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A for maçã o policial no B r asil e a per sistente militar izaçã o ideoló gica da segur ança

Um aspecto importante para tentar compatibilizar a atividade policial com o E stado D emocrático de D ireito (e combater a violê ncia policial) é o treinamento dos policiais. C om base nessa hipótese, esse tópico voltar-se-á a analisar como tem se dado a formaçã o dos policiais no B rasil e se tem havido um esforço no sentido de alcançar essa compatibilizaçã o.

Primeiramente, cumpre observar que a formaçã o dos membros das Polícias C ivis e Militares é de responsabilidade dos governos das Unidades da F ederaçã o (UF s) ( geralmente é atribuiçã o das S ecretarias de S egurança Pública), já que se tratam de órgã os de segurança pública estaduais, conforme previsã o constitucional.

C om a redemocratizaçã o, o governo federal, através da S ecretaria Nacional de S egurança Pública (S E NA S P) , ligada ao Ministério da J ustiça, iniciou a realizaçã o de esforços na área da formaçã o policial a fim de transformar a polícia, que, outrora, deu sustentaçã o a um regime ditatorial e protagonizou inúmeras violações aos direitos humanos (nã o só na ditadura militar, mas em toda a história da instituiçã o policial brasileira) sob a justificativa de combate a um inimigo interno (doutrina da segurança nacional), em uma “polícia cidadã ”.

E m 2000, foi criado o primeiro Plano Nacional de S egurança Pública ( I PNSP) , a partir do qual o governo federal iniciou um processo de reforma das polícias estaduais, preocupando-se com a formaçã o, a qualificaçã o e a valorizaçã o profissional dos agentes de segurança pública (C R UZ , 2010). No mesmo ano da criaçã o do I PNS P, foi desenvolvido um documento para orientar a formaçã o desses agentes, intitulado B ases C urriculares para a F ormaçã o dos Profissionais de S egurança do C idadã o (C R UZ ; L OPE S ; B R A S IL , 2012).

A s B ases C urriculares passaram a servir como um mecanismo pedagógico para

nortear as instituições responsáveis pela formaçã o do quadro de operadores da

segurança pública nos E stados, assim como “uma ferramenta de trabalho que auxilie

a homogeneizaçã o dos cursos de formaçã o e o planejamento curricular” ( C R U Z ;

L OPE S; B R A SIL , 2012, p. 06) .

T ais bases, além de descrever um perfil desejado para os profissionais da área de segurança pública, eram compostas por um currículo denominado de B ase C omum, que relacionava disciplinas que deveriam compor um núcleo comum a todas as formações policiais no B rasil. T ais disciplinas versavam sobre as seguintes áreas: cultura, sociedade, ética, cidadania, direitos humanos e controle de drogas (C R UZ , 2010).

E m 2003, foi elaborado um novo Plano Nacional de S egurança Pública, denominado Projeto S egurança Pública para o B rasil, por meio do qual foi implantado o S istema Único de S egurança Pública, que, dentre outras ações, trabalhou para desenvolver um S istema Integrado de F ormaçã o e V alorizaçã o Profissional,

o qual se traduziu, ao longo de quatro anos ( 2003-2006) na elaboraçã o da Matriz

C urricular Nacional para E nsino Policial, a qual ultrapassava conceito utilizado

pelas B ases C urriculares; na elaboraçã o e execuçã o da R ede Nacional de

E specializaçã o em Segurança Pública e da R ede de E ducaçã o à D istância para

Segurança Pública; na difusã o dos D ireitos Humanos; na proposiçã o de programas

de valorizaçã o profissional e de integraçã o das A cademias com C entros de

F ormaçã o; e na realizaçã o de ações formativas (C R U Z , 2010, p. 80) .

A demais, as parcerias das academias de polícia com as Instituições de E nsino S uperior ( IE S ), principalmente com as Universidades

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, foram um diferencial desse novo projeto. A ssim, foi essencial a consolidaçã o de uma Matriz C urricular Nacional, que passou a ser o novo referencial pedagógico para a formaçã o dos policiais, aprofundando o processo de unificaçã o iniciado com as B ases C urriculares (C R UZ ; L OPE S ; B R A S IL , 2012).

Nessa Matriz C urricular, foram acrescentadas e valorizadas disciplinas voltadas para o ensino dos direitos humanos, da ética e da cidadania. E m 2005, foram acrescentadas ao texto original as D iretrizes Pedagógicas e a Malha C urricular. A s primeiras sã o “um conjunto de orientações para o planejamento, o acompanhamento e a avaliaçã o das ações formativas,” e a segunda “apresenta um núcleo comum composto por disciplinas que congregam conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais, cujo objetivo é garantir a unidade de pensamento e açã o dos profissionais da área de segurança pública” ( B R A S IL , 2014a, p.11).

E m 2008, a Matriz foi reformulada, ocasiã o na qual passou a ser denominada Matriz C urricular Nacional para A ções F ormativas dos Profissionais de Á rea de S egurança

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T odavia, a “participaçã o das Universidades na formaçã o e qualificaçã o dos profissionais de segurança pública,

sobretudo no B rasil, tem se limitado, apenas, a instruçã o de certas disciplinas durante os cursos de formaçã o ou

no ensino pós-ingresso, mas nunca na composiçã o de um curso de graduaçã o ( nível superior) para a formaçã o

Pública, dando-se maior enfoque à s disciplinas voltadas para resoluçã o pacífica de conflitos, valorizaçã o profissional, saúde do trabalhador, ética e direitos humanos (C R UZ ; L OPE S ; B R A S IL , 2012). No ano de 2014, foi publicada uma nova versã o que atualizou as D iretrizes Pedagógicas, renovou a Malha C urricular e sugeriu uma carga horária para as disciplinas (OL IV E IR A , 2016). A lém disso, a referida Matriz estabelece como seu objetivo geral o estímulo à compreensã o da segurança pública como uma prática da cidadania e à “adoçã o de atitudes de justiça, cooperaçã o, respeito à L ei, promoçã o humana e repúdio a qualquer forma de intolerância” ( B R A S IL , 2014a, p. 40). No mesmo sentido, outros documentos de âmbito nacional se preocuparam em construir uma cultura em direitos humanos na formaçã o policial, como o Plano Nacional de E ducaçã o em D ireitos Humanos (PNE D H) e o Programa Nacional de D ireitos Humanos III (PND H III) (OL IV E IR A , 2016).

A demais, os esforços do governo federal foram além do desenvolvimento de documentos para nortear a formaçã o inicial: também foi dada ê nfase ao ensino pós-ingresso, fortalecendo-se a educaçã o permanente e/ou continuada

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, por meio de treinamentos, capacitações e cursos, como por exemplo, com a criaçã o da R ede Nacional de A ltos E studos em S egurança Pública e da R ede de E ducaçã o à D istância para S egurança Pública (C R UZ ; L OPE S ; B R A S IL , 2012).

C ontudo, mesmo com tantas mudanças no treinamento dos policiais, nã o se percebe uma atuaçã o policial mais condizente com o E stado D emocrático de D ireito, visto que a violê ncia praticada por policiais continua sendo uma realidade,

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consoante o exposto no tópico anterior.

E ssa ausê ncia de mudanças nas práticas policiais relaciona-se com a ausê ncia de modificações reais no ensino (e na cultura) policial. Na prática, a implementaçã o de disciplinas de caráter humanizador na formaçã o dos policiais estaduais nã o coincide com um real empenho na transformaçã o do ensino: tais disciplinas nã o sã o valorizadas pelas academias, nem pelos professores/instrutores e, consequentemente, nem pelos alunos, sendo instituídas apenas “para constar” que a Matriz C urricular Nacional está sendo seguida (F R A NÇ A 2012).

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O R elatório decorrente da Pesquisa Perfil das Instituições de Segurança Pública elaborado pela SE NA SP em

2013, informa, porém, que apenas em 11 UF s as Polícias Militares possuíam, em 2012, política de capacitaçã o

continuada obrigatória para todos os seus membros, e somente em 5 UF s as Polícias C ivis possuíam tais políticas

obrigatórias a todos os seus agentes (B R A S IL , 2014b).

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Mena ( 2015, p. 26) cita a opiniã o pessimista de uma major da Polícia Militar acerca do treinamento dos

policiais: “Quando começou a pesquisar abordagem policial, a major T ânia Pinc identificou problemas no

treinamento. Havia protocolos e métodos, mas nã o eram seguidos. Propôs, entã o, um supertreinamento para uma

equipe e comparou seu trabalho com o de outra. ‘ D escobri que a premissa de que treinamento resolve está

A demais, segundo a pesquisa sobre o perfil das instituições de segurança pública elaborada pela S E NA S P, analisando todas as Polícias Militares estaduais, o valor gasto com ações pertinentes à capacitaçã o profissional, em 2012, foi de apenas 0,98% dos orçamentos totais de todas as referidas polícias somados. Quando se fala das Polícias C ivis, esse valor foi um pouco maior, de 2,3% (B R A S IL , 2014b).

Oliveira (2016) vai além ao afirmar que nas escolas de formaçã o policial existem dois currículos formativ os diferentes: um currículo formal, através do qual sã o ministradas disciplinas de cunho humanista, e um currículo informal que a autora chama de “currículo de corredor”, que valoriza a hierarquia e a disciplina, bem como enxerga os direitos humanos como leniê ncia com os criminosos. T al currículo informal representado pelo modelo militar de agir (militarismo), conforme Oliveira (2016), parece se sobrepor, na prática, ao formal. Portanto, o discurso promovido pela instituiçã o policial (de que há uma formaçã o que valoriza o respeito aos direitos humanos, logo compatível com a nova ordem constitucional, com o E stado D emocrático de D ireito) difere das reais transformações efetivadas (F R A NÇ A , 2012).

Nesse momento, é necessário informar que esse tópico tratará especialmente do ensino policial militar tendo em vista a realizaçã o do policiamento ostensivo por essa instituiçã o (os policiais militares, especialmente os praças

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, sã o, portanto, os agentes que estã o diretamente em contato com a sociedade). No entanto, o militarismo está presente nã o só nas polícias militares, mas nos órgã os de segurança pública como um todo (apesar de mais intenso naquelas). L ogo, as questões abordadas decorrentes do pensamento militar sã o estendidas também à s demais polícias.

E m discussã o acerca da formaçã o dos policiais do ronda do quarteirã o, uma experiê ncia de polícia comunitária

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desenvolvida no E stado do C eará desde 2007, afirmam C ruz, L opes e B rasil (2012, p. 09) que, na prática, as disciplinas de conteúdos militares sã o mais valorizadas:

A ssim, mesmo com todas as reduções, [ ...] é possível observar que as disciplinas

embasadas em conteúdos militares, responsáveis pela produçã o de “corpos dóceis e

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Nesse ponto, é importante falar que dentro das Polícias Militares existem dois grupos distintos de policiais

( cuja forma de ingresso ocorre através de dois concursos diferentes) , que, por sua vez, sã o dividos em diversas

patentes: os oficiais, que desempenham principalmente as funções de comando e de gerê ncia da atividade

policial, sendo responsáveis pelas tomadas de decisões estratégicas, e os praças, que sã o aqueles que realizam o

policiamento ostensivo, patrulhando as ruas, e, portanto, obedecem os comandos dos oficiais. Portanto, dentro da

hierarquia da Polícia Militar, os oficiais sã o os superiores a quem os praças estã o subordinados ( OL IV E IR A ,

2016) . D iante disso, no presente capítulo, quando se falar de escolas/ academias de formaçã o policial estar-se-á

referindo ao treinamento das Polícias Militares e C ivis, mas principalmente das militares. No que se refere a tais

polícias, estar-se-á referindo tanto aos cursos de formaçã o de oficiais, quanto de praças.

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A polícia comunitária é uma modalidade de policiamento que se baseia mais em ações preventivas (polícia

proativa) do que ostensivas (polícia reativa) , e tem como diferencial a proposta de proximidade com a populaçã o

úteis” para o funcionamento da corporaçã o militar ganharam destaque em

detrimento daquelas de fundamentos teóricos mais humanistas, de especial

importância para o preparo dos policiais que iriam realizar um policiamento mais

proativo que reativo e, portanto, mais próximo da comunidade ( C R UZ ; L OPE S ;

B R A SIL , 2012, p. 09) .

L ogo, a simples alteraçã o de currículos, como as academias de polícia tê m feito, nã o é garantia de mudanças efetivas na formaçã o policial, pois esta vai além do conteúdo programático ou daquilo que é ensinado em sala de aula, abrangendo também a vida dentro das academias ( F R A NÇ A , 2012).

D esse modo, faz-se necessário nã o só o ensino formal dos direitos humanos, mas que tal matéria seja ensinada de maneira transversal, permeando todas as demais disciplinas, inclusive as operacionais (A R R UD A , 2013; OL IV E IR A , 2016), bem como a própria socializaçã o

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dos policiais, visto que, segundo F rança (2012), aos alunos das escolas de formaçã o policial é ensinada uma visã o distorcida sobre direitos humanos e sobre a humanizaçã o dos seus procedimentos práticos.

E ssa distorçã o tem início no tratamento dispensado pelos professores/instrutores aos alunos: nesse processo de construçã o de profissionais de segurança pública dentro das academias de polícia, o desenvolvimento da identidade policial-militarizada ocorre antes da construçã o de um policial humanizado (F R A NÇ A , 2012).

O desenvolvimento dessa identidade policial-militarizada acontece através da socializaçã o dos policiais no seio da instituiçã o, durante os cursos de formaçã o, quando a hierarquia e a disciplina sã o utilizadas para a internalizaçã o da identidade militar, substituindo-se a identidade civil pela militar. L ogo, ao ingressar na Polícia Militar, o indivíduo passa por um momento de ruptura e transiçã o, quando deixa de ser civil e passa a ser militar (OL IV E IR A , 2016).

A ssim, a hierarquia e a disciplina, um dos principais aspectos do militarismo, sã o valorizadas ao extremo dentro dos cursos de formaçã o, por meio da relaçã o entre instrutores e alunos (OL IV E IR A , 2016). S egundo F eitosa (2000), há uma excessiva valorizaçã o do aspecto disciplinar da formaçã o militar, em detrimento da capacitaçã o operacional do policial. “Muito se exige da postura, do asseio, da barba sempre feita, da farda toda composta. O aspecto policial da formaçã o nã o representa seu principal escopo” ( F E IT OS A , 2000, p. 127).

É bastante ilustrativo dessa valorizaçã o excessiva da disciplina e da hierarquia na formaçã o dos policiais o depoimento do ex-praça da Polícia Militar do E stado do C eará

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A socializaçã o é “um processo de imposiçã o de padrões sociais à conduta de uma pessoa” ( OL IV E IR A , 2016,

(PMC E ), D arlan Menezes A brantes

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, acerca do C urso de F ormaçã o e A perfeiçoamento de Praças em entrevista concedida à B oitempo E ditorial (B A R R OS , 2015, grifo meu):

Sempre que um professor faltava, éramos obrigados a fazer faxina em todo o

quartel. E o pior: quem reclamava podia ficar preso o fim de semana todo. A

hier ar quia fica acima de tudo no militar ismo. O tr einamento er a só aquela

coisa da or dem unida [exer cícios militar es de for maçã o de mar cha, de par ada

ou r euniã o dos membr os da tr opa], ficar o dia inteir o mar chando debaixo do

sol quente. L á dentro é um sistema feudal, você tem os oficiais que podem tudo e os

soldados que abaixam a cabeça e pronto, acabou. V ocê é treinado só pra ter medo de

oficial, só isso. O soldado que vê o oficial, mesmo de folga, se treme de medo.

É uma lavagem cer ebr al. O militar ismo é uma espécie de r eligiã o que cr ia

fanáticos. O r dem unida, leis militar es, os r egimentos e tal, aqueles gr itos de

guer r a. E ssas coisinhas bestas que os policiais vã o aprendendo, como arrumar

direito a farda. V ocê pode ser preso se nã o tiver com um gorro ou chapéu na cabeça.

E ssas coisas que só atrapalham a vida dos policiais. À s vezes eu pegava um ônibus

super lotado, chegava com a far da amassada e ficava sexta, sábado e domingo

pr eso. V ocê imagina? Por causa de uma besteir a dessas? I sso é r idículo. E isso é

antes e depois do treinamento: se você for hoje na cavalaria da PM de F ortaleza você

vai ver policial capinando, pegando bosta de cavalo, varrendo chã o, lavando carro de

coronel, abrindo porta para os semideuses [ oficiais].

E ssa valorizaçã o também pode ser percebida a partir da análise dos regulamentos disciplinares das Polícias Militares. C onforme Oliveira (2016), há certa homogeneidade nesses regimentos, elaborados sob uma forte influê ncia do R egulamento D isciplinar do E xército (R D E ). Inclusive, há E stados que utilizam integralmente o R D E . Muitos regulamentos preveem como transgressã o um policial de menor patente deixar de oferecer o seu lugar a um superior, bem como dispõem que o comandante pode agravar, atenuar ou relevar as punições disciplinares (valorizaçã o da hierarquia). A demais, tais legislações regulam nã o só o comportamento dos policiais dentro da instituiçã o, mas também fora dela e fora do serviço, ou seja, na sua vida pessoal, proibindo, por exemplo, que sejam frequentados lugares incompatíveis com o decoro, que um policial embriague-se ou contraia dívidas (OL IV E IR A , 2016) (valorizaçã o da disciplina). D essa forma, os regulamentos se preocupam demasiadamente com o rigor ao qual deve estar submetido o policial, tratando principalmente da relaçã o entre superiores e subalternos, ao invés de preocupar-se com as relações entre os policiais e a sociedade, que é o que de fato influencia na atividade de policiamento ostensivo.

A lém disso, a cultura militar presente nas instituições policiais, especialmente na Polícia Militar, muitas vezes assegurada pelos regulamentos disciplinares das polícias

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D arlan foi expulso da PMC E em 2014, após distrubuir próximo à A cademia E stadual de Segurança Pública do

C eará o livro que escreveu criticando a militarizaçã o da polícia, contendo, inclusive, depoimentos de outros

policiais, intitulado “Militarismo: um sistema arcaico de segurança pública”. A lém da expulsã o, ele relatou que

foi pressionado pela PMC E a identificar os policiais que prestaram os depoimentos. A demais, foi instaurada uma

açã o penal contra D arlan pela prática do crime tipificado no art. 166 do C ódigo Penal Militar (Publicar o militar

ou assemelhado, sem licença, ato ou documento oficial, ou criticar publicamente ato de seu superior ou assunto

militares, impossibilita o questionamento dos alunos em formaçã o, cerceando a sua liberdade de expressã o. Oliveira (2016) afirma que esses regulamentos, no geral, suprimem os direitos dos policiais à manifestaçã o, à opiniã o, à crítica e até de petiçã o

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. E m entrevistas realizadas por Oliveira (2016) com policiais militares goianos no C entro de F ormaçã o e A perfeiçoamento de Praças foi demonstrado como as previsões dos regulamentos e o militarismo impedem a manifestaçã o dos alunos, especialmente dos praças, e atrapalham a atividade policial, como mostra o seguinte depoimento:

A trapalha de tudo! E u nã o posso me expressar...eu nã o tenho o prazer de concordar

ou nã o concordar com você , o fato de eu nã o concordar contigo é motivo para

aquele oficial pedir a minha prisã o, ou se nã o pedir a minha prisã o me desacatar na

frente dos colegas.

( ...)

E ntã o a disciplina nossa é muito exagerada, e tem muitos oficiais que aproveita das

leis arcaicas e chega pune. E u fico olhando assim, desacato a autoridade, tem oficial

que, tem ali o praça, eu falo o praça do soldado ao subtenente. O praça as vezes nã o

concorda com algumas coisas que sã o ditas pelo oficial e tenta discutir com ele, com

isso o oficial se sente como se fosse afrontado, dai vem alguma discussã o, e ai vem

o abuso de autoridade do oficial, autua o praça e prende. Se for seguir ao pé da letra

o que está escrito nos nossos regulamentos, de um corte de cabelo a uma roupa mau

passada é motivo de prender o camarada dependendo do oficial, o camarada fica

entre 30 a 60 dias preso ( OL IV E IR A , 2016, p. 84-85).

A demais, a referida internalizaçã o da cultura militar ocorre por meio da despersonalizaçã o e da desumanizaçã o do aluno, através de submissã o a humilhações, xingamentos, constrangimentos de todo gê nero e sofrimentos físicos (OL IV E IR A , 2016). 59,6% dos agentes de segurança pública entrevistados em pesquisa acerca da opiniã o dos policiais brasileiros sobre reformas e modernizaçã o da segurança pública (C E NT R O D E PE S QUIS A S J UR ÍD IC A S A PL IC A D A S ; F ÓR UM B R A S IL E IR O D E S E GUR A NÇ A PÚB L IC A , 2014) afirmaram que jáforam humilhados ou desrespeitados por superior hierárquico. A lém disso, 58,3% acreditam que a hierarquia nas polícias e demais forças de segurança provoca desrespeito e injustiças profissionais (C E NT R O D E PE S QUIS A S J UR ÍD IC A S A PL IC A D A S ; F ÓR UM B R A S IL E IR O D E S E GUR A NÇ A PÚB L IC A , 2014).

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E xemplifica-se com a colaçã o das seguintes condutas que sã o consideradas transgressões pelo C ódigo

D isciplinar da Polícia Militar e do C orpo de B ombeiros do E stado do C eará ( C E A R Á , 2003) :

“X - publicar, divulgar ou contribuir para a divulgaçã o irrestrita de fatos, documentos ou assuntos

administrativos ou técnicos de natureza militar ou judiciária, que possam concorrer para o desprestígio da

C orporaçã o Militar;

( ...)

X X V - discutir ou provocar discussã o, por qualquer veículo de comunicaçã o, sobre assuntos políticos, militares

ou policiais, excetuando-se os de natureza exclusivamente técnica, quando devidamente autorizado;

( ...)

X L IX - autorizar, promover ou participar de petições ou manifestações de caráter reivindicatório, de cunho

político-partidário, religioso, de crítica ou de apoio a ato de superior, para tratar de assuntos de natureza militar,

Mesmo passados trinta anos da nova ordem democrática, em que a C R F B /88 aduz que no B rasil vive-se em um E stado D emocrático de D ireito e garante a todos a proteçã o dos seus direitos fundamentais, persiste a crença no pensamento policial militar de que o sofrimento é necessário ao processo de socializaçã o policial, sob a justificativa de que as atividades aplicadas tê m o objetivo de treinar os alunos para a periculosidade da atividade de policiamento ostensivo (OL IV E IR A , 2016). E ssa socializaçã o de cunho militar é denominada por F rança e Gomes ( 2015) de pedagogia do sofrimento, por meio da qual o aluno é submetido pelos seus instrutores a humilhações físicas e psicológicas para, supostamente, ser preparado para proteger a sociedade da criminalidade.

É interessante colacionar um trecho de um depoimento prestado por uma policial militar feminina em pesquisa realizada por F rança e Gomes (2015), acerca do E stágio de Operações T áticas com A poio de Motocicletas realizado na Paraíba em 2014, em que ela narra algumas humilhações sofridas: