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Dizer o que é o corpo não é tarefa simples para a maioria, principalmente quando as pessoas se dão conta do caráter mutante compromete muitas definições rígidas

CULTURA BAIANA E CULTO AO CORPO

01. Dizer o que é o corpo não é tarefa simples para a maioria, principalmente quando as pessoas se dão conta do caráter mutante compromete muitas definições rígidas

historicamente sistematizadas.

Não me lembro de nenhuma definição boa que estudei na escola. Todas elas são sempre muito bobas. Lembro-me daqueles estudos bem superficiais de ciências que falavam da divisão do corpo humano em três partes, cabeça, tronco e membros. Mas nunca me lembro se havia mesmo algo que dissesse o que é o corpo (Genivaldo).

Apesar dessa dificuldade, existe uma unanimidade na crença de que o corpo é a sua materialidade, mesmo quando alguns se referem à oposição da matéria com o espírito, ao dizer que a corpo é “a morada da alma”.

A escola trabalha e molda o corpo, o comportamento. Às vezes com métodos rígidos, ditatoriais. Mas nada se compara com a força ideológica do controle do corpo que a gente aprende na Igreja. Primeira, a clássica oposição entre matéria e espírito. Depois, a gente aprende que o espírito é o importante e que o corpo é

apenas a sua casa. O corpo é o centro dos desejos e vive todas as tentações do diabo. Nem sempre a gente consegue ser forte e resistir às tentações. Então é preciso menosprezar o corpo, os desejos, e cuidar da salvação da alma. Essa dicotomia provoca uma visão de corpo negativa. Mas deixa claro que a base do corpo é o seu elemento material (Gleciara).

Muitos dizem não acreditar nessa dicotomia. Preferem uma outra concepção mais atual, embora dentro de uma outra visão religiosa, que incentiva os cuidados e a busca do corpo saudável, jovem, belo e forte.

Mesmo quando a religião continua fazendo uma certa diferença entre o corpo e a alma, o discurso já é outro. Hoje se valoriza o corpo cheio de saúde, higiênico, bonito, descontraído e alegre. É pra que a alma também seja assim. De outro lado, muitas pessoas já não estão preocupadas com a visão religiosa do corpo. Não é a alma que precisa estar bem no corpo. Acho que a coisa inverteu. Agora, o corpo precisa estar em forma e, se a alma existir e quiser, pode passar alegremente umas férias ali. Se não existir ou não quiser, o corpo continua belo e sendo a fonte principal de nossos prazeres. Acho que ninguém hoje está preocupado com a salvação da alma. O que a gente quer é salvar a pele. (Marizete).

02.

Fora desse discurso religioso o corpo é cada vez mais celebrado.

O corpo é esse objeto aqui, eterno desconhecido, maltratado e perseguido. Eu quis ser médico por adorar anatomia, por querer desvendar alguns mistérios que envolvem o corpo. Queria entender e desmitificá-lo. Sempre desconfiei daquela coisa de que o corpo deve ser desprezível e a alma glorificada. Daí que eu adoro Reich quando ele diz que o corpo é o inconsciente. A gente pensa que ele é matéria, mas ele é mais que matéria. Não é só o que se pode ver, pegar e dissecar. O corpo é também o que se pensa, o que se comunica em cada gesto, cada postura, cada movimento. O corpo sou eu (Teobaldo).

Nessa celebração, cresce o enfoque no aspecto mutante da corporalidade.

O corpo é o que a gente é. Matéria mudando todo dia. De um lado, é a natureza que se encarrega das mudanças. E a gente envelhece mesmo quando não quer. De outro, a ciência ajuda a pessoa a ter a mudança que a gente quer. Mas que muda, muda. Tudo cresce, envelhece e morre. Eu mesmo continuo crescendo... (risos) nas laterais. Então, o corpo é o jeito que a gente tem de fazer contato com o mundo, é um meio de comunicação (Raimundo).

Não são poucos os que vêem as funções do corpo centradas na busca do prazer e em aspectos comunicacionais. Nelas se resumem as razões da existência humana.

Ih, meu filho, (o corpo) serve pra tanta coisa. Serve pro trabalho, pra locomoção, pra diversão. Serve pra fazer chantagem, pressionar, impressionar. Serve pra seduzir, despertar fantasias. Serve pra enlouquecer ou outros. Serve como apelo de beleza, de perfeição, de adoração. O corpo é pura máquina de comunicação. Sem isso não existe por que existir. Serve pra fazer festa, pra gente correr atrás de uma boa batucada, pra festejar, em porta de igreja, em zoeira de largo, pra dançar e pular atrás de trio elétrico, pra conquistar e esnobar. Serve pro gozo, pra dor, pra fazer amor. Serve pra nos dar prazer e alegrar a nossa vida. Vê, só! Sou quase um poeta do corpo (risos) (Elenilton). E,

Eu acho que o corpo serve pra gente se relacionar com o mundo, com os outros. E a base dessa relação deve ser o prazer. Todo mundo quer levar uma vida cheia de prazeres, fazer mil festas, se meter em mil badalações. Isso é aproveitar a vida, é aproveitar do corpo. Eu quero ter sempre o corpo jovem e forte pra aguentar fazer muita festança, pra que ele me dê muito prazer. Onde tiver bafafá eu quero tá lá, comendo, bebendo, dançando, rindo, paquerando e fazendo sexo (Astrogildo).

Além de meio de comunicação, o corpo também é visto de modo fragmentado. Essa compreensão, para muitos desses baianos, favorece a remodelagem física que as técnicas contemporâneas promovem.

A primeira coisa que aprendi quando comecei a fazer medicina foi que o corpo não é uma unidade. Isso não quer dizer que cada órgão ou membro não esteja intimamente ligado uns aos outros. Significa que tudo pode ser manipulado e instigado a funcionar melhor, a se comunicar melhor. Cada órgão se comunica com os outros. O corpo, como uma colagem sábia da natureza ou da técnica, instiga a comunicação melhor com outras pessoas e coisas... pra mim o corpo é isso. O corpo serve pra isso (Teobaldo).

E também,

O corpo comunica. Cada gesto fala, trai o consciente. É preciso entender as linguagens do corpo. Tudo isso a gente sabe que é verdade. O que seria da psicologia sem essa compreensão do corpo? Agora, quando o corpo passa a ser ele mesmo um monte literal de máquinas inteligentes e de comunicação, com

todas as próteses, reais e virtuais, esse aspecto da linguagem e de sua capacidade de comunicação é elevada à milésima potência (Claudionei).

03.

Muitos consideram que a construção técnica do corpo, com a valorização social da potência, encontra a sua razão de ser não na mera performance física, mas na intensa capacidade de um indivíduo poder interagir, da forma mais completa possível, com os objetos de comunicação que sintetizam e espelham a sociedade tecnológica.

É verdade que o homem quer se revitalizar e aumentar a sua potência para exibir novos dotes físicos. Mas esse é apenas um lado da moeda. O seu lado visível, material. Existe um outro, talvez mais importante e valorizado, que é invisível, imperceptível. Mas que existe e tá lá, no corpo. Inteligência. Bits. O homem-eletrônico tem essa força imaterial que acentua a sua capacidade performática de comunicação. Ele não precisa levantar toneladas. Ele trafega, na velocidade da luz, pelas vias eletrônicas (Belarmino).

Na era da mixagem homem-máquina, a exibição do corpo não se volta apenas para o próprio homem. O corpo-técnico realiza seu espetáculo sobretudo para os objetos técnicos.

O corpo ágil, potente, cheio de vigor com as plásticas e os implantes, parece poder mesmo apresentar a performance desejada. O que temos aí? Um corpo espetáculo. E o espetacular do corpo está na sua capacidade de interagir-se com os meios de comunicação, de ser uma porta aberta para a Internet, por exemplo. Afinal, fora daí, onde encontrar mais lugar para exibir-se? E ainda que encontre um lugar, vai exibir-se pra quem? Pra essa meia-dúzia de pessoas que passeiam indiferentes aqui pelo (shopping) Barra? Bom, eu estou imaginando um mundo onde as pessoas vão estar todas em rede. Então, é nela que o indivíduo vai dar o seu show, fazer a sua apresentação para uma platéia virtual infinita. Não é bonito pensar nisto? (Francelina)

Para alguns, o corpo material parece declinar nesse ato de se redimensionar por completo para interagir-se com as máquinas e redes comunicacionais.

As máquinas que invadem o corpo para potencializá-lo estão perdendo a sua espessura, o seu lado material. Esse lado é cada vez mais reduzido e a gente fala em máquinas-inteligências praticamente microscópicas. É um pequeno chip que implantado revoluciona a capacidade de gerenciamento, memória, inteligência e comunicação do homem. Assim como as máquinas estão

perdendo o seu corpo e se tornando apenas inteligência sintética, o corpo mesmo também pode perder muito de sua materialidade para ser só inteligência. Os computadores vêm nos mostrando isso (Marizete).

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