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4. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

5.2. PRINCÍPIOS ESPECIAIS DOS DIREITOS PRESTACIONAIS

5.2.2. Mínimo existencial ou social

O direito fundamental de prestação é corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. De fato, tal princípio exige que direitos sociais, econômicos e culturais sejam concretizados a fim de garantir uma existência digna aos seus cidadãos. Gilmar Mendes destaca que os direitos fundamentais de prestação possuem a peculiaridade de serem voltados para uma conformação do futuro que a manutenção do status quo (como ocorre nos direitos individuais).280

Baseada na teoria da proibição da proteção insuficiente, Suzana Tavares da 280 Gilmar Ferreira Mendes, “Os direitos individuais e suas limitações: breves reflexões”, in: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hemenêutica constitucional e direitos fundamentais. p. 204

Silva defende que os direitos fundamentais básicos fazem parte do mínimo existencial, a fim de garantir a dignidade humana – chega a utilizar a expressão “mochila da dignidade humana”, que deve ser garantida a cada indivíduo pelos governantes. 281

Todavia, na maioria das vezes, o Estado não é capaz de prover a implementação de todos os direitos prestacionais, seja pelos recursos finitos ou por erro na política pública escolhida. A partir de então, surge a possibilidade do Poder Judiciário assumir um caráter proativo e determinar a efetivação de tais direitos.

Conceder plena legitimidade ao Poder Judiciário para agir na fixação de políticas públicas interferiria no princípio estrutural da separação de poderes, faz-se, então, necessário a existência de um ponto de equilíbrio entre a indispensabilidade do direito fundamental em questão e a harmonia das funções típicas de cada Poder. Ana Paula Barcelos entende que esse meio termo é o “mínimo existencial”.

“(...) a coexistência harmônica da eficácia positiva da dignidade de um lado e, de outro, da separação de poderes e do princípio majoritário, depende de atribuir-se eficácia jurídica positiva apenas ao núcleo da dignidade, ao chamado mínimo existencial, reconhecendo-se legitimidade ao Judiciário para determinar as prestações necessárias à sua satisfação.”282

Segundo Barcelos, tal raciocínio concilia a fundamentalidade jurídica e social da dignidade da pessoa humana com a indisputabilidade do seu núcleo duro independente da opção política realizada pelo governante, uma vez que é possível identificar um patamar mínimo de obediência, sob pena de violação dessa dignidade.283

Sendo assim, o Poder Judiciário poderá atuar nesse espaço normativo determinando ações e impondo sanções, haja vista o direito subjetivo extraído do mínimo existencial. Barcelos elenca como inserido no núcleo mínimo: a educação fundamental, saúde básica, assistência aos desamparados e acesso à Justiça.284

Já Ricardo Lobo Torres, entende não haver um conteúdo prefixado, podendo abranger qualquer direito, contanto que esteja relacionado à ideia de igualdade 281 SILVA, Suzana Tavares da. Revisitando a garantia da tutela jurisdicional efectiva dos administrados. Revista de Direito Público e Regulação. Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 5, p. 129, mar-2010.

282 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 233.

283 Ibidem. 284 Ibidem. p. 258.

social, haja vista que o problema do mínimo existencial se confundiria com a própria pobreza.285

Ainda no entendimento de Ricardo Lobo Torres, o mínimo existencial consiste em “(...) um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas.”286

Já Ingo Wolfgang Sarlet inclui no mínimo existencial o conceito de vida saudável, ou, conforme termo utilizado por ele, a designação de “vida boa”. Observe suas palavras:

(...) não como um conjunto de prestações suficientes apenas para assegurar a existência (a garantia da vida) humana (aqui seria o caso de um mínimo apenas vital) mas, mais do que isso, uma vida com dignidade, no sentido de uma vida saudável (como deflui do conceito de dignidade adotado nesta obra) ou mesmo daquilo que tem sido designado de uma vida boa. 287

Apesar da importância jurídica, doutrinária e jurisprudencial do mínimo existencial, ele não está descrito na constituição de forma clara e expressa, ele é extraído através de um esforço hermenêutico.288 Pode-se extraí-lo do art. 3o, III da Constituição Federal cujo conteúdo estabelece ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil: “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Da mesma forma, os princípios da igualdade, liberdade e da dignidade humana são parâmetros possíveis de sustentáculo à defesa da formação do mínimo existencial.

Clémerson Clève salienta a perspectiva social dos direitos fundamentais para defender a sua realização progressiva, o qual apontaria não para a ideia de mínimo de bem-estar social, mas de máximo. Porém, trata-se de um máximo possível, à luz das riquezas do país em questão e do comprometimento do governo aliado à sociedade em implementá-lo.289

285 TORRES, Ricardo Lobo. A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1999. p. 263. 286 Ibidem. p. 262.

287 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3ª ed., rev., atual. e amp., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 93.

288 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. Vol. III: Os direitos humanos e a tributação – imunidades e isonomias. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 141.

289 CLÈVE, Clémerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Revista de Direito

Retornando aos estudos de Ricardo Lobo sobre o tema, conclui-se que o caráter jusfundamental dos direitos abarcados pelo mínimo existencial está protegido em face da reserva do possível, ao contrário do que chama de “direito social máximo”, cuja batalha se dará na via do processo democrático e de políticas públicas. Conforme seus escritos:

“(...) o exame do mínimo existencial, que se inclui no rol dos direitos fundamentais, protege contra as constrições do Estado e de terceiros, carece de prestações positivas e é plenamente garantido pela jurisdição, independentemente de reserva orçamentária, pois goza também de garantias institucionais. Insista-se em que o mínimo existencial pode exibir o

status negativus, que impede generalizadamente a incidência de tributos

sobre os direitos sociais mínimos, e o status positivis libertatis, que postula a entrega de prestações estatais positivas a quem se encontra abaixo de certo nível de pobreza.”290

A teoria da reserva do possível pode impedir a concretização de alguns direitos fundamentais, contudo, não é permitido à Administração Pública utilizar-se desse pretexto a fim de fugir das suas obrigações constitucionais, principalmente quando tal negativa prestacional for capaz de quase aniquilar os referidos direitos. Nas palavras do Ministro Celso de Mello em decisão com efeito erga omnes:

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.

ADPF - Medida Liminar nº 45/DF, relator Ministro Celso de Mello – Informativo 345

Com esse entendimento recente manifestado pela Suprema Corte, torna-se claro que o princípio da reserva do possível não pode servir de escusa para fraudar a efetivação dos direitos sociais. Destarte, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, valor máximo do nosso ordenamento, o mínimo existencial é intangível, verdadeiro limitador da ação e omissão do Poder Público.

Diante do exposto, depreende-se que eventuais faltas de recursos financeiros – como a alegação esmiuçada no capítulo anterior da reserva do possível – não

290 TORRES, Ricardo Lobo. A Jusfundamentalidade dos Direitos Sociais. In: BIENEMBOJN, Gustavo (org.). Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, vol. XII. Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. p. 108.

podem ser opostas ao Estado para a implementação do mínimo existencial.