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Num mundo cada vez mais violento a potencialização do corpo significa também uma questão de segurança.

CULTURA BAIANA E CULTO AO CORPO

11. Num mundo cada vez mais violento a potencialização do corpo significa também uma questão de segurança.

Se eu fosse biônico sairia nas ruas muito seguro de mim mesmo. Não teria medo de nada, de nenhum babaca. Não teria medo de ser assaltado, atropelado,

de levar garrafada, de ficar espremido na multidão na avenida Sete quando o Chiclete2 passa (Graciliano).

E,

É, um babado desse ia ser legal. Eu ia curtir muito com a cara das pessoas. Se eu fosse biônico ninguém ia me fazer de besta. Eu ia botar muito besta pra correr e cagar nas calças. Eu ia me divertir um pouco. Estou cansado de ceder sempre e viver humilhado por ser de aparência tão frágil e de ver gente sendo humilhada e não poder fazer nada (Genivaldo).

Essa perspectiva de potencialização como meio de defesa não convence a todos. Alguns temem que pessoas dotadas de um vigor extraordinário se tornem ameaçadoras.

A saída mais perversa que as pessoas têm encontrado para se defender nas grandes cidades é responder violentamente. Como elas são fracas, se juntam. Formam as gangues. Aqui em Salvador as gangues são mais brandas que em outros lugares, como Los Angeles. Aqui fazem batuque e dançam. Mas de vez em quando o pau quebra também. Então é isso. A gangue é uma forma de corpo social biônico que pode tudo. Enquanto cada um pouco pode. Mas quando cada um for suficientemente potente não teremos uma violência muito mais insuportável? Viveremos mais seguros ou em pânico total? (Marizete).

12.

A mixagem homem-máquina põe em evidência a questão da imagem do corpo. Para os entrevistados, é importante que a mesclagem carne-técnica não deixe o sujeito com o visual mecânico.

Dizem que vão encher o corpo de uma pessoa de máquinas para que ele funcione superbem. Se não desse trabalho e não fosse caro ia ser bom fazer isso no corpo cansado desse velho. Mas eu não ia querer ficar parecendo com uma máquina, com um robô (Juvenal).

As próteses não devem ser visíveis. Daí a valorização dos implantes e das micro- máquinas alojadas no interior do corpo, revitalizando-o por dentro, mas sem comprometer a aparência. Este tema será desenvolvido no capítulo seguinte.

2 O entrevistado se refere ao grupo musical baiano Chiclete com Banana. Essa banda tem a fama de arrastar

acabam imprensando muitos indivíduos nos pontos mais estreitos da avenida por onde passa o trio elétrico. Inevitavelmente várias brigas acontecem por causa dos empurrões.

A miniaturização das máquinas vai permitir que elas se juntem ao corpo. A gente já vê muitas máquinas sobre o corpo, como o celular e até o computador portátil. Se elas ficarem mesmo bem pequenas então vão poder ser instaladas dentro do homem. E aí, o que a gente vai ter? Acho que um homem potente, um corpo bem prático e muito inteligente.

Belarmino

A mixagem homem-máquina coloca em evidência outros circuitos pelos quais as expectativas dos entrevistados transitam. As próteses se alojam sob a pele. Implantes de máquinas microscópicas passam a compor o recheio do corpo. Deficiências e limitações físicas são superadas.

A possibilidade de recorrer às maquinas para revigorar o corpo despertou reações otimistas. A animação diante do tema, a partir da questão: “Como você se sentiria ou reagiria à possibilidade de ser meio eletrônico, um homem-máquina?”, esteve sempre presente e não foram poucos os que se aventuraram em especulações sobre a construção do novo design físico do homem técnico.

01.

Geralmente as pessoas já se acostumaram com o uso das pórteses externas para

amenizar sofrimentos e pequenas deficiências físicas. Nestes casos, elas não são consideradas agressivas. Quando alteram a imagem que cada um faz de si mesmo pode-se recorrer a elementos característicos da moda e adaptar-se às circunstâncias. Muitas pósteses são vistas como acessórios capazes de ajudar alguém a elaborar a aparência de acordo com as tendências tidas como exóticas e atuais.

A gente já vive cheio de próteses, de máquinas. Só que muitas delas ainda estão do lado de fora do corpo. Óculos, aparelhos nos dentes, no ouvido. Isso tudo já é bem comum e até entra na moda. Ninguém reclama. Não precisa de cirurgia, não violenta a identidade de ninguém e até ajuda a criar um visual moderno (Marilene).

Eu uso aparelho nos dentes. Sou um pouco dentuça e quero corrigir esse problema. Nos primeiros dias eu achei estranho, mas agora eu curto. Primeiro porque mostro pra todo mundo que estou batalhando por uma imagem mais legal. Depois, procuro compor um visual que encaixe bem o aparelho. Fiz um corte de cabelo que realça meu rosto, escolhi a armação do óculos de sol com uma imitação do material do aparelho. Fazendo esses arranjos a gente fica bem (Juciléia).

As próteses externas podem ser facilmente acopladas pelo próprio usuário. Uma vez solucionada a deficiência, ainda que provisória, elas podem ser dispensadas. São instrumentos ou acessórios versáteis.

Pense no óculos de grau. Ele pode ser apenas uma cangalha para ajeitar a visão. Uma cangalha mal feita, mal escolhida, que não fica bem no rosto de uma pessoa. Mas também pode ser um bom troço para ajudar a enfeitar uma pessoa. Tem gente que até fica mais bonitinha quando está de óculos. É uma coisa fácil da gente usar e quando cansa ou aborrece a gente tira e pronto (Marinoval). As próteses externas são consideradas simples e práticas. São recursos para ampliar a potência de órgãos e membros.

Se alguém precisa enxergar mais longe ou mais perto pode usar óculos de grau. Se precisa ampliar a audição pode lançar mão de um aparelho de ouvido. Se precisa aumentar sensivelmente a voz, pode usar um microfone e um amplificador. Se precisa ir mais rápido pode recorrer a um carro ou outro meio de transporte. Tudo isso é prótese. Juntam-se a esses instrumentos o telefone celular, a TV de quatro polegadas na palma da mão ou pendurada no pescoço, a agenda eletrônica e o computador portátil no bolso. São máquinas que vivem ao redor do corpo, na periferia. São próteses auxiliares do desempenho físico acopladas fácil e provisoriamente ao indivíduo (Teobaldo).

02.

Por fazerem parte do cotidiano da maioria, as próteses externas são recursos vistos como “naturais”. Mas nem sempre foram assim.

No começo da minha adolescência eu morava numa fazenda, no interior. Era muito difícil ir à cidade, não tinha luz elétrica nem televisão. A gente só via o mundo com os próprios olhos de matuto. Então um dia um tio voltou de São Paulo. Trouxe consigo um óculos grande, preto, de sol. Aquilo para mim era uma maravilha. Mas os adultos da minha família não se conformavam. Naquele tempo era difícil até para quem tinha problemas nos olhos conseguir usar um óculos. Alguém que não tinha nada nos olhos usar um óculos como aquele era

porque desejava atrair desgraças. Teve muita briga lá em casa. Veja só, que bobagem! Mas é sempre assim. O homem se assusta com todo que é novidade. No fundo, todos somos matutões ainda. Mas depois a gente se acostuma. O homem se assusta, mas também se acostuma com tudo (Belarmino).

Não é de hoje que as pessoas aprendem a conviver com as pórteses externas. A íntima convivência com essas máquinas -- que requerem substituições frequentes, ajustamentos periódicos, acoplagens e desacoplagens -- prepara e educa os sujeitos para a aceitação das próteses internas. Elas são precursoras dos atuais implantes.

Veja bem. Antes a lente de grau era aquela coisa grossona, um fundão de garrafa. Agora já é uma película que a pessoa coloca diretamente sobre o olho. E as pessoas adoram usar essas lentes de contato. Não vai demorar muito e a gente vai poder trocar essa película por um chip implantado no olho. Acho que as pessoas não vão chiar muito. Pelo contrário, elas vivem desejando fazer esses implantes. Eu mesmo não penso muito nisso, mas sei de certeza que minha filha ia adorar (Belarmino).

03.

A forma de potencialização do corpo por meio das próteses externas atende a um primeiro nível de mutação física que poderá ser completada com os implantes. Os mais satisfeitos com essa primeira forma estão preocupados com a criação de aparelhos que apresentem modelos mais avançados e acescíveis financeiramente.

Ah, meu filho, se quero ir muito rápido posso comprar um carro moderno japonês ou andar de avião -- até parece que nordestino pobre pode se dar a esses luxos. Mas em tese pode. Em tese se pode tudo. Então, tá. Posso ter uma televisão de última geração, ligada ao moldem, fax, computador, satélite, malhas, redes e as porras todas. Se eu puder fazer isso então vou melhorar o meu dia-a-dia sem precisar violentar radicalmente o meu corpo que Deus deu e muita gente há de comer (risos) implantando nele micromáquinas. Eu desejo é poder ter mais acesso às máquinas e que elas tenham uma aparência mais sedutora (Elenilton).

Muitos vêem as máquinas como parceiras que auxiliam nas atividades cotidianas. Qualquer máquina pode ajudar o homem. O que a gente quer é mais conforto. Aqui em casa a gente sempre tá comprando algum eletrodoméstico novo. Eu e a minha esposa passamos o dia todo no batente. Então tem que ter máquina pra lavar a roupa, pra fazer um café ligeiro e tudo quanto é serviço de casa. Mas acho importante saber onde está a máquina e o que sou eu. Eu não quero saber

de uma batedeira sapateando em cima de mim, em cima da minha barriga. Mas sei que tem gente que deve gostar. As pessoas querem mesmo é ter tudo ao alcance da mão, que é pra não dar mais um passo (Raimundo).

A convivência, cada vez mais próxima e íntima, do homem com a máquina, abre espaço para recentes experiências que se traduzem na interação, na interface, na mixagem. Este é um desejo que outros entrevistados demonstram compartilhar.

Adoro essas maluquices todas porque elas revolucionam o dia-a-dia da gente. Bip. Adoro bip. Adoraria aquela maquininha me chamando e dizendo que alguém quer falar comigo. Adoraria abrir a bolsa, pegar o celular e falar com quem eu quiser de onde eu estiver. Isso não é frescura. É facilidade. E a tecnologia deve nos oferecer é isso mesmo. Então eu sonho em poder ter um monte de maquininhas comigo, me ajudando. Mas eu não vou poder carregar um monte delas, sair por aí feito Carmem Miranda, botando no lugar das frutas um monte de aparelhinhos. Vou ficar parecendo o cão chupando manga, numa esquina, em noite de sexta-feira. Eu sonho em ter um monte de maquininhas bem guardadinhas dentro de mim. Tudo pra me servir, que eu não sou obrigada a ser otária, não é mesmo? (Tertulina)

Outra pessoa completa:

Eu não acho que botar um aparelho no corpo da gente resolva mesmo o problema. Vivo com esses óculos na cara e continuo com o mesmo problema de visão. Isso não basta. É verdade que ele pode ajudar a melhorar a minha visão. Posso ler mais, apurar mais as vistas. Mas isso é pouco. Quando resolvo tirar os óculos a minha deficiência continua lá. A minha visão continua travada. Então eu desejo algo que interfira diretamente na minha deficiência. Quando eu puder ter uma lente implantada talvez isso seja possível (Gleciara).

04.

Com a miniaturização, as máquinas se grudam ao corpo. Muitos reconhecem que já passam os dias carregando um número cada vez maior de equipamentos de processamento e comunicação. A pele humana e a sintética começam a se unificar.

Antes as máquinas eram envolvidas em mistérios e ficavam longe do homem. Só pessoas muito especializadas podiam tocá-las. Esse tempo acabou. Hoje vivem grudadas na gente, em total intimidade. Fáceis de ser operacionalizadas, todos aprendem. Um bom exemplo da intimidade é o que acontece com a lente de contato. Ela elimina a cangalha, a armação, e se gruda no olho. Estou doida pra passar a usar logo as lentes de contato. Então, o que eu ia falando é que as

máquinas estão sendo uma espécie de roupa para as pessoas. Hoje, nós somos uma espécie de vitrine que exibe as máquinas, penduradas no pescoço, presas no braço, como os walkmans, ou nos bolsos, como as calculadoras, agendas eletrônicas, telefones celulares, lap-tops, etc. O nosso visual não é mais feito de cremes. É feito de máquinas. É só observar bem que você vai ver isso (Gleciara).

Como uma segunda pele, um conjunto de máquinas se instala na superfície do corpo, nas formas tradicionais das pórteses. Não identifiquei nenhuma pessoa que se opusesse a essa condição. Ao contrário, são muitas as solicitações para que as máquinas sejam cada vez mais portáteis, facilitando, dessa maneira, o transporte.

A praticidade do modo de vida moderno exige isso. As máquinas não podem mais ser fixas, presas a um determinado lugar, uma casa, um escritório. A gente precisa delas onde está e, por isso, precisa carregá-las. Então, as máquinas devem ser pequenas, leves, de uso fácil e fáceis de ser transportadas com a gente. Imagine que alguém quase no século 21 ainda tenha que ficar preso em casa esperando uma ligação. Não sou eu que devo ficar perto do telefone. É ele que deve estar perto de mim. (Marilene).

A miniaturização das máquinas em níveis cada vez mais microscópicos tende a eliminar a fronteira entre a pele natural e a sintética. Nessa mixagem, os aparelhos tendem a escorregar para o interior do corpo. Essa é a era da implantação de objetos técnicos para revigorar internamente a anatomia humana.

Ufa! É um barato pensar nessas coisas. Veja bem. Com as máquinas menores elas se juntam ao corpo. Quando elas forem menores ainda, a gente vai acabar por engoli-las. E a gente vai saber onde cada sensor está localizado no corpo e poder acessá-lo quando quiser. O que é o bip senão um rastreador eletrônico? Ele serve pra identificar onde a onça e o jacaré do pantanal estão e onde o homem está no momento em que alguém deseja encontrá-lo. É só pensar no bip instalado não mais no cinto da calça, mas no interior da perna. E se pode ser o bip poderá também ser um acelerador, alguma coisa que nos dê mais força e velocidade (Astrogildo).

05.

A expectativa da mixagem homem-máquinas alegra e empolga a maioria dos entrevistados. Alguns destacam que essa mesclagem relativizará preconceitos ligados a um certo modo tradicional e equivocado de se conceber as máquinas.

No fundo, o corpo já está cheio de máquinas. Parafusos e placas de platinas nos ossos, marcapasso no coração, desbloqueadores de veias. Nada disso é novidade. Só que as pessoas não chamam essas coisas de máquinas. Então, existe uma reação preconceituosa à máquina, ao que ela evoca no imaginário do indivíduo. Quando essa bobagem se desfizer as pessoas não só vão admitir que elas já são máquinas mesmo como, talvez, não vão querer ser outra coisa (Belarmino).

Sim. Esse desejo é recorrente. Mas nele está a reivindicação de que as próteses sejam “discretas”: devem se confundir no humano.

Por mais bonitinhas e engraçadinhas que sejam, as máquinas são umas geringonças. E eu não sei mexer muito bem nelas. Eu quero lá saber dessas desgraças dentro de mim! A menos que elas sejam tão disfarçadas que não se pareçam com máquinas (Lucineide).

06.

Os que mais resistem à perspectiva de um corpo mesclado com as máquinas

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