eles, quando as questões que tínhamos como fundamentais nas discussões não emergiram nas propostas apresentadas no trabalho final;

e) a escola é considerada o espaço onde o conhecimento tradicional de seu povo e os novos conhecimentos científicos e tecnológicos deverão articular-se de forma equilibrada e, principalmente, o espaço de reafirmação das identidades e da construção permanente da autonomia e das alteridades;

f) há necessidade de oportunizar ao professor indígena a reflexão sobre sua ação pedagógica, mas também sobre possíveis conflitos, e a partir disso o planejamento e a execução de novas ações, considerando que tem como base de trabalho a pluralidade cultural. Ele precisa de um tempo e acompanhamento para adaptar-se às

transformações, aceitá-las e desejá-las, de maneira que façam parte de seu cotidiano e sejam incorporadas às suas práticas profissionais, gerando um processo educativo diferenciado.

g) professores indígenas que ensinam matemática e participaram do curso mobilizaram-se na organização de um grupo de trabalho, de forma voluntária, com o objetivo de dar continuidade no processo de formação.

O corpus62 constituído nessa etapa inicial da pesquisa forneceu elementos para caracterização dos sujeitos e do cenário, bem como permitiu a identificação das condições efetivas para desenvolver a modalidade proposta: a organização do grupo de trabalho, mobilizada pela boa relação do pesquisador com os professores e o desejo desses professore em fazerem parte do grupo.

Considerando o contingente desse grupo, da reflexão inicial acerca da formação continuada e do fazer cotidiano do professor indígena que ensina matemática, emergiram novas inquietações: como criar condições para promover o “fazer diferente” desses professores em sala de aula, a partir da percepção de que existe a matemática de seu povo que eles desejavam? Como desencadear processos para conhecê- la, valorizá-la e encontrar formas para oportunizar à comunidade indígena Kaingang o acesso a ela? Esses eram os desejos deles. O meu, a construção de um trabalho que fizesse a diferença na vida daqueles professores.

Era o momento de definir o foco do trabalho. O primeiro passo foi inventariar as produções da comunidade científica que tratam sobre o tema, para situar minha proposta de trabalho: que caminhos seguiram? Quais os principais pontos de referência para esse trabalho? Diante da realidade instaurada a partir do corpus inicial, com toda a complexidade e contradições, organizei a revisão de literatura a partir de dois eixos teóricos: a busca de significados e o papel social da matemática, que apresento a seguir.

62 O termo corpus refere-se ao material empírico constituído após a realização da coleta de

dados. É sobre os dados efetivamente coletados – o corpus – que o pesquisador irá concentrar seus esforços de análise (BAUER; AARTS, 2005).