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Meios de solução de conflitos: autotutela, autocomposição e heterocomposição

Capítulo 2: SISTEMA DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS

2.4 Meios de solução de conflitos: autotutela, autocomposição e heterocomposição

Utilizando como critério a responsabilidade pela solução do conflito e o método empregado, NICETO ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO e PETRÔNIO CALMON classificam os meios de solução de conflitos em: autotutela, autocomposição e heterocomposição.

PETRÔNIO CALMON parte das duas ordens opostas dentro dos meios de solução de conflitos, a imposta e a consensual.44

Na ordem imposta, situam-se a autotutela (imposição unilateral da qual resulta o sacrifício do interesse de uma das partes, em virtude da força, da perspicácia ou da esperteza) e a heterocomposição (imposição por terceiro neutro, mediante ato de autoridade e poder, baseado na legislação ou na eqüidade, em relação adversarial).

Na ordem consensual, situa-se a autocomposição (solução negociada cooperativamente pelos envolvidos, a partir da disponibilidade de seus interesses).

Utilizando-se como critério a responsabilidade pela função

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Ibidem, p. 315.

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de decidir o conflito, os meios podem ser heterocompositivos e autocompositivos.45

No modo heterocompositivo, a atribuição de decidir é delegada a um terceiro, que pode ser agente público ou privado; o resultado é imposto às partes, após provocação dos legitimados.

No Brasil, como heterocomposição, temos a jurisdição

estatal, por meio da magistratura oficial, bem como a jurisdição privada, por meio da

arbitragem, exercida por agentes particulares.

Em quaisquer das formas de jurisdição, a relação é triangular. O juiz e o árbitro mantêm-se eqüidistantes, neutros e imparciais, mediam a comunicação entre as partes, que necessariamente passa por eles, e, após análise das provas realizadas e das normas aplicáveis, impõem a decisão final.

A transferência da responsabilidade em decidir o conflito para o juiz ou o árbitro tem reflexos importantes para os envolvidos, pois acarreta um comando imperativo emitido por um terceiro que está acima dos interessados e perde-se a oportunidade de controlar os riscos da demanda, de investigar suas necessidades, de obter um resultado que atenda aos interesses de todos, de preservar a relação e de desenvolver a aptidão para gerir conflitos futuros.

No modo autocompositivo, a atribuição de decidir cabe às partes, consensual e conjuntamente, e pode ser submetida à revisão judicial. Para PETRÔNIO CALMON, três resultados são possíveis: a renúncia, a transação ou a submissão.46

Na renúncia, aquele que formulava a pretensão põe fim ao litígio sem receber nada em troca.

45 Também parte deste critério José Luis Bolzan de MORAIS. Cf. Mediação e arbitragem, p. 114 e ss. 46

67 Na transação, há concessões recíprocas, com renúncia e submissão de parte do interesse.

Na submissão, aquele que exercia a resistência submete- se integralmente à pretensão, abrindo mão da totalidade da sua resistência.

Contudo, é possível ir além e vislumbrar, com a utilização do meio adequado, especialmente na mediação, resultado de aproveitamento integral do objeto, beneficiando a todos, sem haver renúncia, submissão ou troca.

Essa possibilidade é bem ilustrada por um conto que ficou notoriamente conhecido pelos profissionais que lidam com meios de solução de conflitos como a “história da laranja”, cuja origem é incerta.

É o relato de um pai que chega em casa e encontra suas duas filhas brigando por causa de uma laranja e, por não mais tolerar o desentendimento após um certo tempo, parte a laranja ao meio e dá a cada filha uma metade. A primeira filha pega a sua parte, espreme o sumo, faz um suco e joga a casca fora. A segunda filha pega a sua parte, tira a casca para fazer um doce e joga o sumo fora. Conclusão, se o pai tivesse perguntado às filhas para qual finalidade queriam a laranja, ambas poderiam ter ficado com a casca e com o sumo integralmente, com o máximo do aproveitamento do objeto disputado.

Este é o foco da mediação: a partir do diálogo, compatibilizar os interesses para que as pessoas envolvidas tenham a maior satisfação possível.

68 No Brasil, vêm sendo realizadas inúmeras experiências autocompositivas, com vários projetos bem sucedidos e premiados.47 Destacam-se a

negociação, a conciliação e a mediação.

A responsabilidade pela decisão nos meios consensuais, em vista da mínima intervenção do terceiro, desenvolve a aptidão das pessoas para gerir, por si mesmas, seus conflitos, atuais e futuros, possibilita o controle dos riscos da demanda, viabiliza um resultado que atenda a todos os interesses a partir da investigação das necessidades de cada um, preserva a relação e eleva a auto- estima. E, ainda, em conseqüência da participação direta dos envolvidos na construção do resultado, o acordado tende a ser cumprido espontaneamente.

Observa-se que, em um Estado Democrático de Direito como o brasileiro, é incompatível um sistema totalmente heterocompositivo, inclusive por expressa determinação constitucional de participação popular na administração da Justiça (artigo 98 da Constituição Federal).

Os modos heterocompositivos e autocompositivos formam um sistema harmônico e lícito de acesso à Justiça e de decidibilidade dos conflitos que não inclui um Poder paralelo ao Estado.

Utilizando-se como critério a qualidade da relação entre

os envolvidos, os meios podem ser classificados em adversariais e conciliatórios.

No modo adversarial, estão presentes a litigiosidade, a contrariedade, a competitividade, a idéia de que um dos participantes ganhará o jogo e o outro, necessariamente, o perderá. Busca-se a solução mais benéfica para cada

47 A Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas – FGV, a Associação dos Magistrados

Brasileiros – AMB, e o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria da Reforma do Judiciário, com o apoio da Companhia Vale do Rio Doce, em realização conjunta, criaram o Prêmio Innovare: o Judiciário do Século XXI,

“para identificar, premiar, sistematizar e disseminar práticas pioneiras e bem sucedidas de gestão do Poder Judiciário que estejam contribuindo para a modernização, desburocratização, melhoria da qualidade e eficiência dos serviços de Justiça”, o qual já foi conferido a vários projetos envolvendo a conciliação e a mediação. Cf. A reforma silenciosa da Justiça. Organização: Centro de Justiça e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, p. 11.

69 um, individualmente, sem considerar o interesse do outro. É o que normalmente se encontra nas vias judicial e arbitral.48

No modo conciliatório, o espírito é o de cooperação, de compreensão, de entendimento, de solidariedade, de preservação ou restabelecimento da relação. Busca-se a solução mais benéfica para todos, um jogo em que todos saiam ganhando. É o que se estimula no procedimento da mediação e da conciliação.49

Sobre os modos cooperativos direcionados à pacificação social, JOSÉ MARIA ROSSANI GARCEZ ensina que:

“Nas novas formulações negociadas há uma combinação de vasto arsenal de meios psicológicos, indutivos e persuasivos e novas formulações jurídicas utilizando a criatividade e a combinação de métodos não adversariais.

Tais métodos compreendem, primeiramente, a negociação direta entre as partes, evidentemente o mais eficaz e radical método para solução de quaisquer problemas, pois, em primeiro lugar, sendo personalíssimo, preserva a autoria e a autenticidade dos negociadores na solução de seus próprios conflitos, não existindo nada mais adequado e duradouro do que uma solução autonegociada. Em seguida, surgem os métodos que embora tenham a negociação como base, aproveitam a participação de terceiros, facilitadores, que auxiliam as partes a atingir o estágio produtivo das negociações e a chegarem a um acordo e que são a mediação, a conciliação e as diversas combinações desses métodos e que constituem, por assim dizer, os ADRs ou MASCs”.50

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Em que pese haver concordância das partes na escolha do mecanismo a ser utilizado, entende-se inadequada a classificação da arbitragem dentre os meios não-adversariais, pois apresenta caráter nitidamente litigioso, no qual os litigantes, em posições antagônicas, pedem a um terceiro que imponha a solução para o caso, em relação triangular.

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A negociação, em tese, pode ser enquadrada tanto no modelo adversarial quanto no conciliatório.

70 Essa distinção, com base na qualidade da relação entre os envolvidos, é similar àquela destacada por DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, conforme exposto anteriormente, sob o entendimento de que o exercício do poder desenvolve-se por antagonismo ou cooperação.

E como a sua própria denominação expressa, as relações de poder na Administração Pública consensual pautam-se pela cooperação, pelo modo autocompositivo conciliatório.

2.5 Mecanismos de autocomposição

2.5.1 Negociação

“Queira ou não, você é um negociador”.51

Com tal afirmação, ROGER FISCHER, WILLIAN URY e BRUCE PATTON pretendem chamar a atenção para o fato de que a negociação, assim como o conflito, é inerente à convivência em sociedade.

Mesmo sem consciência, negociamos inúmeras vezes no decorrer de um dia, por conta das relações profissionais, familiares ou sociais nos microssistemas em que estamos inseridos.

Nesse contexto, VERÔNICA A. DA MOTTA CEZAR- FERREIRA, atribui à negociação um caráter também preventivo, pois pode atuar em momento anterior ao conflito, simplesmente para esclarecer uma situação ou firmar um acordo:

“A vida é uma constante negociação. Negocia-se, independentemente da existência de conflitos, e só porque há negociação é que eles não ocorrem.

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