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A mulher e a santidade: personagem da Virgem Maria nas narrativas populares portuguesas e sérvias

3.2.1.Mulher é mulher e mãe é mãe 79 : a maternidade observada da perspectiva das tradições populares portuguesa e sérvia

3.3 A mulher e a santidade: personagem da Virgem Maria nas narrativas populares portuguesas e sérvias

Embora ao longo da nossa dissertação tenhamos mencionado algumas virtudes que são aceitáveis e desejáveis nas culturas cristãs, tanto para os homens, como para as mulheres, e tenhamos discutido um pouco a posição da mulher no Cristianismo, neste momento analisaremos com amis atenção uma figura histórica e lendária, estremamente importantetanto do ponto de vista religioso, como do folclórico: a Virgem Maria. Tendo em conta de que ela é considerada santa padroeira de Portugal, é lógico que neste espaço cultural haja mais histórias, lendas, crenças e mitos cuja protagonista é justamente ela. Neste trabalho procuraremos verificar se a tradição católica romana por um lado e ortodoxa por outro influenciaram uma visão diferente da Mãe de Deus e observaremos qual é a importância que as duas culturas dão à sua personagem através das narrativas curtas tradicioanis.

Segundo a Bíblia Sagrada, a mãe de Jesus Cristo era uma pessoa concreta, de nome Maria, filha de Joaquim e Ana, escolhida por Deus para ser mãe do Salvador da humanidade. Ela menciona-se sempre em relação a Cristo. A sua submissão à vontade de Deus vê-se melhor no dia da Anunciação, quando recebe a notícia do Arcanjo Gabriel, que a avisava que teria um filho. Ela, não sendo casada, primeiro pergunta como é que isso acontecerá sem que ela tenha marido e recebe a resposta de que será mãe por intervenção do Espírito Santo, e ela voluntariamente aceita que se faça a vontade de Deus. Para Stefano di Fiores (2004) ela é um instrumento nas mãos de Deus que participa na salvação do mundo. Alguns santos Católicos Romanos e Ortodoxos chamam-na de “nova Eva“, considerando que Maria em grande medida corrigiu a atitude de Eva. Duas características importantes na personagem da mãe de Deus são justamente a sua virgindade e a maternidade. Nos ícones da Igreja Ortodoxa ela é representada com uma estrela em cada ombro e uma na testa, justamente para se indicar a sua virgindade antes, durante e depois do parto.

A igreja Católica tem várias representações da mãe de Jesus, e uma delas é, como em Portugal, com uma coroa de ouro na cabeça. Esta coroa pode ter um duplo

significado: religioso, porque ela é a Rainha dos Céus, e histórico, porque um dos reis portugueses colocou a coroa portuguesa sobre a cabeça de uma estátua da Virgem Maria. A partir de Março de 1646, durante o reinado de D. João IV, proclama-a Nossa Senhora da Conceição padroeira de Portugal e promete-lhe um tributo anual em ouro. No Brasil, a tradição mariana também é muitocultivada, considerando-se a Nossa Senhora Aparecida a sua padroeira. Por todos estes factores aqui enumerados, não é de estranhar que em Portugal existam muitas narrativas populares cuja protagonista é justamente a Nossa Senhora, que por vezes pode ter sobrenomes (da Encarnação, da Piedade, dos Remédios). Estes nomes de modo nenhum indicam a existência de várias Virgens Marias, mas salientam algumas das suas "funções" no imaginário popular (a de ajudante, a que cura das doenças, a que tem compaixão pelas pessoas) e alguns aspectos da sua personalidade complexa. Por vezes, depois do seu nome aparece algum topónimo (Nossa Senhora dos Açores, Senhora da Penha de França), o que indica o sítio da sua aparição, a cidade protegida por Ela ou um lugar da sua presença particular. Apenas em Leite de Vasconcellos (1964), é possível encontrar vinte e duas histórias dentro do nono ciclo da divisão desta antologia, que por personagem central têm a Virgem Maria, e dentro da parte intitulada como "Lendas religiosas", este número é muito maior ainda. Quer nos contos inventados pelo povo, quer nas lendas, que implicam uma maior verisimiltude, a figura da Virgem Maria é a encarnação das virtudes e da bondade. No entanto, existe uma ligeira diferença entre os contos e as lendas de carácter religioso sobre a Nossa Senhora: nas narrativas curtas populares, ela é muito humana: Tem fome, sede, gosta de figos e de tâmaras, sofre, abençoa a figueira e amaldiçoa a mula e o pedreiro. Por tanto, ela é capaz de sentir e compreender as fraquezas humanas, sendo ela própria que por vezes se zanga e castiga os outros. Nas lendas religiosas, a sua imagem corresponde mais à ideia bíblica sobre ela: virtuosa, piadosa, justa. Em A Senhora das Neves86, a Virgem ajuda uma pobre para comer, guarda-lhe as ovelhas e manda que a mãe da jovem construa uma capela em seu nome. Salva uma criança do incêndio, cura os doentes, protege a todos e está sempre presente na vida dos que Nela acreditam, próxima de todos, cheia de graça Divina. Por isso, identificando-se com Ela, glorificando-a e amando-a, o povo português criou a sua visão muito particular desta santa e transmite as lendas e contos tradicionais sobre Ela para legar às gerações mais novas um grande tesouro cultural. Desde a Idade Média, em que Maria, dentro de uma

estrutura feudal muito bem hierarquizada, era representada como protectora dos pobres, doentes e desprotegidos, começa a desenvolver-se um forte culto mariano, sobretudo nos países que têm por base cultural a variante Católica Romana do Cristianismo. Na literatura medieval, sobretudo espanhola e portuguesa, contam-se numerosos milagres de Maria, sobre os quais não existem indicações nenhumas na Bíblia, e também é muito frequente ela ser tratada como Nossa Senhora. Esta forma de tratamento deve-se a uma maneira de o povo desejar aproximar a santa de si, torná-la mais humana, mais "terrestre", sem em momento algum se querer diminuir o seu mistério e o seu carácter celestial. Por um lado, ela é "nossa", de todos nós, modelo de comportamento para todos, conselheira, ajudante, uma santa à qual todas as pessoas podem rezar à vontade. Por outro lado, é "Senhora", digna de todo respeito e admiração.

Com esta forma de tratamento surge uma dicotomia entre ela e o "Nosso Senhor" Jesus Cristo, que é denominado assim, pelas mesmas razões que a Sua Mãe. Na época da Contra-Reforma este culto fortalece-se ainda mais, para defender a imagem de Maria perante os ataques dos protestantes que até negavam a sua virgindade depois do nascimento de Jesus. No mundo Católico Romano existe o dogma da Imaculada Conceição, introduzido pelo papa Pio IX em 1854 e outro sobre a sua Assunção em corpo e alma, que é da autoria do papa Pio XII. Com as aparições em Lourdes e Fátima, o culto mariano chamou muita atenção do mundo Católico romano e lavantou questões entre os crentes de outras confissões e agnósticos. Stefano di Fiores (2004) considera que o terceiro milénio será o milénio em que se atribuirá mais importância à Virgem Maria. Enquanto que o catolicismo e as variantes ocidentais falam mais em Maria, a ortodoxia prefere usar os termos de Mãe de Deus. Nas línguas eslavas para Mãe de Deus utiliza-se o vocábulo Bogorodica, que provém do substantivo Bog, (Deus) e o verbo roditi, que significa dar à luz. Por tanto, a tradução literal deste nome seria "a que deu à luz Deus". Com o seu nome são empregados os seguintes adjectivos: Presveta (Santíssima), Prečista (Puríssima), Preblagoslovena87. A tradição Ortodoxa reserva para a Mãe de Deus um lugar muito alto na hierarquia celestial, sendo ela "mais honrada que os querubins" e "mais gloriosa que os serafins". Por este motivo, mesmo na Terra existe um lugar, em que a sua presença é permanente e particularmente visível. Trata-se do monte Sacro, Atos, no território da Grécia, mas separado dela, que tem um estatuto

87 Na tradução da Liturgia de São João Crisóstomo, que se usa na Igreja Ortodoxa Russa de Todos os

Santos em Lisboa este adjectivo é Bem-aventurada, enquanto que a sua tradução literal seria: muito abençoada.

especial: é um estado dos monges, mas que diferentemente do Vaticano, não tem exército, nem embaixadas. Ali, sendo este "o jardim da Mãe de Deus", é vedada a presença das outras mulheres, facto no qual muitas pessoas vêem um acto da discriminação da mulher na ortodoxia. No entanto, como mulher, crente e praticante da religião ortodoxa, consideramos estas qualificações exageradas, e pensamos que, pelo contrário, esta atitude dignifica a Mãe de Deus. Sendo as outras mulheres todas mais ou menos pecadoras, elas não podem estar na presença de um ser tão digno, glorioso e perfeito como Maria, que merece um lugar especial, só para Ela, apartado de todos. Em segundo lugar, trateando-se do estado dos monges, que fizeram os votos para conservarem-se em celibato, a presença de qualquer mulher não faz sentido, porque eventualmente alguma delas poderia representar uma tentação para os monges que se sacrificam e esforçam em nome de Deus. Por estas razões, a Mãe de Deus nos contos populares sérvios, não é uma personagem frequente. Se aparece, ajuda, aconselha, e depois desaparece, conservando o seu carácter sagrado e digno das alturas do Céu. Isto não indica distanciamento ou afastamento da nossa visão desta santa, ou a sua indiferença pelos seres humanos. Consideramos que cada cultura se adapta à maneira de ser dos povos e que uma visão assim de Maria está mais de acordo com os princípios da ortodoxia, na qual é mais importante sentir e intuir a ajuda e a presença de Deus e dos santos, do que propriamente ter uma noção física e concreta deles. Na lenda sobre o surgimento de Atos como monte Sacro e local da presença perpétua de Maria, Mãe de Deus, menciona-se uma viagem sua a Chipre, após a Resurreição de Cristo. Por causa de uma tormenta, não chegou ao seu destino e deteve-se em Atos, em que estava um grande santuário a Apolo. Então recebe uma mensagem de Deus que Ela deve anunciar o Evangelho naquele monte, uma vez que ele será "a sua parte da Terra, o seu jardim e o lugar em que os que estão à espera da salvação poderão encontrá-la.“ No sítio do antigo santuário pagão agora está situado um templo da Mãe de Deus.

No imaginário popular sérvio, a sua personagem está mais presente na poesia lírica do que na prosa, uma vez que a poesia se considera mais sublime que a prosa e que tantas virtudes merecem ser elogiadas no canto e nos poemas, e não apenas com palavras simples que a prosa popular usa. Mesmo assim, nos nossos contos ela cura da esterilidade, protege, cuida, aconselha, sendo a Mãe de Deus e de todas as pessoas que se dirigem a ela com oração. Nos poemas populares, além de ser santíssima e gloriosa, ela pode ser representada a bordar, como muitas mulheres sérvias, a recolher as plantas medicinais, o que a aproxima das mulheres das épocas antigas. Quer apareça na prosa,

quer na poesia popular, Ela nunca castiga os pecadores, porque este é o dever de Deus. Ela é uma auxiliar rápida, tem piedade e compaixão e mesmo que desapareça logo, é próxima do mundo íntimo do ser humano. No apócrifos apđocrifos e na literatura erudita anónima ela é tratada por Puríssima (Prečista), Virgem Santíssima (Presveta Deva), elogio dos cristãos (pohvala hrišćana). É um exemplo da piedade e compaixão com todos e as suas lágrimas e orações no Céu suavizam o coração de Deus Pai e Ele perdoa os pecadores. Nas narrativas populares aparece mais Cristo que a sua Mãe, mas neste contexto isso não tem a ver com o género e a supremacia do masculino em relação ao feminino, mas sim com o facto de na ortodoxia estar mais desenvolvido o culto cristão que o mariano.

Outras santas que aparecem nas lendas e contos tradicionais são a Rainha Santa Isabel em Portugal e Santa Petka na sérvia, e elas sim são capazes de receber um carácter "de carne e osso", dando a cada cultura um teor mais local e mais específico. Seja como for, com todas as diferenças aqui apontadas, as duas literaturas populares que analisamos dão aos seus leitores ou ouvintes uma visão positiva, boa e diferente da mulher dentro da Igreja, mostrando que ela não é indigna, humilhada e desvalorizada e que pode atingir o grau da santidade devido aos seus méritos e virtudes.

3.4 Os padrões de beleza feminina no imaginário popular português

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