A tônica do Direito Público, do Direito Administrativo e do Direito Urbanístico contemporâneos é o envolvimento da sociedade na participação das atividades desenvolvidas pelo Estado.
Em busca da processualidade adequada, como
instrumento democrático a propiciar a atuação política e a cooperação no
processo decisório em prol dos interesses gerais, vêm sendo criados diversos instrumentos participativos.
22 discorrer sobre as mutações do Direito Público e do Direito Administrativo, ressalta que:
“A participação e a consensualidade tornaram-se decisivas para as democracias contemporâneas, pois contribuem para aprimorar a governabilidade (eficiência); propiciam mais freios contra o abuso (legalidade); garantem a atenção a todos os interesses (justiça); proporcionam decisão mais sábia e prudente (legitimidade); desenvolvem a responsabilidade das pessoas (civismo); e tornam os comandos estatais mais aceitáveis e facilmente obedecidos (ordem)”25.
Para acompanhar as mudanças mencionadas pelo referido autor, faz-se necessário ponderar sobre as relações entre poder, Direito, Estado, democracia, paz, interesse público, participação e consenso.
Com o advento da modernidade, a sociedade contemporânea passou a caracterizar-se pelo aumento da complexidade das relações sociais, jurídicas e institucionais.
Nesse contexto, verificam-se alterações substanciais na relação entre o poder e o Direito. O poder passou a se apoiar em enormes estruturas institucionais e a desafiar o homem e sua liberdade individual. No âmbito do Direito, desenvolveram-se instrumentos de controle do poder, destinados a assegurar os valores de que não se pode dispor na convivência humana.
Segundo DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, a dinâmica do poder só pode ser compreendida em termos relacionais, ou seja, confrontada com outro poder, e, regra geral, desenvolve-se de forma
antagônica ou cooperativa:
25
23
“Poderes, quando confrontados, se antagônicos, tendem a entrar em conflito, ocorrendo a dominação de um e a subordinação de outro, mas, eventualmente, poderão se compor, evitando-se ou extinguindo-se o conflito, com abertura de caminhos para a
cooperação, do que resultará um reforço recíproco.
(...)
Portanto, se, por um lado, a evolução de uma relação de
antagonismo pode levar à debilitação e à extinção de um ou de
ambos os poderes em conflito, por outro lado, a construção de uma relação de cooperação, ao revés, pode levar, além do robustecimento de ambos, eventualmente, a uma nova e mais completa forma de integração”.26
O antagonismo baseia-se na competição que, embora propulsione o progresso, especialmente econômico, pode acarretar resultados desastrosos e imprevisíveis se mal administrada.
Na cooperação, o alcance ético é bem menos arriscado, pois as diversas expressões de poder são coordenadas por meio do diálogo, da concertação e do consenso, com base na acomodação das diferenças, na tolerância e na boa-fé.
Com a nação politicamente organizada, surge a idéia de soberania, de Constituição e de Estado de Direito, voltado, na visão positivista, ao cumprimento da legalidade, da submissão do agir à lei. A partir da evolução para o Estado Democrático de Direito, volta-se a atenção para a legitimidade do poder exercido, além da legalidade formal.
Assim, o conceito clássico de legalidade é ampliado e a juridicidade é redefinida para que a legalidade extrapole o conteúdo formal e possibilite sua moldagem às necessidades de conteúdo material, ligada à legitimidade e à democracia.
26
24 O controle dos atos avança com a evolução do princípio da responsabilidade para o princípio da responsividade. DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO explica essa passagem:
“Com efeito, se no Estado de Direito bastava a aferição da responsabilidade de um agente público sob o critério da legalidade, ou seja, se este havia atendido ou não às prescrições legais, no Estado Democrático de Direito impõe-se em acréscimo a aferição da resposta do agente sob o crivo da legitimidade, assim traduzida no conceito de responsividade.
Em apertada síntese, a responsividade consiste na obrigação de o agente público responder pela postergação ou pelo desvio da vontade popular democraticamente manifestada, fato que pode ocorrer mesmo que os parâmetros da legalidade estrita se encontrem satisfeitos”.27
A partir da ênfase democrática, da necessidade da participação popular na gestão do todo e do reconhecimento da força vinculante dos princípios constitucionais, o foco deixa de ser o poder atribuído ao Estado e passa a ser o poder originário e natural atribuído ao homem.
DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO brilhantemente conclui que as alternativas de cooperação atribuem poder ao homem e tornam-se instrumentos da liberdade, como segue:
“Assim, imerso em sociedades cada vez mais complexas, nas quais as manifestações de poder se diversificam, se reforçam e se multiplicam vertiginosamente, ultrapassando todas as previsões de geração a geração, situa-se o homem: um microuniverso dentro de um macrouniverso cratológico em expansão, à busca da realização de seus objetivos pessoais, que, inexoravelmente, mais e mais se defrontam e se entrecruzam com miríades de finalidades que lhe são externas e até adversas – individuais, grupais, nacionais etc. –
27
25
que não cessam de expandir-se e de ameaçar o seu espaço pessoal de liberdade.
Se, por um lado, é certo que, no curso da História, as relações de cooperação prosseguem, lenta, mas auspiciosamente, superando as de antagonismo, tendo possibilitado o progresso da civilização, o homem, como indivíduo, vê-se cada vez mais limitado, na complexidade da vida social contemporânea, para tomar decisões pessoais, posto que colhido e preso, em meio de um processo de insopitável proliferação de toda sorte de centros de poder – uma
poliarquia – como adequadamente a denominou MASSIMO
SEVERO GIANNINI.
Mas, por outro lado, também é certo que, se essas limitações, em constante surgimento, vierem a ser adequadamente gerenciadas pelas pessoas – algo que lhes é possível fazer, desde que definam seus objetivos pessoais em consonância (coordenação) com as constelações de poder que as cercam – os indivíduos poderão se tornar efetivamente mais livres para atingir certas finalidades individuais mais ambiciosas e com muito maior facilidade.
Compensa-se, portanto, com largueza, alguma perda de liberdade
individual, de que antes se dispunha para alcançar certos objetivos
– embora não necessariamente anti-sociais, mas apenas de difícil realização sob as limitações cratológicas impostas pela própria civilização – graças à possibilidade de expansão das alternativas de cooperação, continuamente abertas pelo progresso, na dinâmica desse fantástico universo do poder da vida contemporânea, tornando sempre possível alcançar finalidades simultaneamente
valiosas: para cada um (individuais) e para todos (coletivas).
Paradoxalmente, portanto, vê-se que o poder torna-se, afinal, um
instrumento de liberdade nas sociedades organizadas”.28
NORBERTO BOBBIO considera o trinômio “direitos humanos – democracia – paz” como modo ideal para a solução dos conflitos. Afirma que, “sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há
28
26
democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos”. 29
Quanto à extensão, o autor apresenta a paz no âmbito interior, relacionada com a moral, que engloba somente o indivíduo e sua legislação interna, seu dever para consigo mesmo, e também no âmbito exterior, onde a paz ganha conotação social, relaciona-se com o Direito e envolve o indivíduo e sua legislação externa num contexto, seus deveres para com os outros.
Em sentido jurídico, portanto, a paz social significa o fim de um conflito por meio de uma decisão heterocompositiva ou autocompositiva, que regula as relações futuras.
Nesse contexto, a solução autocompositiva, por meio de consenso, tem um espectro mais amplo de abrangência, pois além de dirimir o conflito jurídico, estanca também o conflito sociológico, tendo em vista que cessa a hostilidade entre os entes envolvidos, torna a relação mais produtiva e estável, e restabelece a confiança de que o pactuado será cumprido.