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Madrasta o nome lhe basta: a complexa personagem negativa das culturas tradicionais e a sua situação na literatura popular portuguesa e

3.2.1.Mulher é mulher e mãe é mãe 79 : a maternidade observada da perspectiva das tradições populares portuguesa e sérvia

3.2.2 Madrasta o nome lhe basta: a complexa personagem negativa das culturas tradicionais e a sua situação na literatura popular portuguesa e

sérvia

A problemática da madrasta, embora já fosse tratada na parte sobre a posição das viúvas, neste capítulo será aprofundada e analisada de vários aspectos. Qualquer leitor que tenha lido alguns contos tradicionais, é capaz de se lembrar das imponentes figuras de más madrastas que maltratam os enteados por inveja, por maldade ou simplesmente por não poderem suportar a sua presença em casa. Estas são as razões que a obrigam a bater neles, não lhes dar a comida e a roupa, convencer o pai a expulsá-los de casa e deixá-los morrer num bosque.

O comportamento da madrasta não varia de acordo com o sexo do(s) enteado(s), ela é sempre má, apenas as razões dos maus tratos são diferentes. Se se trata da enteada, a questão que salta à vista é a inveja, porque a sua própria filha é feia, preguiçosa e mal- educada, enquanto que a filha do marido é comparavel a um anjo, bela, obediente, virtuosa e pura. Nestas situações o leitor reconhece os motivos da base internacional conhecidos da história sobre a Gata Borralheira. São inúmeros os exemplos tanto na cultura portuguesa como na sérvia que ilustram esta situação, mas com particularidades

do folclore local, e esses pormenores são efectivamente o que faz esses contos tão únicos e diferentes.

Se o seu marido do primeiro casamento tem um filho, ele é uma espécie de testemunha que a primeira esposa foi útil, dando à luz um filho herdeiro ao homem. Nos contos em que o protagonista é o enteado maltratado, a madrasta nunca tem outro filho, que podia competir com o irmão postiço. A madrasta não é capaz de ter um filho varão, por isso sente-se ameaçada na presença do filho de alguma outra mulher e não descansa até o ver na miséria e fora do lar paterno.

Nas narrativas tradicionais em que a primeira esposa deixou ao seu marido dois filhos, gémeos ou não de sexos diferentes, cada leitor pode facilmente identificá-los com Hansel e Grettel, desta vez também aportuguesados ou representados com traços de alguma “serviedade”. Esta variante de contos sobre a má madrasta implica a sua impotência de suportar a eterna presença da primeira mulher, que deu ao marido a dupla alegria encarnada geralmente nas personagens de um menino e uma menina. Uma vez expulsos da casa paterna, os meninos sofrem, passam fome e frio até se encontrarem com a bruxa, que os quer comer. Na bruxa outra vez encontramos a mulher como encarnação da maldade, o que para alguns teóricos pode significar todas as características da má mãe. Como já vimos anteriormente, o papel da mãe é sacralizado e mitificado e em público não se pode dizer que a mãe possa ter algum defeito e por isso ela deve ser transformada em bruxa, que por pura maldade faz sofrer as crianças.

Voltando ao provérbio do título, devemos chamar a atenção para um pormenor: o termo madrasta em português e maćeha em sérvio para qualquer falante nativo destas línguas soa de facto mais feio que as palavras mãe e majka. Uma das possíveis explicações para estes casos seria que a madrasta, como uma familiar "artificial" e por vezes não desejada, deve ser chamada com um nome que não implique afectividade ou proximidade. O mesmo acontece com a palavra padrasto (očuh).

Na perspectiva de Propp (1983), as aventuras do protagonista do conto começam quando ele se afasta de casa, e nas narrativas em que aparece a má madrasta, ela é apenas uma espécie de impulso motor que obriga as crianças a começarem o seu ritual de iniciação, o afastamento da infância e a ida em direcção da vida adulta. Para demitificarmos mais a personagem da madrasta, devemos dizer que ela é uma desacralização da mãe. Um exemplo que mostra melhor esta visão da madrasta é um breve e pouco conhecido conto sérvio, que na antologia de Tomić (1999), aparece intitulado como A Madrasta (Maćeha), e nas variantes orais pode-se ouvir como A mãe

mentirosa (Lažljiva majka). Trata-se de um viajante que encontra no caminho uma criança muito bela, mas vestida de roupa suja e rota e quer saber por quê anda assim e se tem mãe. O menino responde que a sua mãe tinha morto e que o pai lhe trouxe para a casa uma mãe nova. A criança triste diz que a sua mãe defunta costumava mentir muito, o que causa estranheza no seu interlocutor e vontade de o repreender. Para fundamentar melhor a sua opinião, a criança explica que a sua mãe que morreu apenas dizia que o ia castigar com um pau e nunca o fazia, enquanto que a outra não ameaça mas o menino todos os dias leva pancadas e insultos. Neste caso vemos uma clara crítica dos métodos disciplinares antigos que por vezes implicavam o uso da violência, e como o imaginário popular não permite que a imagem da mãe seja denegrida de qualquer forma, as características negativas (a falta de paciência, o nervosismo, a raiva) devem ser atribuidas à madrasta. Sendo ela um substituto, a segunda mulher, não amada, não desejada, com a qual o seu marido não tem maiores contactos, é lógico que se sinta incapaz de amar, de criar afectos nos outros, de estabelecer proximidade. Do novo casamento, entre o pai e a madrasta nunca nasce nenhgum filho, o que é um bom indicador de que ela não foi tomada por esposa por amor, mas sim por razões práticas: para ser educadora dos primeiros filhos do homem.

Quando a madrasta tem filhas próprias, o narrador da história menciona que ela as trata bem e dá-lhes tudo. Mesmo assim, as filhas da madrasta são mal-educadas, ingratas, preguiçosas e desobedientes. Este facto é possível analisá-lo como um excesso de atenção que não é pedagógico porque torna as filhas muito mimadas, irresponsáveis e sobreprotegidas. Como as narrativas populares sempre possuem um carácter moralizador, os contadores dessas histórias desejam salientar que na educação dos filhos não é bom recorrer aos estremos, nem em castigos, nem em atenções, porque os dois comportamentos influenciam mal o seu carácter. A personagem da madrasta é toda exagerada: não realizada, infeliz, pessoa que falha em todos os planos e por isso por vezes um leitor adulto poderia até sentir pena dela, se não fosse representada como tão má. Ninguém toma em consideração os sentimentos dela e os enteados estão assustados porque ela não é nem nunca será a verdadeira mãe, e eles próprios se calhar a afastam ainda mais de si. Neste momento seria interessante imaginar a situação de a madrasta em algum conto tradicional ter um filho com o seu novo marido e como seria a educação da tal criança. Podemos permitir-nos várias suposições, mas a que nos parece mais lógica é que com o nascimento desse filho, a madrasta se sentiria mais realizada e se calhar nele se veria a educação correcta: seria repreendido por ser irmão dos enteados

da madrasta e mimado por ser irmão dos filhos dela e desta forma na sua educação os castigos e prémios seriam equilibrados.

Segundo Samardžija (2006), a madrasta pode triunfar sobre o enteado no conto cómico, mas nunca na história seobre o enteado perseguido e maltratado. A imagem da madrasta nos ideários populares das duas culturas aqui observadas pode servir como uma advertência às raparigas jovens de não se casarem com viúvos com filhos, porque criar os filhos alheios é difícil, representa uma grande responsabilidade e dá pouco prazer e possibilidades de a mulher se afirmar como mãe.

Para a visão da madrasta não ficar completamente retorcida e exagerada, existem poucos casos na literatura tradicional portuguesa e sérvia em que a sua figura pode parecer até simpática. No caso de Portugal, na narrativa O Embarcadiço, a madrasta é boa e ajuda a enteada escondida a realizar os seus desejos. Para cumprir com a profecia, dá-lhe de beber, colabora com ela no furto e encontra-lhe um homem nobre para a sua iniciação sexual. Depois finge o parto para a menina não ficar envergonhada em frente do pai. Ela, quando encontra a menina, tem pena dela, e se lhe faz estas três vontades, temos a impressão de que não deseja levá-la pelos maus caminhos, mas pelo contrário ajudá-la a salvar-se da maldição, para depois da sina cumprida, poder continuar a vida feliz. No conto sérvio Ao Milutin metade (Milutinu polutinu), a madrasta tem um filho seu, chamado Milutin e três enteados e dá a cada um dos meninos um bolo menos so seu filho. Depois pede aos enteados para cada um dar metade do seu bolo ao Milutin, e desta forma o seu próprio filho fica com três metades dos bolos dos irmãos postiços, e eles comem apenas metade do bolo dado. Nesta situação o narrador popular sugere a esperteza da madrasta e a sua maneira sofisticada de salientar que privilegia o seu filho. Os enteados nesta história não são maltratados, pelo contrário, aparentemente são tratados por igual, com carinho e atenção, o que não corresponde ao clássico estereótipo da relação entre a madrasta e os filhos do primeiro casamento do seu marido. No entanto, é um pouco mais visível o amor maternal pelo Milutin. Isto nota-se pelo facto de o ouvinte ou leitor da história ficar a saber o nome do filho da madrasta, que na raiz leva o adjectivo mio, que significa querido, enquanto que os nomes dos enteados nem sequer se mencionam. Em ambas as tradições orais aqui comparadas, embora sejam raros, existem casos em que a má madrasta se arrepende no fim do conto se arrepende e recebe com alegria o enteado que volta ao lar paterno depois de muitas aventuras. Na cultura popular sérvia as narrativas que mencionam a metamorfose da madrasta são Sal

e pão (So i hleb82) e Kravarić Marko, que se poderia traduzir como Marcos da Vaca, sendo o protagonista alimentado por uma vaquinha que a mãe lhe deixou, quando a madrasta o torturava com fome. Na cultura portuguesa podemos presenciar o arrependimento da madrasta nos contos A Vaquinha e A Enjeitada83, em que a má madrasta, depois de ver a sua própria filha a deitar imundície pela boca fora, começa a tratar bem da enteada.

Não se fala detalhadamente sobre os factores que influenciaram a mudança do comportamento da madrasta, apenas se menciona o facto de ela se ter arrependido e nisto podemos notar uma forte influência da religião cristã, que salienta a importância da redenção dos pecados e dá a oportunidade a todos de chegarem ao momento da transformação interior.

Neste capítulo tentámos analisar algumas dimensões da personagem da madrasta para justificarmos alguns dos seus comportamentos e para a apresentarmos em uma perspectiva um pouco duferente da habitual, vendo nela um ser humano com todos os defeitos e algumas virtudes.

3.2.2.Esqueceu-se a sogra que já foi nora: a relação ambivalente entre a

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