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1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA-METODOLÓGICA DA PESQUISA

1.1 Método materialista histórico e dialético

O presente estudo fundamenta-se no método materialista histórico e dialético, elaborado por Karl Marx e Friedrich Engels e atualizado por Antonio Gramsci. De acordo com Martins (2008a), a epistemologia gramsciana contextualiza o marxismo originário e corresponde a uma “filosofia da transformação” ou filosofia da práxis, “[...] cuja ontologia se expressa em sua visão materialista histórico-dialética e cuja epistemologia tem no materialismo histórico o seu modelo de conhecimento da história e seu desenvolvimento” (MARTINS, 2008a, p. 122).

Gramsci reafirma o “[...] materialismo histórico e dialético como um paradigma teórico-metodológico eminentemente de perspectiva revolucionária” (MARTINS, 2008a, p. 244). Paradigma, porque compreende o real e “[...] transforma-se em um norte ético-político que orienta as ações dos sujeitos sociais para transformar a sociedade, consolidando-se como uma verdadeira ‘filosofia da transformação’” (MARTINS, 2008a, p. 244).

Dos estudos que trazem elementos para discutir as propostas educacionais da Fenapaes, somente a obra de Jannuzzi e Caiado (2013) se fundamentam nesse método. No balanço de estudos sobre Apaes e instituições especializadas, identifiquei quatro pesquisas que registraram o uso do referido método, a saber Lehmkuhl (2011)23, Moraes (2011)24, Loureiro (2013)25 e Marques (2015)26. Somente os dois primeiros estudos fundamentaram-se teoricamente no pensamento gramsciano: Lehmkuhl (2011) e Moraes (2011).

Um estudo próximo ao nosso é o de Rafante (2011), que buscou compreender qual a participação de Helena Antipoff e das Sociedades Pestalozzi na constituição do campo da educação especial no Brasil, baseando-se no conceito de intelectual orgânico de Gramsci. A proposta do estudo empreendido se assemelha à desta tese, visto que também pretende compreender a mobilização da Fenapaes, como aparelho privado de hegemonia, na constituição do referido campo.

O método materialista histórico e dialético entende que os acontecimentos e as instituições histórico-sociais movem-se por contradições sociais, a contradição elementar entre as forças produtivas e relações de produção (MARX, 2008; MARX & ENGELS, 2012). A história, no pensamento de Gramsci, é compreendida como a “[...] síntese dos elementos subjetivos e objetivos, como produto das ações humanas, que são caracterizadas pela vontade e pela liberdade e limitadas às condições econômicas, sociais, políticas e culturais herdadas” (MARTINS, 2008a, p. 231). A história é modificada pela contradição, que é o “[...] elemento promotor do desenvolvimento do ser e do pensar [...] que concretamente está presente movimentando o mundo [...]. Ela é material, concreta, objetiva” (MARTINS, 2008a, p. 77). A contradição existe sob a forma da dialética que se encontra no plano de realidade “[...] sob a forma da trama de relações contraditórias, conflitantes, de leis de construção, desenvolvimento e transformação dos fatos. ” (FRIGOTTO, 1994, p. 75).

Como afirma Martins (2008a, p. 80), a dialética também

23 Lehmkuhl (2011) analisa a formação continuada de professores na área da educação especial proposta pela Fundação Catarinense de Educação Especial (FCEE), do estado de Santa Catarina, no período de 2005 a 2009, e verifica quais vertentes teóricas aparecem de maneira recorrente nessas formações.

24 Moraes (2011, p. 16) analisa “as Políticas de Educação Especial no Paraná a partir da Gestão do Governo Requião (2003-2010), mediante a análise das relações socioeconômicas e ético-políticas que se estabelecem a partir de tendências ideológicas nacionais e internacionais”. A autora relata a participação da Fenapaes e da Federação Nacional das Sociedades Pestalozzi (Fenasp) na elaboração do Plano Nacional da Educação 2001-2010. 25 Loureiro (2013) investiga a organização e o funcionamento da educação especial no município de Porto Ferreira- SP.

26 Marques (2015) discute o financiamento da educação especial no estado do Paraná. A autora analisa “a reorganização de instituições especiais paranaenses como escolas da educação básica na modalidade de educação especial e o impacto de tal processo nos documentos e nos custos institucionais” (MORAES, 2015, p. 11).

Pode, pois, ser tanto uma concepção de realidade quanto um método para o seu conhecimento. Constitui-se, portanto, como princípio constitutivo e explicativo da realidade, isto é, como elemento característico e definidor da concepção ontológica, gnosiológica e axiológica daqueles que se fundamentam nela, como é o caso do marxismo originário.

Marx (2008a) adverte que, no método materialista histórico e dialético, o ser e o pensar formam uma totalidade. A realidade é uma totalidade de ser e pensar, categorias que se articulam dialeticamente, isto é, interagem e intercomunicam-se. A realidade “[...] não é um amontoado de partes, um caos, mas uma totalidade articulada, cujas partes se inter-relacionam de tal forma que o produto de tal inter-relacionamento, o todo, é diferente da somatória simples delas” (MARTINS, 2008a, p. 69).

Kosik assevera que totalidade significa a “[...] realidade como um todo estruturado, o dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjuntos de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido” (2002, p. 44, grifo do autor). O método materialista histórico e dialético entende a realidade como totalidade concreta. Por isso,

[...] a dialética da totalidade concreta não é um método que pretenda ingenuamente conhecer todos os aspectos da realidade, sem exceções, e oferecer um quadro “total” da realidade, na infinidade dos seus aspectos e propriedades; é uma teoria da realidade e do conhecimento que dela se tem como realidade. A totalidade concreta não é um método para captar e exaurir todos os aspectos, caracteres, propriedades, relações e processos da realidade; é a teoria da realidade como totalidade concreta. Se a realidade é entendida como concreticidade, como um todo que possui sua própria estrutura (e que, portanto, não é caótica), que se desenvolve (e, portanto, não é imutável nem dado uma vez por todas), que se vai criando (e que, portanto, não é um todo perfeito e acabado no seu conjunto e não é mutável apenas em suas partes isoladas, na maneira de ordená-las), de semelhante concepção de realidade decorrem certas conclusões metodológicas que se convertem em orientação neurística e princípios epistemológico para estudo, descrição, compreensão, ilustração e avaliação de certas seções tematizadas da realidade [...] (KOSIK, 2002, p. 44, grifos meu).

Kosik mostra, assim, que a dialética não se caracteriza apenas pelo movimento. Ela leva em conta a emergência de transformações constantes, também considera a realidade como uma totalidade articulada. Como o próprio Gramsci ensina, “[...] o marxismo não é uma mera doutrina social, segundo a distinção de Pirou, já que também ‘tem a pretensão’ de explicar a ‘ciência’, ou seja, de ser mais ciência do que a ‘ciência’” (2014, p. 232). Para a dialética ser materialista e histórica “[...] tem de dar conta da totalidade e do específico, do singular e do particular. Isto implica em dizer que as categorias totalidade, contradição, mediação, alienação não são apriorísticas, mas construídas historicamente” (FRIGOTTO, 1994 p. 72).

A dialética marxista histórica, como preleciona Frigotto (1994), antes de tudo, é uma postura, ou uma visão de mundo. Como método propicia a apreensão radical da realidade.

E, como práxis, a unidade de teoria e prática que procura a transformação, novas sínteses no plano do conhecimento e da realidade histórica. Dito de outra forma, a dialética marxista caracteriza-se por ser uma postura, um método de investigação, uma práxis, um movimento de superação e de transformação. Ela é formada num tríplice movimento: “[...] de crítica, de construção do conhecimento ‘novo’, e da nova síntese no plano do conhecimento e da ação” (FRIGOTTO, 1994, p. 79).

A perspectiva dialética materialista histórica compreende, assim, que o “[...] método está vinculado a uma concepção de realidade, de mundo e da vida no seu conjunto” (FRIGOTTO, 1994, p. 76). O método incide “[...] no processo de mediação de apreender, revelar e expor a estruturação, o desenvolvimento e transformação dos fenômenos sociais” (FRIGOTTO, 1994, p. 76). Como assinala Martins (2008a, p. 137), “[...] o método marxiano é um processo que nos leva do empírico ao concreto, mediado pelos movimentos heurísticos de abstração, análise e síntese”. Kosik (2002) ensina que, para compreender a realidade, parte-se da imediata representação caótica do todo, ou seja, na forma sensível, na opinião e na experiência. O todo não é imediatamente cognoscível. Para torná-lo claro e explicá-lo, o homem precisa fazer um detour: “[...] o concreto se torna compreensível através da mediação do abstrato, o todo através da mediação da parte” (KOSIK, 2002, p. 36).

De que maneira, ocorre o método de ascensão ao abstrato, proposto por Marx e Engels?

O método da ascensão do abstrato ao concreto é o método do pensamento; em outras palavras, é um movimento que atua nos conceitos, no elemento da abstração [...]; é um movimento no pensamento e do pensamento. Para que o pensamento possa progredir do abstrato ao concreto, tem de mover-se no seu próprio elemento, isto é, no plano abstrato, que é a negação da imediatidade, da evidência e da concreticidade sensível. A ascensão do abstrato ao concreto é um movimento para o qual todo início é abstrato e cuja dialética consiste na superação desta abstratividade. O progresso da abstratividade à concreticidade é, por conseguinte, em geral, movimento da parte para o todo e do todo para a parte; do fenômeno para a essência e da essência para o fenômeno; da totalidade para a contradição e da contradição para a totalidade; do objeto para o sujeito e do sujeito para o objeto. O processo do abstrato ao concreto, como método materialista do conhecimento da realidade, é a dialética da totalidade concreta, na qual se reproduz idealmente a realidade em todos os seus planos e

dimensões. (KOSIK, 2002, p. 36-37).

Kosik (2002) demonstra, assim, que o método marxiano consegue compreender a realidade quando percorre o caminho da “caótica representação do todo” para a “rica totalidade de multiplicidade das determinações e das relações”.

O conhecimento na dialética do materialismo histórico, como prática histórico-social, é um “[...] processo ininterrupto e sempre aproximativo da verdade, ou seja, a verdade como uma

construção de valor relativo [...]” (MARTINS, 2008a, p. 64). Também é um processo que admite a “[...] ação transformadora como elemento característico de sua ética e de sua política” (MARTINS, 2008a, p. 64). A dialética como método do conhecimento do marxismo originário é relevante “[...] se se pretende conhecer o movimento constante de transformação pelo qual passa a realidade como um todo, torna-se indispensável a análise de suas partes, pois é também a partir das mudanças que se lhes operam que o todo se altera, seja quantitativa, seja qualitativamente” (MARTINS, 2008a, p. 69).

No que tange à área educação especial, Marx e Gramsci nos possibilitam compreender que os conceitos, as práticas pedagógicas e as políticas educacionais não são neutras. Elas fazem parte de certas visões de mundo e de concepções de ser e de homem. Por isso, é preciso evidenciar os processos que interferem na formação educacional da pessoa com deficiência. Assim, a perspectiva dialética materialista histórica pode ser instrumento na transformação das condições políticas e educacionais que aparecem de modo imbricado no modo de ser e pensar do público-alvo da educação especial.

Fundamentando-me em Gramsci (2007), entendo que a condição social das pessoas com deficiência não é algo dado por natureza ou manifestação orgânica27 da deficiência. Antes de tudo, essa condição está circunscrita nas relações sociais e na formação do sujeito.