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Teoria do state action e a negação da eficácia dos direitos fundamentais

4. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

4.3. PRINCIPAIS TEORIAS DESENVOLVIDAS SOBRE O TEMA

4.3.1. Teoria do state action e a negação da eficácia dos direitos fundamentais

privado, através dos preceitos desse ramo do direito. A contenda mantém-se, material e processualmente, uma contenda de direito civil. É o direito civil que é aplicado e interpretado, ainda que essa interpretação deva obedecer ao direito público, à Constituição.” (grifou-se)194

O caso Lüth teve grande repercussão culminou com a aplicação da Teoria da Eficácia Horizontal Mediata, conforme será explanado no subcapítulo seguinte.

4.3. PRINCIPAIS TEORIAS DESENVOLVIDAS SOBRE O TEMA

4.3.1. TEORIA DO STATE ACTION E A NEGAÇÃO DA EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Mesmo na Alemanha, berço da Teoria da Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais, houve resistência em sua adoção. Alguns autores negavam a possibilidade da oposição dos direitos fundamentais aos particulares, com fundamento na tradição liberal clássica, argumentavam que a vinculação dos direitos de defesa dava-se exclusivamente em face do Estado.195

Para sustentar essa negação, alegavam, ainda, que ao tratar dos direitos fundamentais, o texto constitucional referia-se apenas aos poderes públicos, bem como, devia-se respeito à vontade do constituinte que sequer debateu o assunto, uma vez que a proteção do cidadão focava no Estado. Todos esses argumentos se juntam à crítica da ofensa à autonomia individual e da destruição do Direito Privado (este acabaria absorvido pelo direito constitucional).196

193 Ibidem.

194 MAC CRORIE, Benedita Ferreira da Silva. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Coimbra: Almedina, 2005. p. 27.

195 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas.

Com as constantes decisões do Tribunal Constitucional Federal admitindo a aplicação dos direitos fundamentais também nas relações privadas, a corrente alemã resistente a esta ideia perdeu força e passou a quase não existir mais.197

Em orientação antagônica à alemã, o direito norte-americano não legitimou a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. De fato, a doutrina estadunidense a rechaçou quase por unanimidade, preponderando, assim, a tese da não vinculação dos particulares ao Bill of Rights198. Sarmento trata da não aplicação dos direitos

fundamentais aos particulares como um verdadeiro axioma existente nos Estados Unidos.199

Laurence Tribe defende que a autonomia individual é uma liberdade básica dentro de qualquer concepção de liberdade e seria perdida com a necessidade de transpor aquilo que exige-se do Poder Público para o particular. Para Tribe, a liberdade de fazer escolhas estaria cerceada caso a própria constituição já impusesse a conduta a ser realizada pelo particular.200

Aliado ao argumento da ofensa à autonomia privada e ao fato de não estar mencionado expressamente na constituição a existência de uma conexão entre os direitos fundamentais e o ente privado, a visão norte americana optou por uma interpretação restrita àquela visão clássica da posição de um sujeito de direito (não de deveres) – o espaço reservado à competência dos Estados também contribuiu para a resistência à aplicação da eficácia horizontal.201

Nas exatas palavras de Chereminksy202: “It is firmly established that the

Constitution applies only to government conduct, usually refered as ‘state action’. The behavior of private citizens and corporations is not controlled by the Constitution.”203 Apesar da convicção nos dizeres, há mais de 30 anos, Chereminsky

Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2000.

197 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas.

198 Daniel Sarmento considera que apenas a 13a emenda (proíbe a escravidão) vincula os particulares.

199 SARMENTO, Daniel. op. cit.

200 TRIBE, Laurence H. Constitucional Choices. Cambridge: Havard University Press, 1985. 201 SARMENTO, Daniel. op. cit.

202 CHEREMINKSY, Erwin. Rethinking state action. Northwestern University Law Review. Vol. 80, nº 03, Fall 1985, Chicago, p. 503-557. Disponível em: https://scholarship.law.duke.edu/cgi/ viewcontent.cgi?article=1709&context=faculty_scholarship. Acesso em: 22.09.2018. p. 507.

203 “Está firmemente estabelecido que a Constituição se aplica apenas à conduta do governo, geralmente referida como 'ação estatal'. O comportamento de cidadãos particulares e corporações não é controlado pela Constituição.” - tradução livre.

propõe um novo olhar sobre o state action, acreditando que quando os juízes forem convencidos que alguns particulares são capazes de minar a liberdade de outros particulares, talvez eles possam revisitar essa doutrina e aboli-la.204

As decisões da Suprema Corte Americana seguiram o entendimento que os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição vinculam apenas o poder público – é o surgimento da doutrina do state action. Em que pese reconhecer a competência dos Estados para tratar da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, atualmente, a Corte Constitucional Americana admite que a União possa legislar sobre direitos humanos mesmo sem o envolvimento de qualquer ente estatal.205

De fato, nos Estados Unidos, a ingerência do Poder Legislativo nesse âmbito é mais aceita que a interferência do Poder Judiciário, uma vez que aquele, pelo menos, tem integrantes (senadores) que representam os Estados Federados de origem.206

Sem repelir a doutrina do state action, a Suprema Corte Americana estabelece algumas exceções em sua aplicação. Com efeito, surgiu a intitulada

Public Function Theory207, que possibilitava a aplicação dos direitos fundamentais aos particulares desenvolvedores de atividades de natureza pública relacionadas às funções originalmente estatais.

Ao incrementar a teoria do state action, a Suprema Corte Americana busca impedir que o poder público furte-se do dever constitucional de respeitar as liberdades individuais dos seus cidadãos escondendo-se através da delegação de suas funções típicas a particulares. Desta forma, quando um ente privado assume função essencialmente pública, ele está se sujeitando aos ditames constitucionais aplicáveis ao Estado.208

Ademais, ainda tratando do entendimento da Corte Constitucional dos Estados Unidos, determinadas atividades, mesmo que não haja delegação por parte do poder estatal, possuem uma natureza semelhante e inerente à função pública. É a situação que foi enfrentada no case Marsh v. Alabama – em que uma empresa 204 CHEREMINKSY, Erwin. Rethinking state action. Northwestern University Law Review. Vol. 80, nº 03, Fall 1985, Chicago, p. 503-557. p. 557.

205 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 206 Ibidem.

207 Teoria da Função Pública (tradução livre). 208 SARMENTO, Daniel. op cit.

privada possuía um terreno com ruas, residências, comércios (quase uma privated

owned town209), nessas circunstâncias, a empresa está equiparada ao poder público e, por isso, deveria sujeitar-se à 1a Emenda da Constituição norte-americana (aborda a liberdade religiosa).210

Em resumo, com base na doutrina do state action, quando há uma demanda judicial entre particulares cujo fundamento seja a preservação de um direito individual constitucional ou uma pretensão nele baseada, o juiz, verificando não se tratar de processo contra o Estado, deve observar se a conduta questionada pode ser imputada, por alguma razão, ao Estado, isto é, se ela pode ser subsumida ao conceito de ato estatal.211

Virgílio Afonso da Silva apresenta um prisma inverso sobre a doutrina em questão. Entende que, em vez de ser vista como uma negativa da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ela determina quando isto pode ocorrer. É o que se depreende dos seus ensinamentos, vejamos:

“doutrina da state action procura determinar quando um ato privado que viole direitos fundamentais, especialmente o direito de igualdade, pode ser objeto de controle judicial. (...) Ao invés de negar a aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas, a doutrina da state action tem como objetivo justamente definir em que situações uma conduta privada está vinculada às disposições de direitos fundamentais.” 212

Daniel Sarmento alerta para a falta de critério exato quanto à definição abarcada pela public function theory, fato que gera decisões oscilantes. No entanto, observa-se que a Suprema Corte norte-americana possui um olhar restritivo sobre o tema o que acarreta a prevalência do direito à liberdade do particular violador em detrimento do direito à liberdade do particular violado.213