• Nenhum resultado encontrado

A MEMÓRIA SOBRE OS HOSPITAIS DO REINO, DE JOSÉ JOAQUIM SOARES DE BARROS

1.4. ALGUMAS IDENTIDADES DA PRÁTICA DA ENFERMAGEM

1.4.3 A MEMÓRIA SOBRE OS HOSPITAIS DO REINO, DE JOSÉ JOAQUIM SOARES DE BARROS

“… quanto o Estado vigia sobre a vida dos homens, e que elle não aprecia os Hospitaes pelo muitos, que alli entrão a curar-se; mas sim pelos muitos, que dalli saem curados”.

José Joaquim Soares de Barros, in: Memoria sobre os Hospitais do Reino, p. 142

No Tomo I das Memórias Económicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa241, José

Joaquim Soares de Barros242 tinha publicado duas memórias: uma sobre os benefícios do sal e outra

239 - São elas: que toda a gente é peregrina neste mundo, que se deve agradecer a Deus o dom e os benefícios da vida e de não ter tido uma morte súbita, que se deve reconhecer os inumeráveis pecados e faltas cometidas durante a vida e que, por isso, se merece padecer e ter paciência para sofrer os males e a dor da enfermidade e, finalmente, que se encomende a Deus com fé, desprendendo-se das coisas temporais.

240 - Segundo GRAÇA, Luís - Apresentação In SANT’IAGO, Diogo de, Frei, op. Cit., p. III)

241 - SILVA, Innocencio F.; ARANHA, Brito - Diccionario Bibliographico Portuguez (vol.VI - letras M-P, pp. 191-195). Estas memórias foram publicadas em cinco volumes, na oficina da Academia Real das Sciencias, entre 1789 e 1815. Incluem as memórias antes da publicação na coleção geral. As datas das publicações foram as seguintes: Tomo I (1789) com 20 memórias; Tomo II (1790) com 14 memórias; Tomo III (1791) com 19 memórias; Tomo IV (1812) com 20 memórias; Tomo V (1815) com 12 memórias

sobre a população243 e, no Tomo IV, uma terceira, sobre os hospitais244. Como advertência prévia,

convém referir que a data da publicação desta última memória é de 1812, porém, o texto é muito anterior, datando, provavelmente, do período entre 1781 e 1788 quando, já residente em Lisboa, o autor começou a colaborar regularmente com a Academia Real das Ciências.

Na introdução à sua “Memória sobre os Hospitais do Reino” diz-nos Soares de Barros que, em Portugal, os hospitais sempre tinham sido concebidos como obras de caridade que cumpriam, ademais, duas funções sociais: a “hospedagem” e a boa “guia”, que se dava ao viajante, fosse men- digo, peregrino ou comerciante. Em suma, uma obra de caridade que consistia em “dar pouzada”, mas que era praticada com excesso de piedade. Nesse sentido, M. Antónia Lopes refere que, nos inícios do seculo XIX, “ era vulgar pensar-se que, com os progressos da civilização, os hospitais de- sapareceriam à medida que a miséria das populações se atenuasse245”

Em clara rutura com esta mentalidade, o autor propôs-se aplicar, numa atitude verdadei- ramente inovadora para a época, a observação e o cálculo matemático para demonstrar a utilidade social e política de uma boa rede de hospitais vocacionados para a cura dos enfermos. O argumento político de Soares de Barros assentava na ideia de que os principais deveres que o Estado devia prosseguir, de acordo com as orientações da verdadeira Economia Política, eram o “sustento, ves- tido, e conservação da saúde”.

Como ponto de partida, o autor deveria calcular o nível de saúde da população. Para tanto, utilizou um método que lhe permitiria conceber um plano geral a partir da enunciação de um con- junto de onze perguntas para as quais procuraria, de seguida, as respostas adequadas.

Para responder à pergunta sobre qual era a população que, numa situação de normalidade, recorria aos hospitais anualmente, valeu-se dos dados do hospital de Setúbal cuja realidade conhe- cia muito bem, e chegou à conclusão que a relação entre enfermos e população correspondia ao fator 8,74. Com base nos números que se conheciam para a população do Reino – à época estimada em 3.600.000 - concluiu que o número total de pessoas que adoeciam por ano, no país, era de 411.899. A esse número retirou o número total de crianças com menos de sete anos - que não recorriam aos hospitais – e que correspondiam à terça parte da população, obtendo o número de 274.600 doentes. Tendo em linha de conta que, nos hospitais entravam, em média, três vezes mais homens do que mulheres, procedeu à correção do número anterior segundo essa ponderação, che- gando a um novo número: 183.066. De seguida, como uma parte significativa – cerca de metade -

243 - BARROS, José J. - Considerações sobre os grandes benefícios do sal commum em geral, e em particular do sal de Setubal, comparado

experimentalmente com o de Cadix, p. 10 a 31 e BARROS, José. J. - Memoria sobre as causas da differente população de Portugal em diversas epochas da monarchia, p. 123-151.

244 - BARROS José J. - Memoria sobre os Hospitais do Reino. In Memórias económicas da Academia Real das sciencias de Lisboa, p. 128- 142

dos “habitantes das cidades, e villas” não iam aos hospitais - população que se calculava em 850.000 pessoas - o número de doentes que lhe correspondia era de 97.254. Abatendo este montante ao número anteriormente obtido, chegou à conclusão de que o total de doentes que, anualmente, davam entrada nos hospitais era de 134.439 entre homens e mulheres, ou seja, perto de 12 mil por mês, 400 por dia.

Para fazer o cálculo do número de doentes que podiam via a utilizar os hospitais, em perí- odos de menor ou maior incidência de doenças, estabeleceu um rácio de 1 para 3, ou seja, se nos anos “mais doentios” o hospital de Lisboa tinha 2.000 camas, nos “menos doentios” teria cerca de 700 camas, sendo o número ordinário das camas 1.350, após as correções, haveria, respetiva- mente, 2.300, 800 e 1.150 camas. Utilizando o fator de 8,74 e o método seguido no ponto anterior, o autor concluiu que o número de enfermos em anos doentios andaria à volta de 167.857.

Na posse destes números e a partir da aplicação da fórmula “diminuir as distâncias na razão inversa da respetiva povoação”, o autor elaborou um mapa com a distribuição geográfica dos hos- pitais por distritos, de forma a responder às necessidades concretas das populações. Por outro lado, para fazer uma estimativa das despesas dos hospitais, partiu do princípio que, em média, um do- ente permanecia um mês no hospital e que a diária orçava em cerca de 4$000 réis; assim, os gastos dos hospitais em anos ordinários seriam de 1.344$390 cruzados, ascendendo a 1.678$570 cruzados em anos doentios. As despesas poderiam, todavia, reduzir-se com recurso ao método de Chamous- set.

Após ter traduzido em números a realidade da saúde no Reino, Soares de Barros formula uma nova questão: como se podia demonstrar a utilidade destas despesas para o “benefício dos Povos” e o “augmento da força pública”? A resposta era conclusiva: bastaria, para tanto, comparar com o “numero de enfermos o menor numero de mortos” para se ter “a expressão da porção da força publica restaurada no numero de indivíduos restituídos à saúde”.

A sétima pergunta do método consistia em saber quais as vantagens para a população de um “bom regime” dos hospitais. Para o autor, a resposta era obvia: “Aproveitará sempre, pois que o numero dos mortos será na razão inversa do mesmo cuidado”.

Ademais, tudo isto podia demonstrar-se por meio da “observação”, verificando a diferença entre a “mortandade dos paizanos, comparada com a dos Soldados”. De acordo com os cálculos que apresentava, baseados nos dados do hospital de Setúbal, a relação era de 17/1, sucedendo o mesmo noutros hospitais e nas estatísticas de Espanha e Cartagena, apenas porque há “melhor trato dos Soldados”; bastaria que essa diferença desaparecesse para ganhar o “Estado no augmento da População”.

Do mesmo modo, poder-se-ia demonstrar que,do contrário, não “resulta nenhuma utili- dade para o Estado”?Não chegaria a caridade se o Estado fosse mal servido, isto é, se o total dos

homens restituídos à saúde não excedesse o total dos homens que nas suas “Casas” ou “Cabanas”, sem medicina, escapavam às moléstias; neste caso, a população não ganharia nada, nem “se aug- mentão interesses da Humanidade”.

A penúltima questão era colocada nos seguinter termos: seria possível, através da relação entre o número de enfermos e de mortos, demonstrar a boa ou má administração dos hospitais? O autor responde afirmativamente, mas remete a demonstração da resposta para o momento em que as administrações sejam obrigadas a prestar contas, através da apresentação das estatísticas anuais, do número de enfermos, de mortos, de doenças, de acidentes, do tempo de demora no hospital e do total dos gastos.

Finalmente, qual seria o melhor modelo de governo dos hospitais? Deveria haver uma Inspeção-geral sobre todos os hospitais? Um “mesmo centro” que os controlasse a todos e, tam- bém, como dirá noutro ponto, uma «Authoridade Fiscal» que sobre eles possa “julgar o que con- vem fazer”?

Segundo Soares de Barros, a resposta acima colocadas, permitiriam formular “hum plano de administração geral, “involvendo com as fundações da Charidade as utilidades do Estado, e apli- cando a tudo a mesma regra nos diversos lugares do Reino”, seguindo três máximas: “diminuir o numero dos Hospitaes, fazêlos menos sumptuosos, e dividilos”. Segundo as suas palavras, aqueles princípios eram os que, de melhor, se praticavam na Europa não sendo, pois, mera especulação mas, pelo contrário, casos comprovados.

Soares Barros aproveita ainda para elogiar os pequenos hospitais portugueses, onde não havia desordens e se praticava a verdadeira caridade, para afirmar que os hospitais eram cada vez mais necessários, porque cada vez havia mais desigualdades: “o pobre he cada vez mais pobre com- parado com os ricos”, o “rico foge do pobre, e o pobre não larga o rico”. Além do mais, a enfermi- dade era inevitável, devendo o Estado preveni-la através de legislação sobre a ociosidade, os des- cuidos e a mendicidade.

Termina afirmando que a rede hospitalar deveria ser regulada a partir de um centro admi- nistrativo, devendo as suas funções ser conhecidas, através de estatísticas, para melhor se poderem ajustar às necessidades da população. Estava Soares Barros convencido que estas regras poderiam mesmo levar a uma melhor motivação, mais estímulo e confiança, fazer “mais vivos os cuidados de semelhantes empregos” e, deste modo, “se venha a conhecer, o que se deve aos sujeitos, que pelo zelo, e pelos talentos se distinguem nesta Faculdade”.