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1.4 O direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado na Constituição

1.4.1 O meio ambiente como direito e dever (direito-dever) fundamental

A norma encartada no caput do art. 225 da CF/88 é expressa ao afirmar, de um lado, que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, e, de outro, que se impõe ao Poder

Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras

gerações.

Percebe-se, assim, que a Constituição prevê uma dimensão objetivo-subjetiva para o direito fundamental em apreço71, isto porque, de uma só vez, a norma assegura a possibilidade de se invocar a tutela jurisdicional para a defesa de pretensões individuais relacionadas ao direito de desfrutar de um meio ambiente sadio e essencial a uma vida saudável (todos têm direito), como também, na medida em que encara o macrobem ambiental como importante em si (essencial à sadia qualidade de vida), sendo enquadrado como bem de uso comum do povo, merecendo a proteção tanto do Estado como da sociedade, enseja o direito e o dever de preservação, conservação e melhoria do meio ambiente independentemente da identificação, em determinado caso concreto, de violação de um direito de indivíduos ou de um grupo deles.

Nesse sentido, pode-se, com Rubens Morato Leite, afirmar que a Constituição brasileira de 1988 incorpora em seu texto a forma mais completa de tutela do bem ambiental. Vejam-se as suas palavras a respeito da dimensão objetivo-subjetiva da norma constitucional sob comento:

Analisando o reconhecimento do direito ao ambiente e sua inserção nos textos constitucionais, pode-se vislumbrar a existência de, precipuamente, três posicionamentos. O direito ao ambiente aparece ora positivado numa dimensão objetiva, ora numa subjetiva, ora reunindo ambas as dimensões.

Pela dimensão objetiva, o direito ao ambiente equilibrado é protegido como instituição. Embora a proteção do ambiente ainda esteja vinculada ao interesse humano, ela se dá de forma autônoma, ou seja, sem que confira ao indivíduo um direito subjetivo ao ambiente de forma exclusiva.

Com relação à segunda dimensão de proteção do direito ao meio ambiente equilibrado – apenas subjetiva -, vislumbra-se um caráter tão somente antropocêntrico, em que o ambiente é protegido não como bem autônomo, mas a serviço do bem-estar do homem, conforme já mencionado. Para tanto, atribui-se um direito – o de viver em um ambiente saudável – ao indivíduo (seja individual, seja coletivamente) […]

A dimensão objetivo-subjetiva do ambiente é a mais avançada e moderna, porquanto repele a proteção ambiental em função do interesse exclusivo do homem para dar lugar à proteção em função da ética antropocêntrica alargada. Pugna essa concepção

71 BELLO FILHO, Ney de Barros. Direito ao ambiente: da compreensão dogmática do direito fundamental na

pelo reconhecimento concomitante de um direito subjetivo do indivíduo e da proteção autônoma do ambiente, independentemente do interesse humano [...]. A análise do caput do art. 225 da Carta Magna, já referido, demonstra, de maneira clara, a concepção jurídica conferida ao bem ambiental pelo Estado brasileiro. Diferentemente do que fizeram outras Constituições, não se restringiu a conferir o meio ambiente saudável como direito subjetivo. Em que pese o fato de também ter adotado tal aspecto […], a Constituição brasileira contemplou o meio ambiente como bem que perpassa a concepção individualista dos direitos subjetivos, pois o reputou como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.72

A fundamentalidade material do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado pode ser extraída da sua profunda ligação com direitos fundamentais como a vida e a saúde73 e com o princípio e valor fundante da dignidade da pessoa humana, podendo-se, inclusive, mencionar a existência de uma dimensão ambiental ou ecológica da dignidade da pessoa humana.

No dizer de Édis Milaré:

O reconhecimento do direito a um meio ambiente sadio configura-se, na verdade, como extensão do direito à vida, quer sob o enfoque da própria existência física e saúde dos seres humanos, quer quanto ao aspecto da dignidade dessa existência – a qualidade de vida - , que faz com que valha a pena viver.74

A associação de um meio ambiente equilibrado à qualidade de vida humana aponta também para adoção de uma visão ética assentada no que se pode chamar de antropocentrismo alargado, que, sem se desvincular ainda da instrumentalização do meio ambiente para atingir o bem estar humano, supera a visão estritamente vinculada ao viés econômico, que encarava o meio ambiente como mero fator de produção. 75

72 LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE,

José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 215-218.

73 “O direito ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado caracteriza-se, em primeiro lugar, por sua

correlação com o direito à vida e à saúde. Em uma sociedade de risco, e em razão da potencialidade de perda de bens jurídicos, a vida e a saúde podem estar em jogo, razão pela qual essa íntima relação garante a fundamentalidade”. BELLO FILHO, Ney de Barros. Teoria do direito e ecologia: apontamentos para um direito ambiental do Século XXI. In: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato; BORATTI, Larissa Verri (Org.). Estado de Direito Ambiental: tendências. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 314; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 113-114.

74 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 3ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2004, p. 137.

75 “ […] O antropocentrismo pode ser desmembrado em economicocentrismo e antropocentrismo alargado. O

economicocentrismo reduz o bem ambiental a valores de ordem econômica, fazendo com que qualquer consideração ambiental tenha como ‘pano de fundo’ o proveito econômico pelo ser humano. Já o antroponcentrismo alargado, mesmo centrado em discussões a respeito de ambiente na figura do ser humano, propugna por novas visões do bem ambiental. Assim, centra a preservação ambiental na garantia da dignidade do próprio ser humano, renegando uma estrita visão econômica do ambiente. O ‘alargamento’ dessa visão antropocêntrica reside justamente em considerações que imprimem ideias de autonomia do ambiente como

Efetivamente, para viver e viver de uma forma saudável e não apenas – mas também - sobreviver, é essencial um meio ambiente desprovido, na medida em que isso estiver ao alcance da humanidade, de poluição e outras formas de degradação, pois é do meio em que estamos inseridos – e os outros seres também – que retiramos desde o ar que nos mantém vivos e o alimento que comemos, até os recursos, muitas vezes não renováveis, que servem de matéria-prima para o desenvolvimento econômico e social da humanidade.

A ausência de um ambiente sadio e equilibrado tem consequências graves para a vida, a saúde e a dignidade humana, estando, muitas vezes, na origem de outros conhecidos males sociais, como a pobreza, a fome, a ausência de moradia digna, mortalidade infantil etc, além de trazer consigo riscos graves para a economia de um país, sendo, portanto, indiscutível sua fundamentalidade, ainda que não esteja formalmente, ou melhor explicitamente, integrado ao rol de direitos fundamentais assim formalmente reconhecidos na Carta de 1988.

Assim é por conta da norma de abertura constante do parágrafo segundo do art. 5º da Constituição Federal de 1988, que possibilita o encontro de direitos materialmente fundamentais fora daquele catálogo, desde que haja razões para tanto, como sua vinculação com princípios adotados pela Carta, sendo possível inclusive de serem previstos em normas de Direito Internacional.

O direito fundamental ao meio ambiente, por seu enquadramento na categoria dos direitos difusos, ou seja, aqueles que não pertencem a alguém distintamente, mas a toda uma coletividade de pessoas que se ligam por meras circunstâncias fáticas76, bem como em razão de seu vínculo com o princípio e valor da solidariedade e fraternidade, é normalmente enquadrado na terceira dimensão dos direitos fundamentais.

Porém, como acima visto, esse enquadramento não impede ao vislumbre de uma dimensão individual desse direito, passível, pois, de ser tutelada quando em jogo violações a direitos de um indivíduo isolado77. Isto é assim até pela já mencionada vinculação do direito

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requisito para a garantia de sobrevivência da própria espécie humana [...]. LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.).

Direito constitucional ambiental brasileiro, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 157.

76 Art. 81, parágrafo único, I, da Lei 8078/90.

77 BIANCHI, Patrícia. Eficácia das normas ambientais. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 238. No mesmo sentido

BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental

fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado com outros direitos fundamentais78, como a vida e a saúde, sem perder de vista sua autonomia.

Mas qual a relevância do reconhecimento do acesso a um meio ambiente sadio como direito fundamental? A relevância está no fato de que os direitos fundamentais, como tais, encontram-se positivados no ápice do ordenamento jurídico, isto é, na Constituição Federal, gozando, pois, de privilegiado regime jurídico se comparado com direitos destituídos de fundamentalidade.

Como exemplos desse regime jurídico privilegiado, pode-se citar: a) o caráter vinculante para o Poder Público, que vê reduzida sua margem de liberdade (discricionariedade/liberdade de conformação), e para os particulares, que veem reduzida sua autonomia e sua liberdade de iniciativa pela chamada ordem pública ambiental79; b) efeito irradiante80, provocando a necessidade de filtragem por meio do prisma constitucional da legislação infraconstitucional; c) supremacia outorgada pela Constituição, que faz prevalecer o direito em face de legislação infraconstitucional que contrarie seu núcleo essencial, aplicando-se aqui a chamada vedação ao retrocesso ecológico; d) imutabilidade assumida em função de seu enquadramento como cláusula pétrea; e) presunção de eficácia imediata81; e) caráter de inalienabilidade, irrenunciabilidade e imprescritibilidade82 etc.

Ademais, como destaca Herman Benjamin, a colocação do direito a um meio ambiente sadio no seio da Constituição, principalmente como direito fundamental, confere-lhe proeminência, entendida esta como “visibilidade máxima no anfiteatro superlotado das normas que compõem o sistema legal de um país”.83 A colocação do meio ambiente sadio em meio aos direitos fundamentais que se situam na Constituição Federal inegavelmente propicia uma publicidade maior a esse direito, facilitando, com isso, sua aplicação prática.

78 BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Proteção do meio ambiente na Constituição da República.

Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 81.

79 BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In:

CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental

brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 104.

80 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2007, p. 164.

81 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2007, p. 288.

82 BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In:

CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental

brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 118-120.

83 BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In:

CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental

É importante ressaltar que o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito multifuncional, no sentido que tanto pode ser entendido como um direito de defesa, exigindo uma conduta omissiva tanto do Estado como da sociedade no sentido de não poluir, não degradar, não retroceder na proteção ambiental, como também assume a feição de um direito à prestação, fática e normativa, cabendo aos seus destinatários agir, adotar postura ativa, cada um no seu âmbito de atuação, na defesa, conservação e melhoria do meio ambiente, seja por meio de edição de normas, criação de organizações e procedimentos ambientalmente amigáveis, seja fomentando atividades e organizações da sociedade civil que tenham por missão a tutela ambiental, seja desestimulando, por mecanismos diversos (tributação, por exemplo) comportamentos ambientalmente nocivos etc.

Para além de reconhecer um direito fundamental a um ambiente sadio, a norma constitucional em foco prevê um dever fundamental de proteger o meio ambiente.

Percebe-se, assim, que a Constituição Federal de 1988, na norma central que prevê a constitucionalização da questão ambiental, previu um meio ambiente sadio como missão, direito e dever, tanto do Estado como da sociedade84, o que representa o reconhecimento de que o cuidado com o meio que nos cerca deve ser conduzido, para que tenha êxito, de forma Coord.enada por todos os agentes sociais, de forma compartilhada (responsabilidade compartilhada).

Atribui-se, pois, à sociedade não apenas um conselho, uma recomendação moral, ainda que também se possa falar de um compromisso ético, mas um dever, uma obrigação inafastável, que deve ser exercida pelos agentes sociais e acolhida pela legislação infraconstitucional no momento de criação e regulação dos diversos instrumentos de efetivação do direito e dever fundamental de tutela do meio ambiente.

Esse dever fundamental, assim como se dá com o direito fundamental, não se limita à obrigação negativa de não poluir, demandando, ainda, um facere, que envolve, dentre outras coisas, uma efetiva participação nas decisões que envolvem o meio ambiente, que, por sua vez, demanda do Poder Público a edição e efetivação de instrumentos, como, por

84 Há constituições que, atualmente, preveem o meio ambiente unicamente na dimensão subjetiva, isto é, como

direito fundamental, assim como há outras que o estipulam unicamente numa dimensão objetiva ou como dever, existindo aqui uma variação da titularidade desse dever, ora atribuído ao Estado com exclusividade, ora atribuído à sociedade, ora previsto como dever de ambos. LEITE, José Rubens Morato; FERREIRA, Heline Sivini. Tendências e Perspectivas do Estado de Direito Ambiental no Brasil In: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato; BORATTI, Larissa Verri (Org.). Estado de Direito Ambiental: tendências. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 19-20.

exemplo, as audiências públicas em que essa participação e controle social das decisões que impactem o meio ambiente possam se desenvolver.

Para tanto, é evidente a necessidade da publicidade das informações acerca de questões ambientais, bem como a adoção de processos formais de educação ambiental, com vistas à formação de uma consciência ambiental acerca da importância do meio ambiente e da manutenção de seu equilíbrio, assim como para, no extremo, criar-se uma verdadeira cidadania ambiental, quando as questões públicas relativas ao meio ambiente passem a se tornar objeto de forte interesse da sociedade civil.

Não obstante essa ênfase na participação social como protagonista da defesa do meio ambiente, ao ponto de se afirmar que “o que é realmente inovador no art. 225 é o reconhecimento da indissolubilidade do vínculo Estado-sociedade civil”85, a previsão, no parágrafo primeiro do mesmo dispositivo constitucional, de obrigações expressamente dirigidas ao Poder Público denota, a um só tempo, o reconhecimento da necessária intervenção estatal para a tutela ambiental, estando ali previsto o mínimo essencial dessa atuação, como também que o Estado, pelos poderes instrumentais de que dispõe, está em condições privilegiadas de direcionar a sociedade para o bem comum socioambiental.

1.4.2 Meio ambiente como macrobem: a titularidade difusa e intergeracional do bem