• Nenhum resultado encontrado

Os padrões de beleza feminina no imaginário popular português e sérvio

3.2.1.Mulher é mulher e mãe é mãe 79 : a maternidade observada da perspectiva das tradições populares portuguesa e sérvia

3.4 Os padrões de beleza feminina no imaginário popular português e sérvio

Nesta parte da nossa dissertação concentrar-nos-emos na beleza feminina e na sua ausência, pretendendo ver se um fenómeno abstracto como a beleza difere de cultura para cultura ou nos contos populares existem modelos de beleza que correspondem a um carácter mais universal. Observaremos também com que elementos da natureza se identifica e compara uma mulher bela nas duas tradições e em que medida a beleza física está ou não relacionada com os traços de personalidade e virtudes que a protagonista de um conto possui. Desta forma tocaremos no assunto dos estereótipos, que vai ser tratado coom mais atenção no capítulo a seguir, e comentaremos então quais são os estereótipos da beleza das princesas e das mulheres comuns. A nossa primeira impressão depois de termos lido uma série de contos de ambas as tradições, é que os narradores populares não se detêm com demasiados pormenores na descrição do aspecto físico das protagonistas destas narrativas.

No que diz respeito ao aspecto físico, os adjectivos que se usam nos contos portugueses são: "bela", "bonita", "linda" ou "formosa", por vezes aumentados mediante

o quantificador "muito". Quando se trata da irmã ou filha mais nova, salienta-se que ela é a mais bela de todas. Em determinadas narrativas, ela é comparada com o sol, ou então é tão bonita que não se pode sequer imaginar ou descrever. De vez em quando, as características físicas são sugeridas pelo nome da dama (Branca-Flor, Bela-Menina, Cara-Gentil). Algumas das personagens, geralmente princesas, têm os cabelos "doirados", que é significativo, porque se pode interpretar de várias maneiras: como uma questão de moda, preferência pessoal do narrador e os seus critérios sobre a beleza feminina, símbolo de nobreza etc. Sendo o ouro um metal muito valioso, em vez de se dizer simplesmente "cabelos louros" dá-se mais valor não apenas ao cabelo, como um elemento "decorativo", mas também quer-se salientar que a pessoa com estas características físicas é também valiosa. Para José Gabriel Pereira Bastos (1998), os cabelos de ouro simbolizam o ccordão umbilical, e isso é uma alusão mais do que clara à fertilidade e à possibilidade de constituir uma família numerosa, que nas sociedades antigas se considerava uma grande honra e privilégio.

O que também nos paareceu interessante é o detalhe de as princesas prestarem muita atenção à forma de se vestirem, de adornarem o seu cabelo com flores ou fitas e de pentearem-no muito, o que indica que a parte visual e exterior não se deve esqcer completamente, embora a virtude se ponha no primeiro plano. Esporadicamente, uma personagem boa é marcada de uma forma especial: tem uma estrela ou rosa na testa, deita pérolas, flores ou pedacinhos de ouro pela boca fora e com isto indirectamente deseja-se salientar a sua singularidade entre as outras pessoas.

Os sítios em que aparecem estas marcas únicas são também importantes: a testa, que se relaciona com a inteligência, e a boca, que significa que o valor das suas palavras é muito grande. Daqui podemos concluir que a beleza física está estreitamente ligada à virtude e que uma protagonista positiva deve representar o modelo da beleza e o exemplo do bom comportamento. Nos casos das rainhas ou madrastas vaidosas, que desejam saber se no mundo existe uma cara mais bela que a sua, o seu aspecto físico está posto no segundo plano, porque apenas a beleza em si, sem nada por dentro, que revelava o carácter da pessoa e o complementava, na lógica dos narradores populares, não vale nada.

Quando as personagens são mulheres feias, esta característica relaciona-se muitas vezes com a velhice, com a viuvez, com as bruxas. Outro exemplo em que é obrigatório ser-se feia, é ser filha da madrasta. Num conto português, a madrasta tem três filhas e cada uma tem um grande defeito físico: ou é cega, ou coxa, ou torta, com o

qual se vê claramente a posição imparcial do narrador em relação às personagens positivas e negativas do conto. Feias (e más também) podem ser as irmãs mais velhas da protagonista, o que já foi discutido anteriormente.

As pretas nas narrativas tradicionais são qualificadas de formas bastante depreciativas: "cachorra“, "torta", "gorda" ou simplesmente "feia", e a razão disto pode estar não tanto no racismo e intolerância com o Outro, quanto no facto de as personagens negras se dedicarem à bruxaria e fazerem mal aos outros, e os narradores, pretendendo destacar que essas acções são feias, devem mostrar que quem as pratica deve também ser feio.

As mouras podem ter algo de misterioso no seu aspecto físico, o que chama a atenção dos príncipes cristãos. Um dos motivos para isso é o facto de na cultura islâmica a mulher se veste de forma a não mostrar-se muito, e tudo o que não está demasiado à vista, intriga as pessoas e faz com que no não revelado se encontre alguma beleza.Pelo que vimos, nos contos tradicionais portugueses não se pode falar muito na ideia de um prototipo da beleza da mulher portuguesa, porque os narradores expõem uma visão mais universal, mais abrangente e mais simbólica das características físicas femininas.

Na literatura popular sérvia, podemos chegar à conclusão de que existem algumas ideias que coincidem com as narrativas portuguesas (nomeadamente o estereótipo dos cabelos doirados), enquanto que também se podem encontrar alguns traços de carácter local. Os adjectivos que se usam para caracterizar a beleza feminina são: bela (lepa), krasna (formosa), ou no seu superlativo formosíssima (prekrasna), ou maravilhosa (divna). Não é raro em vez do sintagma bela menina (lepa devojka), encontrar-se lepota devojka, que literalmente traduzido significaria: beleza-menina e isto pode interpretar-se de duas formas: do ponto de vista gramatical, quando dois substantivos estão juntos, um deles tem a função adjectival, e também que a menina que é igual ao ideal da beleza. Também, uma protagonista do conto pode ser qualificada como tão bela que não há outra igual a ela em todo o reino, ou em todo o mundo. Por vezes o povo sérvio relaciona a beleza e a saúde e por isso a menina do conto deve ser bela e saudável (lepa i krupna) ou corpulenta, bela e saudável (krupna, lepa i zdrava) e aqui já vemos um padrão de beleza tipicamente balcânico, em que uma mulher tem de ser corpulenta, sobretudo se é do campo, para poder suportar e fazer os trabalhos duros que fazem parte do dia-a-dia do ambiente rural. Nesta situação não se pensa na mulher apenas como na mão-de-obra, porque ela tem as qualidades de belezza,

saúde e muitas virtudes, que em conjunto complementam o seu aspecto físico. O facto de uma rapariga ser alta e magra (visoka i tanka) também revela o gosto e as preferências do povo da época em que as narrativas tradicionais surgiram. Na tradição sérvia, o que se valoriza muito é combinarem-se a brancura e o rubor no rosto, sendo o branco símbolo de pureza, elegância e origem nobre, enquanto que o rubor, por um lado é indicador da boa saúde, como por outro simboliza pudor. Nalgumas narrativas populares a sua brancura compara-se com a neve e o seu rubor ou com o sangue, ou com a rosa, sendo o sangue símbolo da vida e a rosa da beleza e da juventude. No entanto, a descrição mais detalhada da beleza feminina encontra-se no conto tradicional sérvio A rapariga mais rápida que o cavalo (Djevojka brža od konja)88 é a seguinte:

"Bila je nekaka đevojka koja nije rođena od oca i majke, nego je načinile vile od snijega izvačena iz jame bezdanje prema suncu ilijnskome, vjetar je oživio, rosa je podojila, a gora lišćem obukla i livada cvijećem nakitila i naresila. Ona je bila bjelja od snijega, rumenija od ružice, sjajnija od sunca, da se take na svijetu rađalo nije niti će se rađati."89

Mesmo que à primeira vista se trate de um ser sobrenatural, feito pelas fadas, este parágrafo, e o conto no total, são um verdadeiro elogio da mulher e de todas as suas qualidades, tanto físicas como espirituais. Esta menina não é só mais rápida que o cavalo, mas é mais esperta que todos os seus pretendentes, incluindo o príncipe e, enquanto o leitor espera que ela se case com o filho do czar, ela foge no fim e fica sózinha. Nesta narrativa enumera-se uma série de elementos naturais que participaram na criação da sua beleza, que por sua vez sugerem o seu carácter indomável e o seu impulso pela liberdade. A sua beleza e a sua independência são superiores a tudo, incluindo às regras da sociedade que viam o casamento com um filho do czar como a maior das honras. Indirectamente aqui também é sugerido que uma mulher, e sobretudo se é bela, tem direito de escolher não apenas o marido, mas também se vai casar ou não. Outros sinais de beleza podem ser algumas marcas específicas, que uma princesa tem no corpo: uma estrela, a lua ou o sol.

88 In: Karadžić (1852).

89 (sér) Era uma vez uma rapariga que não nasceu do pai e da mãe, mas foi feita pelas fadas da neve

extracta duma fossa sem fundo, virada para o sol de Santo Helias, o vento deu-lhe a vida, o rossio amamentou-a, e a floresta vestiu-a de folhas e o prado adornou-a e fez-lhe fitas de flores. Ela era mais branca que a neve, mais rubra que uma rosinha, mais brilhante que o sol, que uma assim nem nasceu, nem nascerá. (tradução livre)

Quando estão encantadas, as mulheres belas podem aparecer em forma de pássaros, (cisne, pavoa, pomba), que no seu simbolismo escondem a pureza, a elegância, a fidelidade e outras virtudes.

Na forma de as protagonistas dos contos se vestirem, adornarem o cabelo ou pentearem-se nota-se bem qual é a importância do aspecto físico e da impressão que o seu aparecimento deixa nos presentes no baile, na igreja ou num acontecimento público.

Tal como nos contos portugueses, feias são as personagens negativas: velhas, bruxas, filhas da madrasta, más irmãs, mas também as enteadas maltratadas que se poderiam identificar com a Gata Borralheira. O temporário aspecto feio destas meninas serve mais para se salientar a maldade das protagonistas que a rodeiam, do que propriamente para a caracterizar. Para caracterizar uma personagem feia, o narrador não presta muita atenção nos pormenores, apenas se limita a chamar-lhe de feia, ou muito mais feia que uma personagem positiva.

Esta pequena análise contrastiva serviu-nos para reflectirmos sobre a beleza e a sua falta nas duas literaturas populares aqui analisadas e ajudou-nos a perceber que estes fenómenos são tanto universais como locais, tanto mutáveis, como fixos, que as ideias que os imaginários populares nos oferecem sobre eles contribuem para um melhor conhecimento da nossa própria cultura e da cultura do Outro.

3.5 Os estereótipos sobre a mulher transmitidos através das

Outline

Documentos relacionados