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Desde a Revolução Industrial o aperfeiçoamento dos objetos técnicos se desenvolve, de um lado, na busca da precisão, velocidade e resistência e, de outro, numa

ANTECIPAÇÕES DA ARTE

03. Desde a Revolução Industrial o aperfeiçoamento dos objetos técnicos se desenvolve, de um lado, na busca da precisão, velocidade e resistência e, de outro, numa

crescente tentativa de acentuar o antropomorfismo. Muitas vezes a máquina é vista como uma criança em processo de aprendizagem e adaptação ao mundo dos vivos. Um dos critérios que parece favorecer a convivência entre os dois é uma semelhança cada vez maior da constituição física. São populares os robôs que exibem braços e pernas coordenados em movimentos -- mesmo quando inicialmente desbaratados -- como andar, reproduzir gestos e fala, por meio das conquistas mais recentes da inteligência artificial.

Para Favaro, esse é apenas um lado do antropomorfismo que interpela o corpo e transporta para as máquinas as características humanas. Existe simultaneamente uma outra dimensão inversa: aquela que faz com que o homem deseje e absorva as características

inerentes das máquinas. A idéia é a de que também se veja o homem como um sofisticado mecânico.

A aproximação entre corpo e máquina, particular à atitude inversa do antropomorfismo, ocasiona um efeito de retorno especular que inverte desta forma este postulado de princípio, assimilando a máquina à um reflexo do humano. Então é este último que se torna reflexo para a máquina (Favaro, 1986:46-47).

A construção do corpo técnico carrega um questionamento fundamental sobre a forma física. Traduz o desejo que os homens manifestam em intercambiar com as máquinas as características específicas de cada um. A ambigüidade do antropomorfismo, apontada por Favaro, está no esforço humano em criar máquinas cada vez mais parecidas consigo mesmo e em se transformar num sujeito capaz de absorver o dinamismo dessas criaturas, inclusive o de sua forma física mutante. O antropomorfismo é a evidência da aspiração humana em promover a simbiose entre os sujeitos e os objetos técnicos.

04.

Baudrillard está de acordo com esse duplo antropomorfismo. Ele é importante para promover a mutação corporal, das máquinas e dos homens, e também para alterar a percepção que muitos ainda têm das aparelhagens.

A concepção da aparência metálica das máquinas é resultante de uma visão mecanicista, típica da era das próteses industriais. O receio de que a construção do corpo técnico dê ao homem a aparência de “RoboCop” está centrado no entendimento de que as próteses são estranhas, artificiais e, principalmente externas, com visibilidade total da materialidade que compõe a sua corporeidade.

No presente, o duplo antropocentrismo parece já ter cumprido a sua função. Ele se desenvolveu no período em que o corpo do homem era independente do corpo da máquina, por mais que certas semelhanças existissem entre eles. Mas esses corpos agora não estão mais distantes um do outro, são cada vez mais interdependentes, mesclados, imiscuídos. A presença de um no outro tende a não deixar vestígios. É por isso que Stiegler escreve:

A vida é um processo de evolução que se caracteriza, na verdade, por uma intensa diferenciação que pára no homem. O que faz o dinamismo do homem é,

portanto, a sua técnica, e não seu princípio de evolução corporal entre hoje, novamente -- mas, desta vez, pela técnica --, em uma fase de transformação, como se a diferença entre a técnica e o ser vivo tendesse a se apagar. Hoje, na verdade, parece que a técnica está em vias de ser interiorizada pelo próprio ser vivo (Stiegles, 1996:171).

Numa era que promove a mixagem homem-máquina, aquela anterior e distante visão do indivíduo fraco diante de aparelhagens potentes já não faz mais sentido. Não existe mais espaço vazio entre o humano e o técnico. É o que diz Latour:

Creio que cometemos dois erros simétricos: um diz respeito à definição do humano, visto como uma coisa frágil e maleável, como manteiga ou mel, que seria necessário proteger da objetivação. O outro se refere aos objetos técnicos, sobre os quais se pensa terem uma eficácia ainda mais forte e um proveito ainda maior porque estão protegidos da paixão, da subjetividade ou dos interesses sociais. Se partirmos desses dois pólos -- os humanos que é preciso proteger e vigiar como leite no fogo, e os objetos técnicos que é preciso proteger da dominação pelos interesses políticos -- será muito difícil, em seguida, juntá-los, pois eles não terão mais nenhuma relação entre si (Latour, 1996:155-6).

Onde existir alguma distância entre o humano e o técnico, a projeção antropológica floresce. De outro lado, quanto mais os dispositivos de um se fundem no do outro maior é a impossibilidade de mantê-la.

05.

Não é difícil perceber o quanto os objetos técnicos estão perdendo a sua materialidade. A máquina energética, típica da visão biocibernética, busca o corpo ideal fora de um núcleo material. É a sua própria corporalidade que está sempre em xeque. Agora, o corpo do homem-máquina é uma construção telemática. Ele passa a ser concebido como estoque de informação e de mensagem, substância informática, e o corpóreo tende a se desfazer. Nas palavras de Baudrillard:

Estamos na era das tecnologias brandas, software genético e mental. As próteses da era industrial, as máquinas, ainda voltavam ao corpo para modificar-lhe a imagem, elas mesmas eram metabolizadas no imaginário, e esse metabolismo fazia parte da imagem do corpo. Mas quando se atinge um ponto sem volta na simulação, quando as próteses infiltram-se no coração anônimo e micromolecular do corpo, quando se impõe ao próprio corpo como matriz,

queimando todos os circuitos simbólicos ulteriores, sendo qualquer corpo possível nada mais que sua imutável repetição, então é o fim do corpo e de sua história... (Baudrillard, 1992:196).

A dimensão material da máquina não mais se expande; ela se encolhe, torna-se finita, restrita, cada vez mais imperceptível. Ao mesmo tempo, a sua dimensão imaterial, lógica, passa a ser a principal referência. Suas novas categorias consubstanciais são a energética e o movimento, isto é, a linguagem (Favaro, 1986:36).

Para Baudrillard, a ciência bio-fisio-anatômica deu início ao processo de decomposição do corpo ao dissecar órgãos e funções. A conseqüência lógica desse processo não poderia ser outra que a desmaterialização das próteses, isto é, investir na genética microcelular.

Na visão funcional e mecanicista cada órgão não é ainda mais que uma prótese parcial e diferenciada: já simulação, mas “tradicional”. Na visão cibernética e informática é o mais pequeno elemento indiferenciado, é cada célula de um corpo que se torna prótese “embrionária” desse corpo. É a fórmula genética inscrita em cada célula que se torna a verdadeira prótese moderna de todos os corpos. Se a prótese é vulgarmente um engenho que supre um órgão deficiente ou o prolongamento instrumental de um corpo, então a molécula ADN, que encerra toda a informação relativa a um corpo, é a prótese por excelência, que vai permitir prolongar indefinidamente este corpo por si próprio -- não sendo ele próprio mais que a série indefinida de suas próteses (Baudrillard, 1991:127). Ao deixar para trás a sua base material mecânica, as próteses abandonam também a superfície do corpo e, consequentemente, a sua antiga e real condição de modificar a aparência dos indivíduos. A partir daí torna-se preciso investigar como o corpo vive a metamorfose de ser concebido como prótese de comunicação, substância informática, estoque de informação.

06.

Baudrillard faz uma distinção entre as próteses exotécnicas e as esotécnicas. As

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