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Marco referencial: a expropriação das terras e o território da Terra Indígena Xapecó

Quem me dera, ao menos uma vez, fazer com que o mundo saiba que seu nome

2.1 Marco referencial: a expropriação das terras e o território da Terra Indígena Xapecó

Ao olharmos a história dos últimos duzentos anos de contato dos Kaingang do oeste de Santa Catarina com as sociedades não indígenas, conseguiremos compreender as mudanças impostas à dinâmica social e cultural do grupo - sempre à mercê da interferência externa - que o conduziu a uma autonegação: não queriam se identificar como indígenas, mas também não podiam se reconhecer como brancos ou negros. A história é marcada por conflitos pelo território e pela repressão colonial que, além da negação de sua identidade, promoveram o apagamento de sua língua, numa tentativa de “transformar” o indígena em um sujeito comum, como veremos a seguir.

Podemos pensar como marco referencial a expropriação das terras dos Kaingangs do oeste catarinense, um processo com muitos atores e interesses alheios. O oeste catarinense foi intensamente disputado durante os séculos XVIII e XIX sendo que até o século XVII, os Kaingang tiveram contatos esporádicos com os não indígenas, através de viajantes, missionários e alguns bandeirantes.

De acordo com D´Angelis (1995), a ocupação territorial Kaingang e, em especial no oeste de Santa Catarina, é deflagrada pela

Coroa Portuguesa com a conquista desse território após disputa com a Espanha, considerando a possibilidade econômica que representava o gado existente no Rio Grande do Sul, nas antigas estâncias jesuíticas (uma vez extintas as missões). Esses elementos mobilizaram D. João VI a ordenar a guerra aberta contra os Kaingang e Xokleng, no início do século XIX, tendo por finalidade conquistar suas terras, de modo especial seus campos naturais de Guarapuava e Palmas para expansão da criação de gado pela Coroa.

Um ponto a destacar em referência da ocupação territorial Kaingang no oeste de Santa Catarina é o fato de que essa ocorrência não só foi reconhecida historicamente pelos governos brasileiros e provinciais, como foi usada pelos primeiros governos republicanos como prova do domínio luso-brasileiro sobre a região. De fato:

[...] a ocupação Kaingang foi o principal argumento do Barão do Rio Branco para defender a pretensão brasileira sobre as terras do Oeste Catarinense, contra a Argentina. Ele estabelecia que os Kaingang sempre foram súditos do rei de Portugal, enquanto os Guarani o eram da Espanha. (VEIGA, 1989, p.41).

A penetração luso-brasileira foi marcada por confrontos com os Kaingang, pois, segundo Mabile (apud NÖTZOLD, 2003), estes não se entregavam sem resistência, já que estavam acostumados a uma liberdade sem limites e a um sistema de governo e organização social sem nomes, o aldeamento18 representava um perigoso cativeiro.

Com a ocupação voltada para a exploração econômica, o governo promovia o apagamento da identidade destes povos:

Modificando seus conceitos de sociedade, religião e política. Uma ocupação imposta aos indígenas visando além do total controle sobre o grupo, a liberação das áreas para exploração econômica, exploração essa que ocorreu de diversas formas, a princípio com a exploração dos campos para o gado, posteriormente com a exploração madeirei a e dos ervais, e a partir de 1850, com a Lei de terras, a especulação imobiliária sobre terras sagradas e ancestrais. (NÖTZOLD, 2003, p.72).

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De acordo com Nötzold (2003), o conceito de aldeamento nesse contexto significa acabar com a autonomia desses grupos indígenas, ou seja, transformá-los em dependentes de outro poder, o da civilização.

Um dos artifícios usados para a conquista foi a cooptação de lideranças indígenas. Um caso exemplar foi com o cacique Vitorino Kondá19, que fez a mediação entre os Kaingang e o governo das províncias. De acordo com Silva, “o papel de Condá era apaziguar os conflitos existentes nas disputas de terras, colaborar na sujeição de grupos hostis e contribuir para o aldeamento de outros indígenas”. (SILVA, 2009, p.36).

Os colonizadores utilizavam indígenas que consideravam ‘mansos’20 para a ‘pacificação’ dos que resistiam, sendo que Kondá teve grande influência no destino de seu povo, trabalhando em troca de soldos (o cacique e seus principais auxiliares receberam títulos militares) e de presentes.

A referência Kondá é importante na região: empresta seu nome a ruas, estágio de futebol, locais turísticos. É considerado como herói por alguns, como um traidor por outros. Evidencio essa personagem, porque a maior escola da Terra Indígena Xapecó - TI Xapecó, onde desenvolvo essa pesquisa, foi inaugurada com o nome de Escola Estadual São Pedro (1960), passando a Escola Federal Vitorino Kondá (1984) e posteriormente para Colégio Estadual Vitorino Kondá (1989), com base em alguns processos políticos; em 1999 teve, por solicitação da comunidade, a alteração para Escola Indígena de Educação Básica Cacique Vanhkrê21. O cacique Vanhkrê foi outro importante personagem - este na defesa da causa dos Kaingang - principalmente na demarcação de terras na TI Xapecó.

Em 1882, foi instalada no município de Xanxerê a Colônia Militar de Xapecó, comandada por Jose B. Bormann. Em 1892, a Colônia foi incumbida de abrir uma picada para a colocação de uma linha telegráfica, Chapecó-Goio-Ên, unindo-a ao resto do país, sendo que contratou para o serviço os indígenas de Xapecó e Clevelândia. Na ocasião do pagamento pelo serviço, o cacique Vanhkrê não quis receber

19 Também citado na literatura como Vitorino Condá.

20 Esses índios substituíam os bugreiros, caçadores de índios que saiam em grupos de 8 a 15

homens, na maioria caboclos, comandados por um líder, com a função exterminarem os índios para que pudessem explorar a área economicamente.

21 Em 1999 através de estudos e pesquisas a respeito da história da comunidade, professores e

alunos descobriram a verdadeira face do índio Vitorino Kondá, que em vez de protetor e defensor dos índios foi na verdade um traidor contratado por fazendeiros, para tomar as terras indígenas. E aprofundando as pesquisas, descobriram a história do Cacique Vanhkrê, que foi o

primeiro cacique responsável pela compra desta terra. Disponível em

pelo trabalho em dinheiro, pedindo-o em terras. Disse ele ao homem do governo:

‘Olha, nós precisamos de terra prá criar os nosso filhos, que nós não vamos criar os nossos filhos nas copas dos pinheiros. Nós não somos macacos.’ – ‘E onde vocês querem a terra?’ perguntou o oficial. ‘Entremeio o Chapecó e o

Chapecosinho” respondeu o cacique.

(D’ANGELIS, 1995, p.185).

Assim teve origem o Decreto n.7, de 18 de junho de 1902, assinado pelo então presidente do Estado do Paraná, Francisco Xavier da Silva:

Atendendo a que a tribu de Coroados de que é chefe o cacique Vancrê em número aproximado de duzentas almas, acha-se estabelecido na margem esquerda do rio Chapecó, no município de Palmas; e considerando que é necessário reservar uma área de terra para que os mesmos índios possam, com a necessária estabilidade dedicar-se à lavoura, à que estão afeitos [...] fica reservada para o estabelecimento da tribu de indígenas coroados ao mando do cacique Vancrê, salvo direito de terceiros, uma área compreendida nos limites seguintes: A partir do rio Chapecó, pela estrada que segue para o sul, até o passo do rio Chapecozinho, e por esses dois rios até onde eles fazem barra. (NÖTZOLD, 2003, p.83). O início do século XX assistiu à demarcação da maior parte das atuais terras indígenas dos Kaingang. Porém, no mesmo período, as terras começam a ser cobiçadas, invadidas, dilapidadas e griladas. Os índios viviam ameaçados e suas terras eram constantemente invadidas, seja para a derrubada das árvores ou para o cultivo agrícola. Em vista das inúmeras contendas, em 1941 foi implementado um Posto Indígena (PI) na área entre o cruzamento dos rios Xapecó e Chapecozinho, sendo chamado de Posto Indígena Selistre de Campos22, que viria a dar origem à Terra Indígena Xapecó. Aos Kaingang foram destinados 50.000 ha. Porém, em 1965., quando o título definitivo da terra foi expedido, a área dessa TI representava uma extensão de apenas 15.623 ha.

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Dr. Antonio Selistre de Campos, juiz de direito em Chapecó nas décadas de 30 e 40, foi defensor dos Kaingang em diversos episódios, tendo escrito mais de 30 artigos sobre a TI Xapecó, até a sua morte, em 1957.

Nesse mesmo período, na década de 40, o SPI teve contato com a região do oeste catarinense. O SPI foi criado em 1910, como justificativa à comunidade internacional referente ao extermínio do indígena no Brasil. Segundo Orlandi (1990), na verdade o SPI foi um serviço de controle do índio e de proteção a alguns brancos.

Conforme Santos (1970), as práticas de gestão iniciadas pelo SPI foram consolidadas segundo uma visão empresarial, assumida pela FUNAI a partir de 1967, que passou a implantar projetos para a exploração dos recursos naturais e da mão de obra indígena nas TIs.

A partir de 1948, o SPI iniciou um arrendamento das terras indígenas para agricultores da região. De acordo com Nacke e Blomer (2007) havia 159 famílias não indígenas ocupando 2.495ha das terras da área, com anuência formal do SPI ou da FUNAI. Tal ocupação e exploração teve fim em 1978, com a expulsão dos agricultores da TI.

Na TI Xapecó foi instalada uma serraria em 1976, com capacidade de processar três mil dúzias de madeiras por mês. Ela só foi desativada depois que devastou toda a área. Segundo Nötzold “ a desculpa utilizada para a retirada da madeira sempre foi a construção de casas para os indígenas, porém, na TI Xapecó, por exemplo, de onde dizimaram pelo menos 150 mil pinheiros, até hoje não existe casas para todos”. (2003, p.90).

A partir da década de 1990, segundo Nacke e Blomer (2007), as decisões relativas à exploração dos recursos foram centralizadas na liderança da TI, que passou a controlar os empreendimentos em execução: uma olaria construída na TI com recursos advindos da venda dos equipamentos da serraria, já fechada, e de empréstimo junto à prefeitura do município de Marema (SC). Essa olaria existe até hoje, emprega mão de obra indígena e não indígena e utiliza matéria-prima oriunda da TI; o garimpo de pedras semipreciosas também com o apoio da prefeitura de Marema (SC); e em 1995, o arrendamento de 300 ha contíguos a uma empresa da região produtora de grãos.

Além da participação da FUNAI, algumas lideranças indígenas atuaram ativamente na desobstrução de terras que estavam sendo utilizadas por famílias com suas roças para efetivar o arrendamento, criando diferentes mecanismos de repressão que passaram a fazer parte do cotidiano dos indígenas. Dentre tantos, podemos citar a transferência compulsória das famílias que se opunham à liberação para outros locais dentro da TI ou mesmo para outras TIs, o que implicava no rompimento de redes de parentescos e solidariedade existentes na terra de origem, bem como na perda da moradia e das terras em que plantavam.

Em 1998, o contrato de arrendamento não foi renovado pela FUNAI, não só devido à sua ilegalidade mas também em função das inúmeras denúncias por parte de indígenas e de organizações como o Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Porém, a empresa retirou-se completamente da TI somente em 1999. Nos projetos estabelecidos, precisamos considerar os interesses de alguns membros pertencentes à comunidade kaingang e ligados às lideranças, que controlaram e tomaram para si e seus aliados a maioria dos dividendos oriundos desses vários empreendimentos.

Em relação à colonização pelos imigrantes, os descendentes europeus, principalmente italianos que se instalaram na região mais próxima da TI Xapecó na qualidade de pequenos produtores agrícolas ou pecuários (aves e suínos), desenvolveram um forte preconceito aos “bugres”, vistos como sujos e preguiçosos, donos de uma “grande” extensão de terra inculta. Alguns deles, com olhos empresariais, invadiram a área indígena e estabeleceram contratos com índios para o cultivo de roças, sempre com a conivência do órgão tutelar. O lucro ia para as mãos desses colonos, já que os índios não sabiam controlar negócios. A exploração das terras indígenas pelos pequenos produtores foi substituída nos anos 90 pelo comércio, na forma de mercados, onde os índios passaram a gastar seu dinheiro.

Atualmente, a TI Xapecó possui uma área de 15.623 ha, distribuída nos municípios de Ipuaçu e Entre Rios (SC), correspondendo a aproximadamente 40% da extensão total desses municípios.

Figura 02 - Localização da TI Xapecó

Vivem nesta TI indígenas das etnias Kaingang e Guarani, formando um grupo populacional de aproximadamente 7.500 indivíduos, distribuídos em 16 aldeias. As aldeias vão se formando e sendo nomeadas pelas lideranças indígenas, na medida em que a população vai se aglutinando em determinado local dentro da TI. A TI Xapecó está localizada muito próxima das sedes dos municípios da Microrregião do Alto Irani, ficando aproximadamente a 70 km de Chapecó, importante centro da região oeste do Estado de Santa Catarina. Há uma rodovia estadual (SC-480) que corta a TI, ao norte, na aldeia Pinhalzinho. A localização proporciona um contato contínuo com a comunidade não indígena, e não apenas um contato intencional, como também muitas mortes de indígenas por acidente de tráfego. Algumas pessoas (não indígenas) visitam a TI, mas muitas transitam fazendo uso das rodovias cujo entorno é utilizado como local de compra e venda de diferentes produtos.

Atualmente, as condições de sobrevivência das famílias indígenas localizadas na área são bastante difíceis, em decorrência da profunda alteração do ecossistema local. A exploração sem limites pelo órgão de assistência que por mais de 50 anos administrou essa TI ocasionou a extinção praticamente total dos recursos naturais que a área apresentava, provocando mudanças profundas na vida dos Kaingang. Assim, passaram do regime de subsistência na caça, coleta e agricultura para a exploração econômica da mão de obra indígena e de suas terras para lavouras mecanizadas.

2.2 A reafirmação do modelo cultural dos indígenas: a busca da