• Nenhum resultado encontrado

Tão profunda é a mudança de paradigma que se pretende inaugurar com a implementação de um Estado Socioambiental que muda o próprio relacionamento entre sociedade e Estado, que, de inimigos iniciais (Estado Liberal), tornaram-se pai (Estado) e filho (sociedade) e, agora, no novo paradigma, emancipa-se a sociedade, que passa a possuir corresponsabilidade com o Estado na edificação e consolidação de um entorno que propicie uma sadia qualidade de vida, inclusive para aqueles ainda não são, mas serão (Estado e sociedade intra e intergeracionalmente solidários)50.

Esse novo papel da sociedade assentado no paradigma sob comento reabilita a categoria dos chamados deveres fundamentais51. Tais deveres, esquecidos que foram por conta de sua supremacia sobre os próprios direitos fundamentais por ocasião do nacional- socialismo alemão e comunismo52, bem como em função de um fundamentalismo dos direitos fundamentais assentado numa visão liberal estrita desses direitos (o indivíduo só tem direitos,

49 BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica jurídica ambiental. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 126-

127.

50 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: estudos sobre a

Constituição, os Direitos Fundamentais e a Proteção do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 40-41.

51 “O constitucionalismo moderno de matriz ocidental é a história de aquisição de direitos fundamentais. É a

história da conquista de direitos – depois de séculos de absolutismo e, no século XX, em contraste com regimes políticos totalitários e autoritários de várias tendências. Não implica isto, porém, uma desconsideração ou subalternização dos deveres. Não implica no plano jurídico, porque, mesmo quando são poucos os deveres consignados nas Constituições, ficam imprejudicados os vastíssimos deveres nas relações das pessoas entre si. E não envolver desconsideração no plano ético, até porque a reivindicação de direitos bem pode fundar-se na necessidade ou na vontade de cumprimento de deveres”. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV, 4ª ed. Coimbra: Editora Coimbra, 2008, p. 86.

52 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra:

Almedina, 2003, p. 531. Cf, ainda, ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na

esquecendo-se de seus deveres comunitários)53, passam, nos tempos atuais, a ocupar novamente um lugar de destaque, notadamente, mas não exclusivamente, por força da crise ambiental.

Casalta Nabais, um dos autores que melhor trata do tema em liça, assim conceitua materialmente os deveres fundamentais:

Assim, tendo presente um certo paralelismo com as notas típicas ou características essenciais da noção constitucional de direitos fundamentais de (sic) nos dá conta a doutrina, podemos dizer que os deveres fundamentais se configuram como posições jurídicas passivas (não activas), autônomas (face aos direitos fundamentais), subjectivas (já que exprimem uma categoria subjectiva e não objectiva), individuais (pois têm por destinatários os indivíduos e só por analogia as pessoas colectivas) e universais e permanentes (pois têm, por base a regra da universalidade ou da não discriminação).54

O indivíduo, ao viver em comunidade, não possui, como parece óbvio, apenas direitos, possuindo deveres não só para com o próximo, mas também deveres perante a comunidade que integra, cabendo pautar sua conduta em prol dos valores propugnados por essa comunidade.

Dessa imbricação entre as categorias dos assim chamados deveres fundamentais com a categoria dos direitos fundamentais pode-se, inclusive, retirar, como síntese que não apaga as individualidades de cada uma, o que, com Sarlet e Fensterseifer, pode-se chamar de direito-dever fundamental ou direito da solidariedade, de que é exemplo emblemático o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.55

Segundo os referidos autores, essa categoria tem como traço marcante:

um peso maior da sua perspectiva objetiva no que diz com a conformação normativa de posições jurídicas, em detrimento de sua perspectiva subjetiva, que, neste contexto, poderá ter até um peso menor (em relação aos efeitos decorrentes da dimensão objetiva), mas que também se faz presente.56

53 NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos.

Disponível em:< http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15184-15185-1-PB.pdf>. Acesso em 15 abr. 2012.

54 NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos.

Disponível em:< http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15184-15185-1-PB.pdf>. Acesso em 15 abr. 2012.

55 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: estudos sobre a

Constituição, os Direitos Fundamentais e a Proteção do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 140-145.

56 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: estudos sobre a

Constituição, os Direitos Fundamentais e a Proteção do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 140.

A própria conformação dos direitos é proximamente influenciada pelos deveres que lhe são correlatos, de forma que se pode dizer que o âmbito de proteção dos direitos- deveres fundamentais é comprimido pelos deveres que vêm junto desses direitos. Em outras palavras, são direitos que trazem consigo responsabilidades comunitárias.

No caso do meio ambiente, essa comunidade pode ser encarada como o próprio globo terrestre, considerando que os riscos ambientais não conhecem fronteiras, pondo em perigo a própria existência da espécie humana, sendo que os fios éticos (ainda antropocêntricos) que unem os homens para formar esse sentimento comunitário global carregam a marca da solidariedade (intra)intergeracional e são atados com a força normativa gerada pela positivação desse dever fundamental de solidariedade.

Ainda é possível vislumbrar, em matéria de deveres fundamentais ambientais, um dever para com as gerações futuras, ainda não nascidas ou mesmo concebidas, consistente na manutenção do equilíbrio ecológico essencial à qualidade de vida dessas pessoas, que pode ser afetado com uma exploração desregrada do meio ambiente pelas gerações atuais.

É importante dizer que os deveres fundamentais, ainda que conexos com direitos fundamentais, tal como ocorre com o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado57, não são a outra face dos direitos, constituindo uma categoria constitucional autônoma.58 Segundo Canotilho, “vale aqui o princípio da assinalagmaticidade ou da

assimetria entre direitos e deveres uma condição necessária de “estado de liberdade’”.59

Enquadrando-se na classificação de deveres atinentes à vida econômica, social ou cultural60-61, os deveres fundamentais relativos à preservação do meio ambiente

57 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2004, p. 123.

58 CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. Vol I, 4ª.

ed. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra, PT: Coimbra Editora, 2007, p. 320.

59 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra:

Almedina, 2003, p 533.

60 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV, 4ª ed. Coimbra: Editora Coimbra, 2008, p.

85.

61 Casalta Nabais ensina que “historicamente se foram formando tantas camadas de deveres fundamentais

quantas as camadas de direitos. E assim temos os deveres que vêm da época liberal, como os deveres de defesa da pátria e de pagar impostos; temos os deveres que são o contributo da ‘revolução’ democrática, consubstanciada na conquista do sufrágio universal, que nos deixou os deveres políticos como os deveres de sufrágio e de participação política; temos, enfim, os deveres que constituem o apport do estado social, ou seja os deveres de subscrever um sistema de segurança social, de proteger a saúde, de frequentar o ensino básico, etc. deveres estes a que, hoje em dia, tende a acrescentar-se uma quarta camada de deveres formada pelos deveres ecológicos, de que são exemplos os deveres de defender um ambiente humano são e ecologicamente equilibrado e o dever de cada um preservar, defender e valorizar o patrimônio cultural”. NABAIS, José Casalta. A face

oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos. Disponível em:<

ecologicamente equilibrado são imprescindíveis à preservação e à promoção do meio ambiente sadio, tendo como sujeitos passivos, isto é, como responsáveis pelo seu cumprimento, tanto a sociedade, como o Estado.62

Inclusive, na linha do magistério de Jorge Miranda, é de se assinalar que:

[...] a imposição de deveres não tem como única contrapartida uma situação ativa ou de vantagem da parte do Estado ou de outra entidade pública. Tem ou pode ter também uma face passiva ou de obrigação. Tanto existem deveres do Estado de organização e procedimento por causa de direitos como por causa de deveres dos cidadãos.63

Por exemplo, ao dever da sociedade de proteger o meio ambiente não corresponde, pelo menos não exclusivamente, um direito do Estado de exigi-lo, existindo também o dever estatal de tomar medidas que propiciem o cumprimento desses deveres pela sociedade, como a criação de um aparato eficiente de fiscalização e a criação de mecanismos jurídicos que possibilitem a tutela, inclusive jurisdicional, do meio ambiente.64

Convém dizer que, guardadas as devidas adaptações, aplicam-se aos deveres fundamentais, notadamente aos mencionados direitos-deveres, boa parte da teoria elaborada para os direitos fundamentais. Realmente, pode-se dizer que: a) ostentam fundamentalidade, no sentido de gozarem de um especial regime jurídico, tanto material como formal; b) podem lhes ser aplicado o princípio da vedação do retrocesso; c) possuem tanto funções negativas (defensivas) como positivas (prestacionais) etc.65

Por fim, na linha da doutrina a respeito dos deveres fundamentais, cumpre informar que esses deveres, ainda que previstos na Constituição, não possuem, como regra, eficácia imediata - o que, inclusive, os distingue também dos direitos fundamentais –

62 Referindo-se a norma contida no art. 225 da CF de 1988, assim se pronuncia Benjamin: “[...] Além de ditar o

que o Estado não deve fazer (= dever negativo) ou o que lhe cabe empreender (= dever positivo), a norma constitucional estende seus tentáculos a todos os cidadãos, parceiros do pacto democrático, convencida de que só assim chegará à sustentabilidade ecológica”. BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 133.

63 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV, 4ª ed. Coimbra: Editora Coimbra, 2008, p.

193-194.

64 Daí uma certa aproximação entre os deveres fundamentais e a dimensão objetiva dos direitos fundamentais.

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. 4ª. ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 150. Cf, ainda, SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 240.

65 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: estudos sobre a

Constituição, os Direitos Fundamentais e a Proteção do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 145-154.

necessitando de atuação do legislador infraconstitucional para sua efetivação, o que, todavia, não significa que esses deveres consubstanciam-se em normas programáticas.66

Quanto à auto-aplicabilidade do dever fundamental de proteção do meio ambiente, no entanto, pensamos assistir razão à Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros, que sustenta que “o dever de defesa do ambiente é singular quanto à importância de seu conteúdo e da urgência de sua exigibilidade” 67. Assim, consideramos que esse dever fundamental, que, aliás, é essencial ao gozo do direito fundamental ao meio ambiente sadio, compartilha do regime de auto-aplicabilidade presumida que se atribui aos direitos fundamentais.68

1.4 O direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado na Constituição