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A garantia do mínimo existencial trata-se da obrigação que o Estado possui em criar condições mínimas para a garantia de uma vida digna para seus cidadãos. É pautada nos princípios da dignidade da pessoa humana, no direito à vida, à

integridade física, e no direito geral de liberdade. Não é possível especificar o que é o mínimo existencial, pois essa quantificação se altera a depender do lugar, tempo, questões socioeconômicas e necessidades da população (SARLET; FIGUEREDO, 2008, apud WANG, 2008, p. 311).

Essa variação se dá porque o mínimo existencial não trata da simples garantia da sobrevivência física, mas está intrinsecamente atrelado à garantia de uma existência digna, com fruição de todos os direitos fundamentais, inclusive com inclusão de um mínimo existencial sociocultural (SARLET; FIGUEREDO, 2008, apud WANG, 2008, p. 311).

Considerando que não é possível quantificar única e definitivamente um padrão existencial mínimo, surge a questão de como se pode determiná-lo dentro de cada sociedade. Entende-se que a função de decidir sobre a forma da prestação, o montante e as condições para a fruição de um direito cabem ao legislador, restando aos Tribunais a tarefa de decidir sobre um padrão existencial mínimo apenas em caso de omissão ou desvio de finalidade por parte dos órgãos legisladores. Contudo, há a ressalva de que o legislador deverá respeitar um padrão basilar para assegurar as condições materiais indispensáveis para uma existência digna (SARLET; FIGUEREDO, 2008, apud WANG, 2008, p. 311).

De outro lado, a implementação de uma política pública depende, primeiramente, de disponibilidade financeira, conhecida como reserva do possível. A falta de recursos acaba sendo a justificativa mais comum da administração para a omissão da entrega dos serviços previstos na Constituição Federal como de sua obrigação, nesse caso, especificamente, os serviços de saúde (GRINOVER; WATANABE, 2013, p. 132). Dessa forma, é possível dizer que os direitos sociais possuem uma limitação fática à sua efetivação, que se trata da existência de recursos para que o Estado cumpra com suas obrigações (WANG, 2008, p. 313).

O princípio da reserva do possível não deve impedir o Poder Judiciário de zelar pela efetivação dos direitos sociais dos cidadãos ou ser usado como escusa do Judiciário para não intervir nas matérias de direito social, mas sim, confere-lhe a obrigação de fazê-lo com responsabilidade e consciência da escassez de recursos. Outrossim, a reserva do possível deve ser relativizada quando se relaciona com o mínimo existencial (WANG, 2008, p. 313).

Tratando-se de demanda judicial em que se pleiteia o fornecimento de medicamentos ou outros tratamentos, conforme será visto na discussão acerca do

Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas 01, deverá ser demonstrado, pelo autor da ação, que o fornecimento de tal insumo é necessário para garantir-lhe o mínimo existencial. Essa demonstração se dá pela comprovação da hipossuficiência do autor e de seu núcleo familiar, da inexistência de política pública que garanta o tratamento para a moléstia ou, se existente, da demonstração de sua ineficácia para o caso concreto, e da necessidade do fármaco ou procedimento atestado por meio de laudo médico.

Há, ainda, um terceiro elemento para a análise da situação, sob a ótica da promessa constitucional do máximo desejável. É possível afirmar que, constitucionalmente, o Estado se obrigou à criação de políticas públicas constantes e graduais, considerando a evolução da tecnologia e medicina, e o aumento dos recursos financeiros, com o objetivo de alcançar o máximo desejável (DANIELLI, 2016, p. 88; TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA, 2016).

Assim, é necessário entender, em cada caso concreto, se o tratamento, medicamentoso ou não, pleiteado por meio de demanda judicial está relacionado ao mínimo existencial ou o máximo desejável, pois, nesse segundo, diferentemente do primeiro, deverá o caso ser submetido à reserva do possível.

Então, cabe ao magistrado perceber se o pleito judicial se trata de uma pretensão voltada para a garantia do mínimo existencial, ligado à dignidade da pessoa humana e direito que o Estado se comprometeu a efetivar desde já, ou se o autor busca alcançar o máximo desejável, que se relaciona com o direito subjetivo coletivo de criação de uma política pública de saúde para suprir essa necessidade (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA, 2016).

Complementando a ideia de que a busca pelo máximo desejável se relaciona com a criação de política pública de saúde, acredita-se que, para melhorar a atuação do Judiciário frente à judicialização, é preciso que não se atenda apenas a postulação individual, mas que se utilize dela para a criação de uma política pública de saúde. A transformação de uma disputa individual em coletiva acarretaria a diminuição de privilégios dentro do acesso ao direito e à saúde, tornando-os mais democráticos e universais (BARROSO, 2009).

No próximo tópico, serão apresentados dados acerca da judicialização dos procedimentos de saúde no Brasil e no Estado de Santa Catarina.

3.2 DADOS ACERCA DA JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE

Mastrodi e Fulfule (2017, p. 594) afirmam que o uso de recursos finitos para promover um tratamento individual determinado por ordem judicial compromete o planejamento de políticas que visam à promoção coletiva do direito à saúde. Franco (2010) confirma esse ponto de vista trazendo dados acerca da diferença dos gastos do poder público com medicamentos fornecidos por meio de decisões judiciais e políticas públicas de saúde no ano de 2006:

No Estado de São Paulo, Brasil, os números dessas demandas vêm aumentando consideravelmente. No ano 2006, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP) gastou, com o cumprimento das decisões judiciais da comarca da capital, 65 milhões de Reais, para atender cerca de 3.600 pessoas. Em comparação, no mesmo ano, ela investiu 838 milhões de Reais no Programa de Medicamentos de Dispensação Excepcional (alto custo), atendendo 380 mil pessoas. Foram gastos aproximadamente 18 mil Reais por paciente com ações judiciais naquele ano, enquanto o Programa de Medicamentos de Dispensação Excepcional consumiu 2,2 mil Reais por paciente. (FRANCO, 2010, p. 10).

O Ministério da Saúde afirma que, em sete anos, houve um crescimento de aproximadamente 13 vezes nos seus gastos com demandas judiciais, atingindo R$ 1,6 bilhão em 2016. Em comparação com a totalidade do orçamento público para a saúde, esse valor pode ser considerado pequeno, contudo representa parte substancial do valor disponível para alocação discricionária da autoridade pública, atingindo níveis suficientes para impactar a política de compra de medicamentos, um dos principais objetos das demandas judiciais (CNJ; INSPER, 2019, p. 13).

Ainda acerca da discussão acerca da realocação de recursos da saúde, expõe- se que, ao julgar o Incidente de Demandas Repetitivas 01, que será abordado neste trabalho posteriormente, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em sua justificativa para o julgamento, apresenta dados juntados aos autos pelo Ofício n. 461/2016, resultante de consultoria jurídica da Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina ao IRDR. O referido documento demonstra que referente ao ano de 2014, foram gastos “[...] pouco mais do que cento e cinquenta e seis milhões de reais para o cumprimento das ordens judiciais em favor de pouco mais do que vinte e seis mil pacientes [...]”. Conforme o documento, esse valor seria o suficiente para manter dois Hospitais sob a administração da Secretaria Estadual de Saúde (Celso Ramos e Nereu Ramos), por quase um ano, viabilizando o atendimento de quase cento e

noventa e cinco mil pessoas, ou asseguraria a manutenção de todos os treze hospitais administrados diretamente pela Secretaria da Saúde por dois meses, atendendo mais de cento e setenta mil pessoas. Continuando, “[...] no ano de 2015, foram gastos mais de cento e cinquenta milhões de reais para atender pouco mais de trinta mil pacientes em razão de medidas judiciais [...]”, ou seja, o custo médio por paciente foi de cinco mil reais (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA, 2016).

Conforme visto nos exemplos acima, independentemente da situação exposta, da utilização de recursos orçamentários e dos debates entre autores acerca da invasão de poderes, o cidadão continua buscando formas de garantir o seu acesso aos serviços de saúde pela via judicial, e isso se prova com o aumento progressivo das demandas judiciais com tal pretensão.

Considerando o ano de distribuição dos processos, o que se verifica na evolução ano a ano é que há um crescimento acentuado de aproximadamente 130% no número de demandas de primeira instância relativas ao direito à saúde de 2008 para 2017, [...] Tal crescimento é bastante superior aos 50% de crescimento do número total de processos de primeira instância. (CNJ; INSPER, 2019, p. 46).

Ao analisar os processos distribuídos em segunda instância sobre demandas relativas ao direito à saúde no Brasil, observa-se que, no ano de 2008, foram informados apenas 2.969 processos, enquanto no ano seguinte o número passou de vinte mil, mantendo um aumento gradativo ao longo dos anos, chegando a 40.658 em 2017 (CNJ; INSPER, 2019, p. 47).

Analisando dados apenas do Estado de Santa Catarina, tem-se que, em 2008, havia, em primeira instância, 182 processos relativos à saúde em tramitação e já concluídos ou arquivados. Em comparação, no ano de 2017, esse número encontra- se em 12.303, somando, entre os anos de 2008 e 2017, 36.420 processos (CNJ; INSPER, 2019, p. 59). Já em segunda instância, em 2008, havia 5 processos relativos à saúde em tramitação e já concluídos ou arquivados, enquanto em 2017 havia 3.067, somando entre esses anos, 14.327 processos (CNJ; INSPER, 2019, p. 60).

Segundo a pesquisa realizada pelo CNJ e INSPER (2019, p. 50), em Santa Catarina, 28% (vinte e oito por cento) das demandas de saúde presentes no TJSC referem-se ao pleito pelo fornecimento de medicamentos. Outros 28% (vinte e oito por cento) trata-se de demandas cujo assunto não foi informado (CNJ; INSPER, 2019, p. 50).

Segundo os dados, 26% (vinte e seis por cento) das demandas de saúde no TJSC referem-se a litígios acerca de seguros; 8% (oito por cento) a tratamento médico-hospitalar e/ou fornecimento de medicamentos 5% (cinco por cento) a litígios decorrentes de planos de saúde, , isso entre os principais tópicos; Além disso, 3% (três por cento) das demandas são compostas por pleitos por tratamento médico- hospitalar. fonte

Devido ao crescente número de demandas pleiteando o fornecimento de medicamentos ou tratamentos, conforme demonstrado, passou a se verificar a existência de decisões judiciais com posicionamentos diversos, sendo necessária a uniformização jurisprudencial e fixação de requisitos para o deferimento dessas demandas.