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A constituição do habitus fará sentido em um contexto como um espaço social, que na análise de Bourdieu é indicado o conceito de campo, no qual se desenham a trajetória dos agentes (ROGÉRIO, 2011). Os agentes portadores de um mesmo habitus tendem a agrupar-se àqueles que possuem as mesmas disposições configurando uma situação comparável a um campo magnético. Para o funcionamento do campo é necessário haver disputas, lutas de poder, agentes que possuam o mesmo habitus relacionado ao conhecimento e reconhecimento de suas regras específicas de jogo. De acordo com Costa (2010), o campo é “a maneira por meio da qual os agentes se deslocam de acordo com as regras”.

A gênese do conceito de campo pode ser pensada como o resultado de uma necessidade de situar os agentes portadores de um habitus dentro do espaço no qual esse mesmo habitus havia sido engendrado sob o pecado original da dominação e que, para tanto, pressupôs um arcabouço estável no qual essa dominação se reproduziria.

Quando esboça as relações entre um artista - um criador imbuído de um projeto intelectual - e um espaço onde essa obra será recebida, Bourdieu começa a construção de seu horizonte teórico mais geral, discorrendo sobre o campo intelectual e suas características. Neste texto encontram-se já esboçadas diversas propostas que o autor iria enriquecer e desenvolver futuramente. De fato, o foco está na relação entre o criador, a obra e o campo no qual ele estava inserido: a idéia é entender as relações de força que se estabelecem entre essas instâncias e de que maneira elas interferem na produção de um artefato cultural. Assim, as relações entre os diversos campos - intelectual, político e outros – não são longamente analisadas e não se pode ainda sistematizar uma teoria geral dos campos. Bourdieu delimita espaços sociais específicos nos quais o produto do trabalho de um intelectual encontra pessoas capazes de compreender esse resultado artístico em seus próprios termos, e só neles. (MONTAGNER, 2011)13

O campo formado pelos agentes possuidores de um “habitus do choro” é caracterizado por indivíduos que incorporaram disposições culturais de mesma origem social, relações sociais, e compartilham de mesmas heranças culturais. A análise do campo independe das características de seus ocupantes. As formas de ensino e aprendizagem, seja pela música escrita ou pela tradição oral em contextos formais, não-formais ou informais construíram uma tradição cultural na qual a identidade brasileira tem sido um requisito de legitimação. Apesar do campo musical do choro lutar por reconhecimento e também se constituir por lutas internas e externas de poder simbólico, é inegável sua elaboração e organização. A cultura musical do choro ainda não sistematizada em um currículo formal de ensino e aprendizagem pertence a um campo que não surgiu de maneira espontânea. “A educação é ela mesma um artefato cultural, e como tal, por definição, algo de elaborado, organizado” (SANDRONI, 2000). O desafio é desvelar as ferramentas e mecanismos da cultura musical do choro para que seu conhecimento e reconhecimento permita sua justa legitimação em outros campos de atuação da cultura.

É importante considerar que o campo é caracterizado tanto pelas relações de força resultantes das lutas internas e pelas estratégias em uso, quanto pelas pressões externas a ele. Os campos se inter-relacionam, e possuem uma autonomia relativa, pois cada um deles estabelece as suas próprias regras, embora sofra influências e até mesmo seja condicionado por outros campos, influências estas sempre mediadas pela estrutura particular do próprio campo. (PEREIRA, 2012)

13MONTAGNER, Miguel Ângelo; MONTAGNER, M. I. A teoria geral dos campos de Pierre Bourdieu: uma leitura. Tempus: Actas de Saúde Coletiva, v. 5, p. 255-273, 2011.

A concepção do choro como uma “teia de significados, um conjunto de gêneros musicais refere-se a um processo característico do campo do choro. Este processo envolve uma verdadeira “rede” de mediadores formada por diversos atores sociais, que ao longo deste período se entrelaçam através de uma teia complexa que envolve fatos sociais, memória, história, interpretação, paixão musical, entre outros elementos. (GEERTZ, 1978 apud ARAGÃO, 2011)14 A conexão promovida pelas mediações compõem as relações sociais no campo e seus traços nos indicam uma característica cultural da atividade musical. A história do choro teve a participação de diversas categorias de agentes tais como intelectuais, músicos, pesquisadores, radialistas, dentre outros. O campo contou com o movimento conjunto de categorias de agentes que possuíam interesses comuns nos jogos de poder simbólico para a legitimação da música popular brasileira na qual o choro esteve presente como um conjunto de gêneros musicais executados em solo brasileiro. As dualidades decorrentes dessas interações ressaltaram discussões de pesquisadores e estudiosos do choro no que se refere aos saberes teóricos e saberes práticos representados pelas atividades do “habitus conservatorial” e do habitus do músico de aprendizado não-formal, por exemplo. Nesse sentido, diversas temáticas foram relatadas por vezes de forma polêmica sobre a fronteira entre a música de concerto e a música popular, os contextos das práticas musicais da rua e da casa, do aprendizado formal versus aprendizado não-formal, da tradição escrita versus tradição oral, da tradição e da modernidade, de identidade (do que é brasileiro e do que é estrangeiro), da “experiência da escola” verso “experiência de vida”, dentre outros.

“O termo mediação [...] designa tudo o que intervém entre uma obra e sua recepção e tende a substituir “distribuição” ou “instituições”. A partir daí, pode-se compreender, num primeiro sentido, uma sociologia do mercado, dos intermediários culturais, dos críticos, das instituições.”

“Podem-se distinguir várias categorias de “mediadores”. Nós nos interessaremos sucessivamente pelas pessoas, pelas instituições, pelas palavras e pelas coisas, embora elas estejam, na realidade, estreitamente conectadas.” (HEINICH, 2008)15

A analogia do conceito de campo de Bourdieu a um campo eletromagnético por Peters(2009) relatou os aspectos das ações e incorporações históricas do habitus referindo-se também a sua leitura quanto suas práticas.

14 O conceito de “teia de significados” foi trabalhada por antropólogos como Geertz, para quem a etnografia seria “uma atividade eminentemente ‘interpretativa’, uma ‘descrição densa’, voltada para a busca de ‘estruturas de significação’ (Geertz 1978: 20-25).

15 HEINICH, Nathalie. A sociologia da arte. Tradução de Maria Ângela Caselato e revisão técnica de Augusto Capella. Bauru, SP: Edusc, 2008. 178 p.; 21 cm.

A ênfase no relacionamento entre a história coisificada/reificada e a história incorporada acarreta também a tese de que a configuração histórica das práticas sociais não constitui nem a resultante direta dos “programas” (2001b: 206) de pensamento, percepção e ação constitutivos de um dado habitus formado pela experiência acumulada do agente e, dessa forma, relativamente autônomo quanto às características de um dado contexto presente de conduta, nem, ao contrário, como poderia supor uma perspectiva externalista ou behaviorista, uma resposta a um estímulo situacional imediato que poderia ser prevista independentemente do conhecimento da personalidade socialmente constituída do ator. As práticas constituem precisamente o produto do encontro entre essas duas “séries causais independentes” (2001b: 360), isto é, entre as propensões práticas inerentes a um habitus e as coações estruturais de uma situação sócio-histórica na qual o indivíduo está envolto e que não se reduz nunca a um cenário microscópico de interações face- a-face, mas envolve os condicionamentos e determinações derivados da imersão do agente em um campo mais abrangente de relações sociais objetivas, o qual, à maneira de um campo eletromagnético, exerce necessariamente seus efeitos sobre qualquer das entidades que atuam dentro de seu raio de alcance, o que faz com que os movimentos de tais entidades (e.g., as ações de Fulano) jamais possam ser explicados apenas pela referência às suas propriedades intrínsecas (e.g., o habitus de Fulano). (PETERS, 2009)16

Dependendo do cenário de socialização na qual ocorrem as interações, posicionamentos estruturais e simbólicos no campo, poderão surgir habitus específicos. Em caso de multiplicidade de cenários de socialização, classificação e atuação dos agentes, cenários e posicionamentos estruturais e simbólicos, poderão surgir “habitus de classe”, “habitus próprio de um campo específico”, “habitus de gênero” ou até mesmo um “habitus nacional”. Seguindo esse princípio, os conceitos de habitus relacionados à presente temática nos conduziriam à investigação relacionada ao choro e seu potencial educativo direcionados a um “habitus conservatorial”, “habitus do músico de choro”, “habitus do mestre”, dentre outras categorias a serem analisadas no desenvolver da análise.

Não obstante, a asseveração da inércia relativa como propriedade fundamental do habitus é, segundo Bourdieu, compatível com o reconhecimento da multiplicidade de cenários de socialização, classificação e atuação dos agentes, cenários e posicionamentos estruturais e simbólicos dos quais derivam condicionamentos múltiplos que podem coexistir, apresentando graus variáveis de integração e/ou tensão interna, em um mesmo habitus, um mesmo sistema de disposições constituído a partir da intersecção de modalidades socializativas diversas, mas cujas dimensões constitutivas podem ser analiticamente recortadas conforme os propósitos de uma análise determinada, o que permite falar em um habitus de classe (digamos, burguês ou pequeno-burguês), um habitus próprio a um campo específico (sacerdotal, científico, artístico), um habitus de gênero ou até mesmo um habitus nacional. (PETERS, 2009)

16 PETERS, Gabriel. Configurações e reconfigurações na teoria do habitus: um percurso. In: XIV Congresso Brasileiro de Sociologia, 2009, Rio de Janeiro. XIV Congresso Brasileiro de Sociologia, 2009.

Diante do perigo de um reducionismo na análise de um recorte cronológico do choro, com base em referenciais históricos de uma época, cabe ressaltar a reflexão sobre os limites de seu campo. A relativa sensação de fechamento de um campo poderá ser inadequada diante de sua compreensão como uma realidade em constante movimento e historicamente atualizada de modo contínuo.

“... o conceito de campo, embora seja tomado por Bourdieu como referente a uma realidade perpetuamente em movimento e historicamente atualizada de modo contínuo por suas “partículas” constituintes (inclusive no que tange a seus limites formal ou informalmente estabelecidos), possui, entretanto, uma conotação de relativo “fechamento” e coerência (fronteiras bem demarcadas, uma certa estabilidade, etc.) que parece inadequada para captar a enorme complexidade, multiplicidade, multiplexidade, flexibilidade, fluidez, contingência e instabilidade das relações sociais contemporâneas em tempos de globalização acentuada e capitalismo mundial pós-fordista em expansão. (PETERS, 2009)