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A medida de acolhimento residencial

No documento Dina Elisabete Brás Silva (páginas 56-62)

Parte I. A família: de lugar de afetos a contexto de risco e perigo

Capítulo 3: O outro lado da família: de contexto de proteção a contexto de risco e perigo

4.2. A medida de acolhimento residencial

A vulnerabilidade vivenciada pelas crianças e jovens vítimas de situações que os colocam em risco e em perigo produz efeitos que poderão revelar-se irremediáveis: “De facto, os afectos de perda, solidão e vazio são sempre os mais complicados de lidar e quando sentidos em relação aos Pais podem levar a uma verdadeira «ansiedade impensável».” (Strecht, 2000, p. 74).

Strecht (2000) reflete sobre alguns aspetos que, no seu entender, surgem como efeitos prejudiciais originados pelas situações de risco e perigo, como é o caso da imaturidade e desorganização das crianças, atrasos ao nível do desenvolvimento e da linguagem, as dificuldades de aprendizagem, o pensamento abstrato pobre, problemas ao nível comportamental (com possibilidade de existência de comportamentos delinquentes), depressão, baixa autoestima e dificuldades de sociabilização.

A verdade é que “(…) estas crianças e jovens ao longo do tempo, foram expostas a várias mudanças e sujeitas a inúmeras ruturas, potenciadores de complicações relacionais graves nas diversas etapas do seu desenvolvimento, na sua identidade e sentido de pertença (…).” (I.S.S., 2015, p. 24). A institucionalização poderá, também, provocar estes efeitos negativos, no sentido em que, por exemplo, a passagem de um CAT para um LIJ (ambas as denominações utilizadas anteriormente à alteração da LPCJP), transforma a realidade e as vivências da criança/jovem, originando, também, ruturas nos laços afetivos, quer com outras crianças/jovens, quer com adultos significativos.

Na reflexão sobre os efeitos nefastos da institucionalização é, também, importante analisarmos as caraterísticas das instituições que funcionam de forma fechada e com normas muito rígidas. Sobre este assunto, Goffman (1961) propõe o conceito de “instituição total”, que representa uma realidade vivida em muitas organizações de acolhimento de crianças e jovens em situação de risco/perigo, e que se caraterizam por sistemas de funcionamento muito rígidos e autoritários (por exemplo: horários rigidamente estipulados, ausência de liberdade e privacidade individual, ausência de contacto com o exterior, etc.). Estas instituições totalitárias caraterizam-se, essencialmente, pela rutura com o meio de origem dos seus utentes, neste caso das crianças/jovens. Seguindo o pensamento de Goffman (1961), uma instituição totalitária

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é aquela em que os indivíduos se encontram separados da sociedade exterior, vivendo sob normas formais e rígidas que lhes são impostas. Um exemplo que espelha a realidade de uma instituição totalitária são as prisões, conventos e hospitais psiquiátricos (Goffman, 1961). No entanto, esta é uma realidade presente em variadas instituições de acolhimento de crianças/jovens.

Este tipo de instituição caracteriza-se pelo seu fechamento face ao exterior, isto é, existe como que uma barreira entre o mundo da instituição e o mundo social exterior, sendo que os seus utilizadores deixam de contactar com o mundo em que estavam inseridos anteriormente, muitas vezes até com os elementos da sua família. As instituições totalitárias caracterizam-se, também, pela divisão entre “internados”, que são considerados seres inferiores, fracos e culpados, e “equipa dirigente ou de supervisão”, que detém o poder, revelando-se, por isso, superior e correta, existindo, pois, uma visível distância social, não sendo possível a mobilidade entre os estratos. (Goffman, 1961)

Neste sentido, é importante compreendermos que existem instituições de acolhimento de crianças/jovens que têm estas caraterísticas e, por isso mesmo, provocam efeitos nocivos que poderão comprometer o seu bem-estar e desenvolvimento. Posto isto, vejamos os principais efeitos originados por este tipo de instituição.

A entrada numa instituição supõe, à partida, que os indivíduos possuem um mundo anterior e uma cultura formada. Nas instituições totalitárias, os modos de funcionamento não permitem que o indivíduo acompanhe a evolução social do seu contexto cultural anterior, contribuindo, assim, para o que Goffman (1961) designa por “desculturamento”. Quer isto dizer que o indivíduo, quando entra para uma instituição, tem uma identidade construída com base nos elementos sociais que adquiriu no seu mundo cultural anterior, sendo que, na instituição totalitária, o mesmo acaba por sofrer o que Goffman (1961) designa por “mortificação do eu”. Isto é, a existência de uma barreira entre o mundo da instituição e o mundo exterior leva o indivíduo a modificar as suas crenças sobre si próprio e sobre outras figuras significativas: existem restrições de horários e de condições quanto às visitas (por exemplo, o visitante não poder estar num local privado com o visitado) (Goffman, 1961). Um outro efeito provocado pelas instituições totalitárias é o que Goffman (1961) assinala como “despojamento do papel”, em que os indivíduos deixam de poder exercer os papéis que antes exerciam no mundo exterior à instituição.

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Podemos, pois, constatar que nas instituições totalitárias a liberdade é coartada. Um outro aspeto que o aludido autor menciona na sua obra é o facto de os indivíduos serem agrupados com base em certos critérios (por exemplo, escalão etário, racial ou étnico), o que proporciona a perda da autoidentificação (Goffman, 1961).

A retirada dos bens pessoais e a impossibilidade de os ter faz com que o indivíduo deixe de ter controlo na forma como se apresenta aos outros. Isto é, todos nós precisamos de bens que permitam que nos apresentemos de forma adequada nas diversas situações da vida, sendo que, no interior de uma instituição totalitária, os sujeitos não usufruem dessa condição; esses bens pessoais são substituídos por outros, oferecidos pela instituição, e que são iguais para todos os usuários. Portanto, as instituições totalitárias não permitem que cada utilizador tenha o seu espaço e os seus bens privados, traduzindo-se na falta de privacidade e liberdade. A perda do poder de decisão é outro aspeto que caracteriza o mundo das instituições totalitárias, assim como a “mortificação do eu” a nível físico, ou seja, as agressões físicas que os indivíduos provocam a si próprios. (Goffman, 1961)

As aludidas características das instituições totalitárias podem também verificar-se nas instituições de acolhimento de crianças e jovens. A verdade é que, quando estes são retirados às famílias e são colocados numa instituição, sofrem a denominada “mortificação do eu”, no sentido em que, muitas vezes, deixam de ter contacto, por completo, com os familiares e com o contexto em que estavam inseridos. A falta de privacidade (por exemplo, o facto de a criança/jovem partilhar o quarto com outra criança/jovem), a rutura com o mundo exterior, a impossibilidade de ter na sua posse bens pessoais e de poder decorar o seu espaço de acordo com os seus gostos e interesses, são alguns dos efeitos nefastos que ocorrem em algumas instituições de acolhimento de crianças e jovens.

Posto isto, é relevante refletirmos sobre o papel das instituições de acolhimento de crianças e jovens no desenvolvimento integral das crianças/jovens que acolhe, assim como na promoção da sua autonomia, de modo a compreendermos se a instituição em análise apresenta-se como uma verdadeira experiência enriquecedora ou se, pelo contrário, assume uma postura de instituição totalitária.

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Sousa (2013)19 considera que o papel das instituições de acolhimento de crianças

e jovens em risco é o de preparar os menores para a vida quotidiana, assim como estabelecer ligações e estruturas, o mais aproximado possível, a um ambiente familiar. O grande desafio do acolhimento institucional é garantir estabilidade e segurança às crianças/jovens acolhidos, bem como promover a sua inserção na sociedade (Sousa, 2013). Na investigação realizada, esta autora constatou que é fundamental a inserção das crianças/jovens em escolas exteriores à instituição, pois proporciona-lhes o contacto com diferentes realidades e experiências. Ou seja, as instituições de acolhimento, na sua ação, deverão promover o estabelecimento de relações sociais significativas, quer seja com outras crianças/jovens, quer seja com adultos do meio escolar, como por exemplo os professores (Sousa, 2013). Por outro lado, a autora refere que estas instituições assumem, também, um papel de mediação entre a criança/jovem e a sua família, no sentido de que a intervenção deverá passar não só pela proteção da criança/jovem, mas também deverá ser realizado um trabalho com a família de modo a capacitá-la para o exercício das suas responsabilidades parentais para, assim, poder receber os seus elementos menores.

A institucionalização origina sentimentos diversos, pelo que a própria instituição assume o papel de amenizar os efeitos desta situação, proporcionando uma variedade de atividades de lazer, mas também atividades que promovam a aprendizagem dos elementos necessários para uma vida autónoma. Nas crianças/jovens não institucionalizados, o desenvolvimento da autonomia, proporcionado através da socialização, ocorre com recurso aos pais e familiares próximos, enquanto que no caso das crianças/jovens institucionalizados, este processo terá de ocorrer com o apoio dos profissionais da instituição. A instituição deverá, então, proporcionar estabilidade e um ambiente familiar às crianças/jovens que acolhe (Sousa, 2013).

Assim, a socialização destes menores pode apresentar-se como um processo demorado e muito árduo, pois os profissionais da instituição têm a tarefa de (re)educá- los e prepará-los para que ajam de acordo com as expectativas da sociedade, mas nunca esquecendo a sua cultura de origem, para que se mantenha uma certa integralidade da vida da criança ou do jovem (Sousa, 2013). Não obstante a dificuldade de transformação da estrutura subjetiva de um indivíduo, o seu habitus, no caso destes

19 A autora realizou um estudo em duas instituições de acolhimento a crianças e jovens (Aldeia SOS e

Casa do Vale). Nesse estudo, procurou compreender o papel e a ação destas entidades, através do discurso dos profissionais que lidam diariamente com esta problemática.

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jovens é necessário um investimento duradouro e assente em relações afetivas de modo a gerar oportunidades de inserção social.

As instituições que acolhem crianças e jovens devem promover um ambiente que permita superar as perdas e garantir a possibilidade de construção de um projeto de vida, ou seja, trabalhar, em primeiro lugar, no sentido da eliminação do risco e do perigo e, de igual importância, no desenvolvimento da autonomia.

No seguimento desta ideia, Raymond (1996) sugere que o papel das instituições de acolhimento de crianças e jovens é o de oferecer proteção, segurança e estabilidade, de modo a controlar possíveis obstáculos que surjam, provenientes do meio exterior. Esta autora (idem) considera que a instituição deverá promover um contexto favorável às vivências próprias das idades dos jovens acolhidos, assim como oferecer um ambiente regrado, pois estes jovens demonstram necessidade de encontrar na instituição um conjunto de regras que lhes permita uma certa previsibilidade no seu quotidiano, que anteriormente não experienciaram.

Ainda na perspetiva da mesma autora, a instituição desempenha uma função de contenção, na medida em que procura transformar as experiências negativas dos jovens em conceções aceitáveis, podendo contribuir também para a transformação da sua realidade interna e externa (Raymond, 1996). Por outro lado, é importante que a educação destes jovens promova o desenvolvimento da sua personalidade, o que contribui para a sua socialização, não esquecendo o contexto cultural do qual os jovens são provenientes. No fundo, a principal função da instituição é permitir que os jovens realizem as aprendizagens necessárias para a vida (idem).

Tendo em conta todos os conceitos apresentados, assumimos como hipótese

central que a institucionalização constitui uma medida que elimina o risco e o perigo e

que promove a autonomia e o desenvolvimento psicossocial. Para que tal possa ocorrer, é necessário que os contextos físico, normativo e afetivo/social da instituição sejam adequados. Assim, é fundamental que os modos de organização e de funcionamento da instituição gerem um ambiente saudável e seguro, permitindo o estabelecimento de relações afetivas significativas, a aprendizagem de regras, valores e atitudes, o desenvolvimento de competências e habilidades, por via, quer das rotinas diárias, quer dos lazeres, em suma, a construção de projetos de vida (ver figura 1).

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Figura 1. Modelo de análise

Condições objetivas de vida das familias

(relação com o mercado de trabalho, rendimentos, acesso à educação, condições de ha itação…) Contexto físico (recursos existentes - económicos, humanos, infra- estruturas) Situações de risco e perigo Institucionalização Contexto normativo (modos de funcionamento e de organização - normas e regras, valores…) Promoção da autonomia e do desenvolvimento psicossocial Condições subjetivas de vida da família (habitus , modos de pensar, sentir e agir, relações afetivas, condições de vi ulação…) Contexto afetivo/social (construção de relações afetivas; vinculação; segurança e proteção; relação o a o u idade…) eliminação do risco/perigo

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No documento Dina Elisabete Brás Silva (páginas 56-62)