• Nenhum resultado encontrado

A memória coletiva na prática do Choro

No documento Vibrações das culturais da Escola do choro (páginas 132-138)

Neste tópico, procuro analisar de que forma os estudos de memória social poderão auxiliar na compreensão da perspectiva etnográfica como ferramentas para uma análise do conceito de Roda de Choro com seus conhecimentos, singularidades e aprendizados. O conceito de “memória coletiva” de Maurice Halbwachs guiará nossa abordagem no sentido de compreensão de sua presença no contexto educativo de sua prática na Roda de Choro.

A construção da memória musical do país elegeu uma prática musical – o choro – como fator de identidade de uma rede formada por diversos estratos sociais do Rio de Janeiro. Segundo a tese do professor e bandolinista Pedro Aragão, Halbwachs foi o primeiro intelectual a conceber a memória como construção coletiva, e, portanto, como objeto de estudos das ciências sociais (PERALTA, 2007 apud ARAGÃO, 2012). O conceito de “memória coletiva” possui em sua raiz a ideia de que a função primordial da memória, enquanto imagem compartilhada do passado é a de

promover um laço de filiação entre os membros de um grupo com base no seu passado coletivo, conferindo-lhes uma ilusão de imutabilidade, ao mesmo tempo em que cristaliza os valores e as acepções predominantes do grupo ao qual as memórias

166 LARA FILHO, I. G.; SILVA, G. T. da; FREIRE, R. D. Análise do Contexto da Roda de Choro com base no conceito de ordem musical de John Blacking. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, p.148-161, 2011.

se referem. (...) Halbwachs considera, assim, que a memória coletiva é o locus de ancoragem de identidade do grupo, assegurando a sua continuidade no tempo e no espaço (HALBWACHS, 2006).

Halbwachs considerou a lembrança como sendo “uma reconstrução do passado com a ajuda de dados tomados de empréstimo ao presente e preparados por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora já saiu bastante alterada”. Tendo como elemento formador das lembranças, as representações se baseiam em testemunhos e deduções produzindo um histórico extenso na memória de nosso próprio passado. Um exemplo desse processo de construção de uma memória coletiva, temos no primeiro livro escrito sobre o Choro em 1936 no qual as memórias de Alexandre Gonçalves Pinto, músico de Choro e carteiro aposentado relembra e descreve a prática do Choro com referências à suas práticas entre os séculos XIX e XX. A tese do professor Aragão (2012) sobre o livro de Pinto (1936) destacou exemplos que demonstram como seu autor recorria à memória coletiva para redigir alguns dos perfis biográficos do livro. É o caso do flautista Arthur Fluminense:

De saudosa memória foi carteiro, flautista dos bons. Dizia o que sentia em seu instrumento. Apesar de não o ter conhecido pessoalmente pude pegar algumas pequenas informações, sabendo que elle privou com os grandes flautas da antiguidade; sua morte causou grande claro entre seus amigos daquella época. (PINTO, 1936, grifo meu).

A lembrança musical em conexão com o aprendizado foi descrita por Halbwachs em duas modalidades: 1) lembrança ao cantar um tema musical e 2) reconhecimento de passagens do tema musical. Pelo “reconhecimento” a memória retém suas representações pelos movimentos no cérebro com o auxílio das notas sobre a pauta dos músicos. Para músicos ou para as pessoas que sabem ler a música, a lembrança se dá por poderem executá- la e outros por lido antes ou lendo agora a partitura, o reconhecerão quando o executarem. No caso do grupo de músicos, a memória musical se apresenta mais ampla e “bem mais segura do que a dos outros”.

Distinguimos no que foi dito dois modos; para as pessoas que não sabem nem ler a música, nem tocar ·um instrumento, de lembrar-se de um tema musical. Uns se lembram porque podem reproduzi-lo cantando. Outros se lembram porque já o ouviram e nele reconhecem algumas passagens. Consideremos agora duas maneiras ainda, porém desta vez para músicos ou para as pessoas que sabem ler a música, de se lembrar igualmente de um tema musical. Uns se lembram porque podem executá-lo, e os outros, porque tendo lido antes ou lendo agora a partitura, o reconhecerão quando o executarem. Entre essas duas categorias de músicos, dos

quais uns executam, e os outros escutam, ao mesmo tempo que se representam os símbolos musicais e sua seqüência, há a mesma relação entre aqueles que cantam uma ária, e os que a reconhecem, pela audição, ainda que nem uns e nem outros saibam ler a música. A memória musical, nos grupos de músicos, é naturalmente bem mais ampla e bem mais segura do que a dos outros. Estudamos um pouco mais de perto qual parece ser o mecanismo para quem examina esses grupos de fora. (HALBWACHS, 2006).

A recordação, a saudade e a temática da memória tem feito parte da narrativa cultural do Choro nos títulos de seus autores em suas mais famosas obras presentes no repertório das Rodas de Choro. São exemplos os choros “Ainda me recordo” (Pixinguinha e Benedito Lacerda), e “Reminiscências” (Jacob do Bandolim), assim como o tango “No meu tempo era assim” (Eduardo Souto) ou em títulos de valsas como “Terna Saudade” (Anacleto de Medeiros), “Recordação” (Radamés Gnattali), “Saudade” (Ernesto Nazareth), “Juventude saudosa” (Amador Pinho), dentre outras167.

Um exemplo de abordagem da memorização aplicada às metodologias de ensino e aprendizagem do Choro foi dada na entrevista do violonista e professor Maurício Carrilho da Escola Portátil de Música. Como princípio educativo inicial, Carrilho (2011) ressaltou a idéia de reunir e convidar os músicos para o ensino do Choro como tem sido o objetivo da instituição. Com a adoção de atividades de ensino e aprendizagem utilizadas na prática instrumental do Choro, destacou um “sentido oposto” ao que as escolas estão fazendo quanto ao uso da partitura. Diante das dificuldades encontradas no aprendizado de alunos da Escola Portátil, a partitura é utilizada somente após “o aluno experimentar, tocar junto, ouvir e repetir o que está ouvindo”. Assim, sua proposta objetiva suprir a carência no que se refere ao uso da partitura.

“Ela (a partitura) é uma referência para o cara estudar, mas os fundamentos do gênero, ele não aprende ali, tem de experimentar, tocar junto, ouvir e repetir o que ele tá ouvindo. Ouvir, entender e reproduzir para depois fazer o lance dele. Então a gente só entrega a partitura no final da aula, primeiro o cara toca, toca de ouvido, aprende que a harmonia é essa – toca aí! Eles vão tocando, depois a gente dá a partitura, se esquecer, aí tem como lembrar. Ele não vai tocar o que está escrito, vai tocar o que aprendeu, o que está escrito é mais uma referência. A gente está fazendo esse caminho inverso, para dar às pessoas esses fundamentos que as escolas tradicionais não conseguem dar. Acho que esse é o grande fecho da entrevista. São essas coisas todas acontecendo. (CARRILHO, 2011)”

167 São exemplos de títulos do repertório das Rodas de Choro que evocam a memória e a saudade: “Saudades de Ouro Preto” (Antenógenes Silva), “Saudade eterna” (Santos Coelho), “Recordando” (João Pernambuco), “Sítio da Saudade” (Mauro Silva), “Revendo o passado” (valsa de Freire Junior), “Saudades suas” (Tia Amélia), “Meu passado” (Zé do Carmo), “Saudades de alguém” (Zé do Carmo), “Saudade de Limoeiro” (Silva Torres, o Jacaré do cavaquinho), “Saudosinho” (Silva Torres), “Saudades do Rio Grande” (valsa de Levino da Conceição), dentre outras.

A memória se insere nos processos cognitivos do ensino e aprendizagem musical e nos remete ao conceito de “audiação” de Edwin Gordon, designado como sendo a “capacidade de um indivíduo em ouvir e compreender a música, mesmo quando o som não está fisicamente presente” (GORDON, 2000)168. Em sua obra Teoria de Aprendizagem Musical, Competências, Conteúdos e Padrões, publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian (2000), Gordon caracteriza o processo de assimilação de conhecimento musical como sendo semelhante ao da língua materna. Padrões tonais e padrões rítmicos são os componentes do que se ouve no processo de aquisição de vocabulário musical e a memória exerce papel relevante no processo de assimilação e reconhecimento. O “padrão” é a unidade musical menor que somos capazes de percepcionar para desenvolvermos a compreensão da estrutura tonal ou rítmica de uma obra e requer habilidades específicas em sua fixação pela memória.

Os Padrões rítmicos incluem os seguintes sistemas rítmicos para associar nomes às durações, processo no qual a memória também é trabalhada (item 3):

1. Uso dos próprios nomes das durações das figuras;

2. As sílabas e nomes baseados nos nomes das durações das figuras;

3. Palavras mnemônicas169 e palavras relacionadas com atividades eurítmicas;

4. Sílabas baseadas em funções de tempo, tais como macrotempos e microtempos.

Gordon cita 8 tipos de audiação nos quais temos o “recordar” como centrais de cada etapa a ser desenvolvida:

1. Escutar música; 2. Ler música; 3. Escrever música; 4. Recordar e executar; 5. Recordar e escrever; 6. Criar e improvisar; 7. Criar e improvisar;

168 GORDON, Edwin. Teoria de Aprendizagem Musical, Competências, Conteúdos e Padrões. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.

8. Criar e improvisar.

Quanto à importância do “ouvido interno”, Keith Swanwick (1994)170 o define como uma “biblioteca dinâmica” das possibilidades musicais da qual lançamos mão na performance musical e enquanto ouvintes de música. O ouvido interno tem sido utilizado pelo músico de Choro sendo referido como “o tocar de ouvido”, habilidade desenvolvida durante a trajetória do músico e utilizada no aprendizado de repertório, execução/interpretação musical, improvisação musical, e composição dentre outros aspectos. A percepção do músico de Choro requer habilidades especiais nas quais a velocidade de processamento de suas improvisações, por exemplo se dá em paralelo a modulações em tempo binário, geralmente em andamentos de rápida execução. A execução e interação em grupo são elementos constituintes da Roda de Choro com sua espontaneidade e cultura. Quanto aos requisitos básicos para qualquer pessoa tocar um instrumento, Gordon ressaltou a importância da interação em grupo destacada em dois itens: A) O escutar cuidadoso e B) A observação perceptiva.

A abordagem do professor Maurício Carrilho adota elementos metodológicos do aprendizado não-formal quanto à forma de ensino do Choro. Com o estímulo ao desenvolvimento da compreensão auditiva, interação social e atenção aos aspectos transmitidos de geração a geração, traz à luz itens ausentes nas codificações e compreensão na leitura de uma partitura musical. Conceitos de ensino e aprendizagem musical nas teorias de Edwin Gordon(2000) e Keith Swanwick (2003) também buscam a compreensão auditiva e o uso da memória como ferramentas de trabalho. Tais elementos poderão ser observados e inseridos em uma sistematização dos saberes com o intuito de sua aplicação no processo de ensino e aprendizagem do Choro.

A interação social e a memória coletiva foram abordados pela professora de filosofia Jeanne Marie Gagnebin do Programa complementar da disciplina D-21, Conteúdo e Didática da História, do Curso de Pedagogia Unesp/Univesp em sua entrevista sobre “a linguagem como elemento formador do homem e o papel da memória neste processo; a memória coletiva na perspectiva de Walter Benjamin e as articulações entre memória, narrativa e História” (2012)171. Para a professora Jeanne Marie, a memória se refere à identidade e “se a

170 SWANWICK, Keith. Ensino Instrumental enquanto ensino de música. Cadernos de Estudo – Educação Musical Nº 4/5. Escola de Música da UFMG. São Paulo: Atraves, 1994.

171 Nesta entrevista da professora de filosofia Jeanne Marie Gagnebin, são tratados os seguintes temas: a linguagem como elemento formador do homem e o papel da memória neste processo; a memória coletiva na perspectiva de Walter Benjamin e as articulações entre memória, narrativa e História. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GYlSTcaqIC0 acesso em 17/07/2017, às 20:16 horas.

perdermos, não saberemos quem somos”. Destacou também que “seres anônimos são seres que não possuem história” e que “a identidade é ligada à história e à narração”.

A história é um processo narrativo e a identidade é o ato de narrar a si mesmo. A construção de identidade é feita pela descrição narrativa. Nossa memória sendo ligada à linguagem, nós falamos e narramos. A memória afetiva nas crianças exerce importância na formação de imagens de símbolos verbais na infância. A memória humana é constituída pela relação entre a linguagem, a memória, a história e o tempo. Tal relação diferencia o homem dos animais e indica a existência de uma memória consciente e uma memória inconsciente. Com esse processo, a memória constrói a nossa história. (GAGNEBIN, 2012)

Quanto à memória social e a memória individual, Gagnebin descreveu o homem como um ser social e por tal motivo, não se poderá separar sua história individual de sua memória social. Como a família é ligada à comunidade social a qual pertence o homem, tal aspecto indica que somos seres políticos. Por exemplo, as memórias de uma criança que nasce na África são diferentes daquela que nasce no Brasil, ou Suíça, são por definição diferentes, pois o entorno social é diferente. Diante do consumismo e individualismo atuais, poderá se acreditar na falsa percepção de uma história individual, o que não é verdade pois existe uma história maior à qual nos referenciamos.

Constatamos a construção coletiva pela memória como indicativo de identidade cultural no exemplo de Halbwachs quando citou Beethoven em suas últimas composições. Mesmo surdo e aparentemente isolado do convívio social, suas limitações se revelavam somente na aparência. Na realidade, seu engajamento se intensificava por meio de sua composição pela qual expressava a linguagem do grupo social ao qual fazia parte, o seu “habitus” revelado.

Beethoven, atingido pela surdez, produziu entretanto suas mais belas obras. Será suficiente dizer que, vivendo dali em diante de suas lembranças musicais, estivesse encerrado num universo interior? Isolado, ele estava, todavia, apenas na aparência. Os símbolos da música nele se conservavam, em sua pureza, os sons e as combinações dos sons. Mas ele não os havia inventado. Era a linguagem do grupo. Estava, na realidade, mais engajado do que nunca, e do que todos os outros, na sociedade dos músicos. Jamais esteve só. E é esse mundo pleno de objetos, mais real do que o mundo real, que ele explorou, foi nele que descobriu, para os que o habitavam, regiões novas, mas que nem por isso faziam parte do domínio deles, e onde se instalaram de imediato com pleno direito. (HALBWACHS, 2006).

O engajamento, a interação social, o ritual e cultura de uma Roda de Choro nos oferece um rico ambiente de estudo para o qual a abordagem etnográfica e a observação

participante buscará conhecer como se processam os aspectos relacionados ao ensino e aprendizado musical na cultura.

No documento Vibrações das culturais da Escola do choro (páginas 132-138)