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3. AS LICENÇAS AMBIENTAIS: NATUREZA JURÍDICA, CONCEITO,

3.5 Modificação, suspensão e extinção das licenças

Ao longo deste trabalho, vem-se chamando atenção para a necessidade de previsão da possibilidade jurídica de modificação, de tempos em tempos, das condicionantes dispostas nas licenças ambientais, como forma de assegurar uma sempre atual fiscalização das atividades efetivas ou potencialmente poluidoras do meio ambiente.

47 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 3ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2004, p. 495.

48 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 20ª ed. São Paulo, Malheiros, 2012, p. 330. 49 GOMES, Carla Amado. A idade da incerteza: reflexões sobre os desafios de gerenciamento do risco

ambiental. In: LOPEZ, Tereza Ancona; LEMOS, Patrícia Faga Iglesias; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz (Coord.). Sociedade de risco e direito privado: desafios normativos, consumeristas e ambientais. São Paulo: Atlas, 2013, p. 205.

Disse-se que, durante o prazo de validade das licenças, em regra, goza o titular da licença ambiental da segurança de que não será incomodado pelos órgãos ambientais de controle, desde que cumpra as condições que lhe foram impostas em cada licença deferida.

Ocorre que essa estabilidade da licença ambiental, algumas vezes, em que pese isto se dar em hipóteses excepcionais, deve ceder diante da necessidade de proteção ambiental. Em certos casos, por responsabilidade imputada ao próprio empreendedor, em outros, sem qualquer reconhecimento de conduta ilícita por parte dele.

A própria Lei 6938/81, quando previu o licenciamento ambiental como um dos instrumentos de sua efetivação (art. 9º, IV), também mencionou a possibilidade de revisão das atividades efetiva ou potencialmente poluidoras.

Convém não misturar revisão das licenças ambientais com sua renovação. Por revisão, deve-se entender a alteração, suspensão ou extinção da licença ambiental, por razões diversas que serão abaixo explicadas, durante seu prazo de validade. Já a renovação, é resultado do deferimento do pedido de nova licença ou prorrogação da primeira por força da expiração seu prazo de validade.50

Diante dessa possibilidade de afetação da licença ambiental, ainda que durante seu prazo de validade, para que se conforme a realidade jurídica até então em vigor em determinado processo de licenciamento com a realidade fenomênica atual, é que se diz que a licença ambiental é rebus sic standibus, isto é, que se mantém enquanto se mantiverem as condições existentes por ocasião de sua concessão.51

Previu-se, na Resolução 237/97, hipóteses de modificação, suspensão e extinção anômala das licenças ambientais. Confira-se a redação do art. 19 da mencionada Resolução:

Art. 19 – O órgão ambiental competente, mediante decisão motivada, poderá modificar os condicionantes e as medidas de controle e adequação, suspender ou cancelar uma licença expedida, quando ocorrer:

I - Violação ou inadequação de quaisquer condicionantes ou normas legais.

II - Omissão ou falsa descrição de informações relevantes que subsidiaram a expedição da licença.

III - superveniência de graves riscos ambientais e de saúde.

50 FARIAS, Talden. Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos. 2ª ed. Belo Horizonte: Forum,

2010, p. 157.

51 FINK, Daniel Roberto; André Camargo Horta de Macedo. Roteiro para licenciamento ambiental e outras

considerações. In: FINK, Daniel Roberto; ALONSO JR., Hamilton; DAWALIBI, Marcelo. Aspectos jurídicos

De início, é de se evidenciar que, acertadamente, o caput do art. 19 deixa claro que existe um ônus para aplicar essas medidas que afetam o teor ou a própria existência e validade da licença ambiental, qual seja, o dever que tem o licenciador de motivar, com argumentos notadamente técnicos e verazes, o porquê de se estar desconstituindo uma licença que foi precedida de um processo administrativo, no bojo do qual se trouxe colaboração do interessado, da Administração e, muitas vezes, da própria sociedade, bem como estudos técnicos que embasaram a decisão de deferimento da licença.

É exigência do devido processo legal aplicado ao processo de licenciamento ambiental o direito de defesa e de produção de provas para demonstrar o desacerto dos argumentos que desfavorecem uma das partes do processo, e isto somente se faz possível mediante a publicidade das razões, materializada na motivação do ato superveniente, que seja apta a esclarecer o empreendedor o que levou à restrição de seu direito.

Deve a Administração demonstrar o que mudou, ou quais foram os erros cometidos no passado, que provocam a necessidade superveniente de intervir na licença ambiental.

Está implícita na norma em destaque, sendo, ademais, exigência constitucional e da Lei 9784, aplicável subsidiariamente ao processo administrativo de licenciamento ambiental, que o titular da licença ambiental tenha, de preferência, uma defesa prévia à intervenção na sua licença. Falou-se de preferência, pois pode ocorrer de a necessidade de intervenção na licença ser urgente, situação que, uma vez demonstrada, dá ensejo a um diferimento desse contraditório prévio.

Para que respeite as exigências do devido processo legal, a decisão do licenciador deve se pronunciar expressamente sobre os argumentos defensivos apresentados pelo titular da licença questionada.

O dispositivo fala de três possíveis ocorrências que podem afetar a configuração das licenças já deferidas: a) modificação das condicionantes e medidas de controle e adequação; b) suspensão e c) cancelamento.

Modificação implica alteração do teor da licença, de seu conteúdo, de seus efeitos. A norma fala que são passíveis de modificação as condicionantes e as medidas de controle e adequação.

Isso que se pretende modificar são justamente os elementos restritivos da liberdade do empreendedor que figuram na licença concedida, como por exemplo, determinação de adoção de equipamentos de combate à poluição, realocação do empreendimento, adoção de medidas de compensação ambiental etc.

Para Maria Luiza Machado Granziera, trata-se de atecnia da norma, haja vista que as condicionantes e medidas de controle e adequação são, justamente, as condições para a obtenção da licença, não podendo ser alteradas durante o período em que ela está em vigor, mas somente quando de sua concessão ou renovação.52

Não se concorda com esse posicionamento. É verdade que o que se pretende modificar são coisas que constam da própria licença ambiental por ocasião de sua concessão ou renovação. Nem, por isso, contudo, dentro da visão de que aqui se está a falar de situação excepcional, pode-se proscrever completamente a possibilidade de modificação dessas condições durante o prazo de validade da licença, em prol da tutela do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Insista-se, mais uma vez, considerada uma situação extrema que demonstre claramente que esperar para agir implicaria graves riscos ambientais.

Na segunda hipótese de intervenção superveniente da licença ambiental fala-se em suspensão. Trata-se de situação em que, não basta a modificação das condições inerentes à licença, fazendo-se necessária a paralisação de seus efeitos, a fim de que haja tempo hábil para se buscar uma solução ambientalmente adequada.

Por fim, tem-se o cancelamento. Este, como o próprio nome está a revelar, gera a desconstituição definitiva da licença, a sua retirada do mundo jurídico. Só deve ser aplicada em situações de maior gravidade, em que seja impossível manter a validade da licença concedida sem riscos socioambientais graves. O termo cancelamento é genérico, nele estando englobadas diversas possibilidades, como invalidação, cassação e, até mesmo, caducidade.

A adoção de uma das medidas acima mencionadas seguirá as peculiaridades do caso concreto, podendo ocorrer por vício de origem, isto é, que macula a licença desde seu nascimento, ou irregularidade superveniente, imputável, ou não, ao titular da licença.

Hipótese de vício na origem é descrita no inciso II do art. 19 da Resolução 237, no qual se menciona “omissão ou falsa descrição de informações relevantes que subsidiaram a expedição da licença”.

Vê-se que manifestação de má-fé, dolo, por parte do titular da licença, que, pretendendo desenvolver sua atividade sem se submeter ao rigor das normas de proteção ambiental, engana a Administração, seja por ação, quando presta informações falsas, ou omissão, quando esconde dados relevantes para decisão acerca da licença postulada.

Como se trata de ato ilícito, a sanção aqui aplicável é a de nulidade da licença, ou seja, o reconhecimento (declaração) de que nasceu sem atender aos requisitos de validade que lhe são próprios, sem prejuízo de apuração da responsabilidade do titular da licenças em outras esferas (civil e penal). Não há que se falar aqui em indenização de qualquer espécie, por maior que seja o prejuízo do titular da licença, haja vista que foi ele o causador da invalidade da licença. Entender o contrário representaria desapreço pelo princípio geral de direito que diz que ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza.

Nas situações descritas nos incisos I e III do art. 19 da Resolução 237, tem-se a possibilidade de desconstituição da licença por motivo superveniente à sua concessão. Cuidam-se, assim como a invalidade, de situações que se enquadram no conceito de extinção dos atos administrativo por retirada. Veja-se, a respeito, a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:

III – retirada do ato. Sucede quando o Poder Público emite um ato concreto com efeito extintivo sobre o anterior. Várias são as hipóteses:

retirada por razões de conveniência e oportunidade. É a revogação […];

retirada porque o ato foi praticado em desconformidade com a ordem jurídica. É a

invalidação […];

retirada porque o destinatário do ato descumpriu as condições que deveriam permanecer atendidas a fim de poder continuar desfrutando da situação jurídica. É a

cassação […];

retirada porque sobreveio norma jurídica que tornou inadmissível a situação dantes permitida pelo Direito e outorgada pelo ato precedente. É a caducidade […]; retirada porque foi emitido ato, com fundamento em competência diversa da que gerou o ato anterior, mas cujos efeitos são contrapostos aos daquele. É a

contraposição ou derrubada […].( Grifos do autor).53

Como primeiro exemplo de desconstituição da licença por ato superveniente, tem- se a hipótese descrita no inciso I do art. 19 da Resolução 237/97, que trata da “violação ou inadequação de quaisquer condicionantes ou normas legais”. Aqui se encaixa aquele que,

53 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005,

embora tenha obtido licitamente a licença ambiental, não cumpre seus ditames, suas condições ou mesmo outras restrições previstas na própria legislação ambiental (vício superveniente). É o que a doutrina do Direito Administrativo chama de cassação da licença. Nessa hipótese, valem as mesmas observações feitas no caso da invalidade da licença no que diz respeito ao descabimento de qualquer indenização, pois foi o titular da licença que, com sua conduta ilícita, gerou a cassação da licença.

No inciso III (superveniência de graves riscos ambientais e de saúde), encontra-se nítido exemplo da possibilidade já mencionada de os riscos só serem constatados após a concessão da licença ambiental, por evolução do conhecimento científico, por exemplo. Crê- se que aqui se está diante de hipótese de caducidade do ato.

Com efeito, a legislação ambiental e de saúde é repleta de conceitos jurídicos indeterminados, para cuja densificação é essencial o caso concreto. Se os fatos mudam de contorno, seja porque se está diante de fatos efetivamente novos, seja porque há uma revaloração dos fatos à luz de novos conhecimentos, ter-se-á verdadeira mudança de sentido da norma, ou melhor, uma nova norma, que torna incompatível a manutenção da licença deferida com base na densificação dos conceitos indeterminados feita com base na realidade anterior.54

Na situação de caducidade, o prejudicado, desde que não tenha agido com dolo ou culpa no sentido de gerar o agravamento dos riscos ambientais ou à saúde, faz jus à indenização. Efetivamente, em tal conjuntura, não foi o titular da licença ambiental que deu causa à caducidade da licença, e sim fatos alheios ao seu agir, ainda que, objetivamente falando, vinculem-se à atividade por ele desenvolvida.

Certamente, o titular da licença terá feito investimentos e, possivelmente, não terá a possibilidade de amortizá-los ou mesmo retirar o esperado lucro por conta da retirada de sua licença ambiental do mundo jurídico. Se, por um lado, o meio ambiente não pode ser prejudicado pela irresponsável manutenção de uma atividade que gera graves riscos ambientais ou à saúde, por outro, não pode o titular da licença ter seu direito de propriedade fulminado. Nessa situação, a retirada da licença implica verdadeira desapropriação de direito

54 “Direito não está aprisionado à ideia de texto escrito. Direito não se limita a palavras no papel e nem mesmo é

fruto apenas da produção normativa; não se constitui como tal em razão da observância de suas formalidades exógenas. Direito se constrói a partir da fusão entre o texto e a realidade, em uma atividade de conhecimento e criação”. BELLO FILHO, Ney de Barros. Teoria do Direito e Ecologia: apontamentos para um direito ambiental no Século XXI. In: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato; BORATTI, Larissa Verri (Org.).

economicamente valorável do titular da licença e, como tal, merece o amparo do direito e deve ser indenizado. Não fosse assim, “o peso da defesa e da proteção ambiental recairia exclusivamente sobre os ombros do administrado, em dissonância com o art. 225 da Lei Maior, por força do qual o Poder Público e a coletividade devem compartilhar solidariamente o ônus da responsabilidade ambiental” (Grifo do autor).55

Corroborando o ponto de vista aqui sustentado está o pensamento de Daniel Roberto Fink e André Camargo Horta de Macedo:

[…] Em qualquer caso, contudo, é importante que se considerem os aspectos econômicos envolvidos, bem como os direitos subjetivos, em especial aqueles que dizem respeito ao empreendedor. Em se tratando de ato vinculado, e havendo novas circunstâncias que recomendem a suspensão ou retirada da licença ambiental, sem que o empreendedor tenha dado causa a elas, certamente ele faz jus ao ressarcimento de seu investimento, bem como os lucros cessantes e perdas e danos. Caso contrário, a hipótese representaria verdadeiro confisco, repugnado por nosso sistema jurídico. (Grifo do autor).56

Talden Farias vislumbra a possibilidade de revisão em favor do interessado na licença, pontuando que o que se revisa é o licenciamento (processo), e não a licença (ato)57. Pensamos assistir parcial razão ao ilustre autor, pelo menos se o referencial a ser tomado for o art. 19 da Resolução 237.58

É claro que todo ato administrativo está sujeito a controle, interno ou externo, podendo ser revisado caso seja comprovado erro ou mudança das condições que levaram ao indeferimento do pleito do administrado. Todavia, as hipóteses tratadas no art. 19 da Resolução 237/97 são de revisão da licença, pressupondo uma licença concedida ao interessado, e não uma negativa do pedido de licença.

55 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 3ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2004, p. 500.

56 FINK, Daniel Roberto; André Camargo Horta de Macedo. Roteiro para licenciamento ambiental e outras

considerações. In: FINK, Daniel Roberto; ALONSO JR., Hamilton; DAWALIBI, Marcelo. Aspectos jurídicos

do licenciamento ambiental. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 17. No mesmo sentido cf.

FARIAS, Talden. Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos. 2ª ed. Belo Horizonte: Forum, 2010, p.180; MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 499-500; Antônio Inagê de Assis. Introdução à legislação ambiental brasileira e

licenciamento ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 398; TRENNEPOHL, Curt; TRENNEPOHL,

Terence. Licenciamento ambiental. 3ª ed. Niterói: Impetus, 2010, p. 29.

57 FARIAS, Talden. Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos. 2ª ed. Belo Horizonte: Forum,

2010, p. 160.

58 De fato, o art. 9º., IV, da Lei 6938/81 fala em revisão das atividades, e não da licença ambiental, o que poderia

ensejar uma interpretação mais ampla do termo revisão, de forma a abarcar o ponto de vista do mencionado autor.

Assim, pode até haver a revisão do ato de indeferimento da licença, mas, a nosso ver, tal não se dará com fundamento no art. 19 da Resolução 237/97, e sim com base no Direito Administrativo geral.

Entretanto, no caso de licença concedida, mas em termos mais restritivos do que o necessário para a tutela ambiental, hipótese aventada pelo próprio autor citado, como se tem uma licença a ser revista, pensamos que, com base no caput do dispositivo sob comento, pode-se depreender que é possível uma modificação da licença, para torná-la mais favorável ao interessado. Afinal, aplica-se ao licenciamento ambiental o princípio da proporcionalidade, de forma que a liberdade do indivíduo só deve ser restringida na exata medida necessária para a tutela do direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, nem mais nem menos.