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Materiais/brinquedos menos presentes na educação infantil, mas com maior proximidade à natureza

NATUREZA PROGRAMA ANO TÍTULO AUTORIA ORIENTAÇÃO INSTITUIÇÃO Dissertação

5.2 Repensando materiais e brinquedos na educação infantil para promover mais encontros entre crianças e natureza

5.2.2 Materiais/brinquedos menos presentes na educação infantil, mas com maior proximidade à natureza

Além dos materiais/brinquedos estruturados, objetos e instrumentos, que, como visto, podem adquirir abertura a partir das ações das crianças, há outros materiais que já apresentam uma constituição menos fechada. Esses materiais são chamados por Guerra (2013; 2017b) e Guerra e Zuccoli (2013; 2014) de materiais não estruturados. Guerra (2013) explica que o termo “não estruturado” não indica que sejam materiais sem estrutura – até porque são materiais que apresentam de forma concreta, a partir de estruturas físicas.

Conforme Guerra e Zuccoli (2014), os materiais não estruturados não têm, necessariamente, propósitos educacionais fechados, permitindo combinações que

sejam mais abertas, flexíveis e compostas e levando a um pensamento mais criativo. Tonucci (2008), ao se referir à argila, à madeira e à cor (tinta), argumenta que são materiais que, em si, não são nada, não tendo significados próprios e esperando que quem o utiliza que lhe atribua forma e significado. A partir do que propôs Gibson (1986), podemos dizer que os materiais não estruturados propiciam mais affordances quando utilizados pelas crianças.

Guerra (2017b) identifica dois tipos de materiais não estruturados quanto à sua origem: os naturais e os artificiais, esclarecendo que essa diferença é cultural e que a utiliza no sentido de demarcar aquilo que pode ser encontrado na natureza (materiais naturais) e aquilo que é resultado da produção humana, neste caso, geralmente industrial (materiais artificiais). A autora propõe como materiais naturais tudo aquilo que advém do mundo animal, vegetal ou mineral, e que, em grande parte, se constituiu como seres vivos (GUERRA, 2017b). Citando as folhas das árvores como exemplo, ainda destaca que são elementos em que se identificam contínuas trocas de energia, informação e matéria com o ambiente e que se constituem processualmente, não tendo, necessariamente, um fim no seu percurso de vida67 (GUERRA, 2017b).

As professoras do G2/G3 comentam sobre a presença de materiais naturais no seu trabalho pedagógico:

A gente vai pensando ainda mais esse ano essa experimentação de tudo que é resto, de tudo que é descartável, e tentando constituir uma aproximação (Professora G2, entrevista).

Acho que esse trabalho no espaço da rua possibilita também esse contato diário das crianças com as coisas da natureza. Então, essas folhas secas elas são brinquedo, essas folhas secas vêm pras nossas... pras criações das crianças, vêm pra experimentação, elas se transformam em materiais pedagógicos (Professora G3, entrevista).

Suas falas rompem com a ideia de que materiais pedagógicos precisam ser somente aqueles vendidos pelo mercado, trabalhando com elementos naturais, que vêm e voltam para a natureza e podem ser selecionados pelas próprias crianças. A ideia dos materiais não estruturados artificiais também se apresenta sob a forma de materiais que, nesse momento do seu ciclo de produção, também não precisam ser comprados.

Guerra (2017b) conceitualiza-os em materiais recicláveis e materiais advindos de descarte industrial68. Os materiais recicláveis têm como característica o fato de já terem atingido o término do seu ciclo vital, isto é, de que foram projetados e utilizados para uma determinada função, que se mantém presente mesmo após essa utilização (GUERRA; ZUCCOLI, 2014; GUERRA, 2017b). Alguns materiais recicláveis bastante presentes nas escolas são garrafas pet, potes de produtos alimentícios ou de higiene reaproveitados, tampas dessas garrafas e potes, caixas de ovos e caixas de leite.

Já os materiais de descarte industrial são – geralmente e paradoxalmente – novos, resultando de um processo produtivo que os considerou como inúteis ou supérfluos, seja por serem excedentes, restos da produção de outros objetos ou materiais defeituosos ou com erros (GUERRA, 2017b). Não são objetos em si, ou materiais completos, mas partes de materiais – até irreconhecíveis ou não imediatamente definíveis –, que não carregam uma função intrínseca (GUERRA, 2013). Diferem-se dos objetos e materiais recicláveis por não carregarem tantas marcas do seu passado e apresentarem múltiplas variações – por exemplo, quanto ao seu formato, matéria-prima, cor, peso, tamanho, textura e som –, sendo mais abertos e flexíveis à interpretação, à polisensorialidade e à polifuncionalidade (GUERRA, 2013). Em outras palavras, as quantidades de affordances em materiais não estruturados se ampliam.

A utilização desses materiais vem sendo documentada há alguns anos em escolas da Itália, onde, desde 1996 passaram a existir Centros de Reciclagem Criativa – Remida, a partir de um projeto entre escolas e prefeitura de Reggio Emilia com a empresa então responsável por serviços relacionados a gás e meio ambiente da região (GIACOPINI, 2007). Materiais como pedaços de madeira, metais, plástico, borracha, tecido, cartolinas, vidro, papéis, caixas e cordas que seriam descartados transformam-se em recursos para a área da educação, carregando um valor ético, estético, econômico e ecológico (GIACOPINI, 2007).

Uma característica comum aos materiais não estruturados é uma sustentabilidade que é intrínseca à sua natureza (GUERRA, 2017b), como o fato de

68 A autora utiliza os termos recycled materials (GUERRA, ZUCCOLI, 2014) / materiali di recupero (GUERRA, 2017b) e industrial waste materials (GUERRA, 2013) / industrial discards (GUERRA, ZUCCOLI, 2014) / materiali di scarto industriali (GUERRA, 2017b). Opto por utilizar os termos recicláveis, por se tratarem de materiais ainda não reciclados, mas com potencial para tal, e descarte industrial – em vez de resíduo industrial – uma vez que resíduo industrial é comumente compreendido como “aquele que é produzido pelas indústrias, consideravelmente nocivo ao meio ambiente e/ou à saúde do homem” (MICHAELIS, 2019a).

que não necessariamente precisam ser comprados, pois advêm da natureza, foram objetos já utilizados ou são sobras de empresas, e de que contribuem para a preservação do planeta ao não requerem o consumo de novos materiais, pois se trata de materiais já existentes que seriam descartados ou materiais naturais, que voltam para a natureza. A já apresentada proposta de Holm (2015), no campo das Artes, se aproxima desse entendimento quanto aos materiais propostos.

Além disso, os materiais não estruturados são materiais democráticos69, que convidam as crianças à participação e expressão, não sugerindo diferenciações quanto ao uso entre meninos e meninas ou crianças de diferentes classes sociais, como ocorre com materiais e brinquedos de diferentes empresas e com cores, personagens ou imagens estereotipadas. Esses materiais não estruturados foram encontrados na escola investigada, em razão da compreensão das professoras:

Partimos da compreensão de que o uso de materiais que ultrapassem o que comumente definimos como brinquedo – tecidos, restos de madeira, folhas, gravetos, pedras - objetos mais livres em relação ao conteúdo social implícito, assumem diferentes funções em curto espaço de tempo, proporcionando maior liberação da criança do plano imediato (PLANO DE TRABALHO G2/G3, 2018, p. 5).

Porém, materiais não estruturados não vêm sendo muito explorados nas escolas: os naturais, embora reconhecidos na literatura, em parte não estão presentes devido ao afastamento com relação à natureza (GUERRA; ZUCCOLI, 2014), o que fica mais acentuado com relação a crianças bem pequenas e bebês70, e os de descarte, conforme analisa Guerra (2013) porque proporcionam resultados difíceis de prever, o que não os torna muito desejados pela sua imprevisibilidade, e, também, porque não foram projetados para fins didáticos e ainda não são enxergados como potenciais para tal – características que também podemos encontrar nos naturais. Esses materiais incomuns nas escolas, que não têm um fim específico, podem ser considerados como o que a autora chama de materiais não convencionais (GUERRA, 2013; 2017a).

Os materiais naturais e de descarto – lixo da história, na perspectiva benjaminiana (BOLLE, 1984), desperdícios (BARROS, 2008), restos (PIORSKI, 2013)

69 Guerra (2013a apud GUERRA, 2017b) aponta uma experiência democrática entre adultos e crianças.

70 Conforme analisado no capítulo “4 Afastar as crianças da natureza e afastar a natureza das crianças:

a diferença geracional de bebês e crianças bem pequenas e a ausência da natureza na educação infantil”.

– são identificados pelas características recém discutidas quanto à sua flexibilidade e abertura em termos de affordances e pelo fato de não serem materiais pedagógicos propriamente ditos. Guerra (2017b) aponta que, pelas suas características, esses materiais podem ser considerados como loose parts, ou partes soltas, a partir da teoria lançada pelo arquiteto Simon Nicholson (1972).

A teoria das partes soltas propõe que “em qualquer ambiente, tanto o grau de inventividade e criatividade como a possibilidade de descoberta são diretamente proporcionais ao número e ao tipo de variáveis contidas nele” (NICHOLSON, 1972, p. 6, tradução nossa). Tais variáveis são justamente o que ele chama de partes soltas, que se contrapõem a ambientes assépticos, estáveis e com estruturas fixas (como as de materiais estruturados), que são características encontradas mesmo em parques infantis.

Na mesma linha de pensamento, Lima indica que é necessário “deixar o espaço suficientemente pensado para estimular a curiosidade e a imaginação da criança, mas incompleto o bastante para que ela se aproprie e transforme esse espaço através de sua própria ação” (1989, p. 72). Por isso, mesmo os parques precisam ser constantemente pensados e planejados, pois uma significativa quantidade e variedade de partes soltas provoca uma significativa quantidade e variedade de affordances.

A essência desse tipo de materiais, mais abertos, também se aproxima de outros conceitos, como open-ended materials – materiais com possibilidades e finalidades em aberto (GUERRA, 2017b); materiais potencializadores – que podem ser potencializados em termos de ofertas de possibilidades e de experiências sensoriais/sensíveis, conforme Mallmann (2015); e brinquedos de largo alcance, que, diferentemente de brinquedos especializados, podem participar de variadas ações (LEONTIEV, 1998), o que podemos pensar também com relação aos materiais. Guerra ainda fala em materiais inteligentes, porque favorecem, sugerem ou impedem ações e pensamentos a quem interage com eles (2017a), considerando, também, as ações das crianças. Como indica a autora, trata-se de uma matéria, ou de materiais, que influenciam, que afetam.

A natureza, então, por si só já é um coletivo de partes soltas (NICHOLSON, 1972), materiais em aberto (GUERRA, 2017b), potencializadores (MALLMANN, 2015), de largo alcance (LEONTIEV, 1998), não estruturados (GUERRA; ZUCCOLI, 2013; 2014), inteligentes (GUERRA, 2017a). Guerra utiliza como exemplo desses

materiais “pedras, galhos, troncos, areia, cascalho, tecido, caixas, corda, que não têm um uso definido e unívoco e que podem ser movidos, combinados, transformados à vontade porque [são materiais] ‘soltos’, ‘desamarrados’, ‘livres’” (2017b, p. 26, tradução nossa).

Louv apresenta outros exemplos de elementos e espaços, como “água, árvores, arbustos, flores e capim; um lago e os seres vivos que vivem nele; areia (melhor se for misturada com água); lugares para entrar, sentar e se esconder; estruturas que ofereçam privacidade e paisagens” (2016, p. 108), arriscando-se a dizer que “a natureza, que estimula todos os sentidos, continua sendo a fonte mais rica de partes soltas” (2016, p. 108). Destaco mais especificamente, por meio de algumas fotografias capturadas a partir das observações, a versatilidade da elementos da natureza que estiveram presentes nas propostas das professoras e nas brincadeiras das crianças, além dos já apresentados nas Figuras 10, 11, 12 e 13:

Figura 23 – Fotografia de uma das crianças colocando o pé na poça.

Fonte: A autora.

Figura 24 – Fotografia de um dos bebês explorando a mistura de água com areia. Fonte: A autora.

Figura 25 – Fotografia de galhinho encontrado e que passou a ser explorado por uma das crianças. Fonte: A autora.

Figura 26 – Fotografia de uma grande folha encontrada e carregada por várias crianças. Fonte: A autora.

Os elementos encontrados tornam-se materiais que alimentam ações tanto das professoras, quanto das crianças, mas ainda se faz necessário destacar algumas características destes materiais não estruturados quando incorporados às brincadeiras das crianças, o que faço na sequência do texto.