• Nenhum resultado encontrado

A visão do Outro do ponto de vista das pertenças culturais (étnicas e religiosas) nos imaginários populares sérvio e português

conto de fadas e mito

2.2. A visão do Outro do ponto de vista das pertenças culturais (étnicas e religiosas) nos imaginários populares sérvio e português

Escrevendo sobre as hierarquias sociais, era incontornável neste momento tocar um pouco na temética da diversidade étnica e religiosa existente na cultura sérvia num período da sua longa e complexa história. Ao contrário do que nos revelam os factos históricos, no imaginário popular sérvio, tudo o que se relacionava com os turcos era visto por um prisma muito negativo. O turco era símbolo e encarnação do mal, do terror, da injustiça e do abuso do poder. O sistema da organização social turco é visto como um feudalismo atrasado, que foi inventado apenas para se cobrarem elevados impostos dos pobres e para se manifestar o poder indiscutivel de um soberano tirano. As razões para tal imagem do Outro vêem-se na impossibilidade dos sérvios de se conformarem com uma ocupação tão longa e cruel, na incapacidade de o povo sérvio se defender com armas adequadas durante muito tempo e no desejo de nos vingarmos do inimigo através da arte, da língua e da literatura popular. Alargando esta hipótese, dentro das personagens da etnia turca podem-se encontrar duas categorias: sultãos e nobres, representados como opressores e injustos e pessoas mais comuns, ou que não pertenciam à alta nobreza, que produzem efeito cómico ou até ridículo por causa da sua ignorância ou falta de inteligência. Todas estas personagens no fim dos nossos contos tradicionais são vencidas de alguma maneira: castigadas, enganadas por um sérvio que

é mais sábio.

Concretamente, na narrativa popular Ero38 e o juíz turco (Ero i kadija)39 representa-se a arbitrariedade e subjectividade do poder turco em relação aos sérvios, porque quando Ero vem avisar o juíz turco sobre a morte da sua vaca por parte da vaca do juíz, o último responde com falta de interesse que gado é gado e que não há justiça para ele. Para testar o seu carácter e honestidade, Ero utiliza a sua esperteza e inverte a situação, dizendo que na realidade foi morta a vaca do juíz e que a culpa foi da vaca do pobre

38 Ero é o nome popular para os habitántes da zona de Hertzegovina, território da actual Bósnia e

Hertzegovina, e considera-se que eles são pessoas muito espertas e de espírito bastante aguçado, que sabem encontrar a resposta certa em qualquer situação. Por isso, nos contos populares de todos os territórios em que a língua sérvia é falada, eles são prototipos de inteligência e sabedoria condensada do povo, que resolvem os problemas em que se encontram com um grande sentido de humor e com facilidade. Nos títulos dos nossos contos populares nunca se vai encontrar a denominação “O sérvio e o turco” por exemplo, mas sim é frequente o uso do Ero, que deixa de ter o carácter local e regional e passa a ter características universais, típicas para todo o povo.

camponês. É neste momento que o juíz turco procura uma solução no livro das leis e Ero impede-o buscar a lei para o gado, para o qual não há justiça. Sabemos que se trata do juíz turco, pela palavra da origem turca kadija, enquanto que, se se tratasse de um juíz da etnia sérvia, a palavra usada para o identificarmos seria sudija, derivada do verbo suditi, que significa julgar. Outro exemplo da superioridade intelectual sobre os representantes da cultura turca é o conto tradicional Ero do outro mundo (Ero s onoga svijeta)40 em que Ero encontra uma mulher turca, contando-lhe que vem do outro mundo. Quando lhe pergunta por um familiar seu que acabava de morrer, ele fala das suas necessidades e menciona que precisa do tabaco e do dinheiro para enviar ao familiar morto da senhora para este não passar dificuldades. A senhora apiadou-se e deu-lhe dinheiro do saco do marido. O marido apercebeu-se do engano e correu detrás de Ero, que no entanto se disfarça de moleiro, e utilizando a sua esperteza encontra uma maneira para ficar também com o cavalo do turco, e ele confirma que foi enganado com a frase final do conto: “Ti si um poslala novaca da kupi kave i duvana, a ja sam um poslao i konja da ne ide pešice.”41

No que diz respeito às outras etnias e culturas que aparecem nas narrativas populares sérvias, é possível por vezes encontrarem-se ciganos, que estão representados de uma forma ambivalente, o que se vê muito bem na história sobre O cigano e o rico- homem (Ciganin i vlastelin): por um lado têm tendência de roubar e enganar os outros, e por outro lado são espertos e têm ideias lúcidas e por isso no fim ficam com os cavalos roubados e ninguém os castiga. Este conto, na nossa opinião serve mais para se mostrar a ingenuidade do rapaz rico, que a maldade dos ciganos. Após uma primeira leitura nossa deste conto, os representantes da etnia cigana pareceram-nos simpáticos enquanto que o rico-homem merecia ser enganado por falta de cautela e pelo desejo de ser servido pelos outros. Embora conheçamos o seguinte conto apenas nas versões orais, e não o tenhamos conseguido encontrar em nenhuma das antologias sérvias consultadas para esta dissertação, consideramos inevitável mencionar a história sobre a língua dos cavalos, na qual um soldado turco (e em outra versão austro-húngaro) faz comentários feios em relação à língua sérvia e comparando-a com a língua dos cavalos. Um monge ortodoxo, símbolo da cultura e sabedoria, que percebeu a língua do soldado, responde- lhe: “Quando os burros compreendiam a língua dos cavalos?”

40 In: Kosijer (2007).

41 (sér) Tu enviaste-lhe o dinheiro para comprar café e tabaco e eu enviei-lhe também o cavalo para não ir

Nesta frase pode-se pensar que se trata de um discurso nacionalista contra o Outro, quando na realidade se pretende desprezar a ignorância e arrogância do opressor e de defender a nossa língua como um aspecto forte da cultura e identidade nacional. Não é por acaso que foram escolhidas precisamente estas duas profissões para os protagonistas, porque a personagem do soldado se relaciona com a força, violência e ocupação de um território e a personagem do monge é sinónimo da paz e da espiritualidade.

O imaginário colectivo do povo português oferece-nos uma ideia do Outro representado pelos Mouros e pessoas da raça negra, geralmente bastante negativa. Como já foi dito no caso dos reis mouros, eles são símbolos da opressão, egoísmo e diversos outros defeitos e características não desejáveis e sempre são opostos aos cristãos e vencidos por eles no fim da história. Sobre a importância da presença árabe na Península Ibérica testemunha também o facto de só na antologia de José Leite de Vasconcellos (1969) existe um ciclo inteiro dedicado aos mouros, que abrange setenta e três narrativas com esta temática. As lendas portuguesas celebram as vitórias dos reis cristãos, descrevem batalhas gloriosas em que o inimigo é vencido, e descrevem os seus rivais como pessoas que mereciam ser expulsas do país. Nestas lutas muitas vezes menciona-se a ajuda de Deus, da Virgem Maria ou algum santo cristão, para se salientar a verdade da fé cristã em relação à muçulmana. Algumas destas lendas são A expulsão dos Moiros, São Martinho etc.

Por outro lado, para se mostrar que a imagem do Outro no caso dos Mouros nem sempre é apenas negativa, podemos utilizar os exemplos Os dois Moirinhos, que trata de um caso de dois jovens, eternos namorados, que aparecem nas noites de lua cheia nos seus trajes tradicionais. Até o sufixo -inhos na designação dos protagonistas sugere uma atitude quase carinhosa do narrador popular com os dois jovens amantes. Existem também muitas lendas dos mouros e mouras encantados, presos nos seus castelos, apaixonados por cristãos a sofrerem pelos amores impossíveis. Tendo analisado uma série de contos com estes protagonistas podemos ver que eles também intrigam a imaginação dos leitores, atribuem-se-lhes características misteriosas, por vezes uma extraordinária beleza física, por vezes poderes mágicos, que por um lado provocam medo e por outro interesse e tentação.

No que se refere aos represententes da raça negra, eles na maioria dos casos são tratados por preto, para se aludir à cor da sua pele e a sua visão é sempre longe das virtudes e comportamentos desejáveis na sociedade: são feios, relacionados com a

magia negra, pessoas capazes de enganar os outros sem remorsos. No mito sobre o surgimento desta raça, Por que há pretos e brancos42 fala-se quase da condenação dos pretos por Cristo. Aqueles que o seguiram e nadaram detrás dele no rio, perderam a sua cor primitiva, e os outros, que ficaram na margem, foram qualificados como menos corajosos. Aqui a cor negra identifica-se com o pecado. De forma nenhuma pensamos que aqui haja declarações explícitas de racismo, porque consideramos que todas as culturas têm a sua forma de ver o mundo e de dar os seus padrões do bem e do mal. Também devemos recordar que os portugueses eram colonizadores de grandes territórios e para justificarem as suas conquistas do Além-Mar deviam-se apresentar como superiores em relação aos conquistados. Foram os portugueses que divulgaram a sua língua, cultura e fé Católica Romana pelo espaço cultural dos negros, alfabetizaram- nos, e utilizando o discurso das pessoas importantes da época da Expansão Portuguesa, “civilizaram-nos” e eis o motivo para um certo orgulho e atitude superior em relação aos subordinados. Uma das possíveis razões para tal atitude dos brancos em comparação com os negros é a de todos os preconceitos e ideias petrificadas provêm de falta de informação e genuíno interesse pelo Outro por parte das maiorias não alfabetizadas, que ouviam os contos tradicionais. É de conhecimento geral que o desconhecido pode assustar as pessoas, criar neles um sentimento de confusão ou desconforto, o que na nossa opinião é exactamente o caso com as pessoas negras nos contos tradicionais portugueses. A maioria das pessoas de cor vieram a Portugal da África, sendo escravos e trazendo consigo os seus costumes e crenças, que no meio cultural europeu pode causar estranheza, ideias superficiais e juízos de valor precipitados. Outro grupo numeroso e importante na história de Portugal, sem dúvida alguma são os judeus, e durante esta investigação interessava-nos muito qual seria a posição dos narradores dos contos populares em relação a eles. Sempre se lhes dirige como a “pretos” e nunca como a negros. Este termo hoje em dia provoca muitas polémicas e que parece ser politicamente incorrecto, era o único na altura em que os contos populares sobre a raça negra surgiram. Para a nossa surpresa, nas cinco antologias usadas para a constituição do corpus para esta dissertação43 não nos foi possível encontrar um único conto cujos protagonistas fossem da origem judáica. As razões para esta atitude podem ser diversas: a comunidade judáica foi sempre isolada da sociedade e por isso se calhar era difícil

42 In: Leite de Vasconcellos (1965).

43 As antologias são de Adolfo Coelho, Consiglieri Pedroso, José Leite deVasconcellos, Carlos de

criarem-se pontos de vista sobre eles na sociedade portuguesa. Por outro lado, sendo eles intérpretes, tradutores, comerciantes e pessoas ligadas ao mundo financeiro, ou em outras palavras, pessoas úteis para o progresso económico de Portugal, não convinha ter-se uma imagem estremamente negativa deles na mente das pessoas. A última hipótese que aqui expomos para a falta da visão dos judeus no imaginário popular é a de eles não imporem a sua religião, língua ou modo de viver a ninguém e não representarem um elemento “perigoso” para a maioria cristã.

2.3. A posição do homem na família sérvia e portuguesa e as suas

Outline

Documentos relacionados