• Nenhum resultado encontrado

UM CASO DE MODERNIDADE: OS HOSPITAIS MILITARES

As primeiras referências, do ponto de vista normativo, sobre os cuidados aos feridos e en- fermos da guerra, surgem no Regimento do Hospital Real de Todos-os-Santos (1504) e, as notícias sobre o acompanhamento nos cuidados dos militares, atribuem aos irmãos hospitaleiros de S. João de Deus a responsabilidade do Hospital do Castelo de S. Jorge (1580), na altura propriedade da união das Coroas de Portugal e Espanha210.

Terá sido, porém, com a guerra da restauração, que se implantou uma rede de hospitais militares, ao longo da raia, para apoiar o esforço de guerra. Construídos de raiz ou adaptados de antigos conventos, todos eles ficaram a cargo dos irmãos de S. João de Deus, fossem hospitais de campanha ou hospitais de retaguarda. Os primeiros encontravam-se junto das principais praças e os segundos serviam, não só, de apoio à distância, dos feridos nos campos de batalha, como tam- bém de assistência geral aos militares.

A estrutura orgânica destes hospitais compreendia, de uma forma geral, uma portaria, en- fermarias, sala de operações (hospital de sangue), casas de despejo (latrinas), botica, capela, servi- ços de alimentação e uma cerca para quintal de plantas medicinais e cemitério.

A administração estava a cargo dos irmãos hospitaleiros aos quais competia, também, o serviço nas enfermarias. Eram apoiados por um almoxarife, um fiel, caneiros, forçados e lavadeiras. O serviço de intervenção era assegurado por médicos e cirurgiões e o serviço religioso por sacerdo- tes. Os irmãos seguiam algumas orientações e protocolos, prescritos pela Ordem de que é exemplo, em meados do século XVIII, a Postilla Religiosa e Arte de Enfermeiros, da autoria de Diogo de San- tiago, mestre de noviços do hospital-convento de Elvas (1741).

No início do seu reinado, D. João V, através do Regulamento de 28 de Junho de 1706, retirou aos irmãos hospitaleiros a função administrativa dos hospitais, tendo, a sua gestão, sido entregue a oficiais régios (almoxarifes, escrivães e despenseiros). Os irmãos hospitaleiros ficaram apenas com a responsabilidade de prestação de cuidados aos enfermos.

Durante o consulado pombalino, com a reforma do exército pelo Conde de Lippe, foram introduzidas novas normas, de que nos dá conta o Regulamento dos Serviços dos Hospitais (1765). Os irmãos hospitaleiros, contudo, continuaram a exercer um papel importante como enfermeiros.

No final do reinado de D. José, com a criação das Aulas de Anatomia (1773), alguns hospitais assu- miram o papel de hospitais-escolas, abrindo-se ao ensino da cirurgia, tendo sido pioneiro o Hospital de Almeida211.

Nos finais do século XVIII, com a fundação do Hospital da Marinha (3 de Outubro de 1797 e reconfirmado em 22 de Setembro de 1801), a direção da assistência prestada aos enfermos pas- sou dos irmãos hospitaleiros para os militares.

O documento político mais relevante do Antigo Regime, sobre a organização dos hospitais militares em Portugal – verdadeiro protótipo de organização hospitalar - foi o Regulamento para os Hospitais Militares, enquadrado por um alvará régio do príncipe regente D. João VI, da autoria de António de Araújo de Azevedo, Conde da Barca, na altura Ministro e Secretário de Estado dos Ne- gócios Estrangeiros e da Guerra, que derrogava o anterior regulamento de 7 de Agosto de 1797212

e que viria a ser atualizado em 1816, para servir de “governo para os Hospitais Militares dos Reinos de Portugal e Algarves” 213.

Estamos diante de diplomas com um enorme significado político e reformista, posto que definem uma nova forma de organização e funcionamento dos hospitais que passam a ser vistos como “casas” de cura e que, por isso, obedecem a lógicas de trabalho e gestão, de recursos mate- riais e humanos, completamente novas no plano funcional e, consequentemente, nos planos jurí- dico e político.

O sobredito regulamento aparece dividido em três secções: a primeira secção trata das ca- tegorias dos imóveis que acolhiam as unidades hospitalares, dos móveis desses mesmos estabele- cimentos e da circulação e transporte dos doentes e feridos; a segunda secção regula o pessoal afeto aos hospitais, as visitas médicas aos doentes e as orientações sobre as dietas e rações e a terceira secção, por sua vez, ocupa-se da administração e governo dos hospitais. Ou seja, é um diploma cuja regulamentação abrange, não só, a conceção e a utilização dos espaços, os atores intervenientes no processo da cura e os procedimentos de protocolo médico como, também, os recursos envolvidos e a administração stricto sensu dos hospitais, a cargo de funcionários autóno- mos do grupo de profissionais da saúde.

Consoante o público a que se dirigiam, os hospitais poderiam seriam “permanentes”, se estabelecidos junto dos quartéis e vocacionados para tratarem os militares das guarnições, em tempo de paz, e receberem, igualmente, os que estivessem doentes ou feridos, em tempo de

211 - Idem, p. 122

212 - ALVARÁ de 27 de Março de 1805. In SILVA, Antonio Delgado da- Collecção da Legislação Portugueza: desde a última compilação

das Ordenações: legislação de 1802 a 1810, p. 308-340.

213 - ALVARÁ de 14 de Junho de 1816 In SILVA, Antonio Delgado da- Collecção da Legislação Portugueza: desde a última compilação das

guerra. Seriam provisórios (“interinos”) se destinados a acompanhar as campanhas de guerra, caso em que seriam instalados, tanto quanto possível, próximos dos teatros das operações (quartéis generais, cidades ou vilas), podendo ser fixos ou ambulantes, sendo estes últimos destinados a prestar os primeiros socorros214.

Nos hospitais permanentes, cuja organização aqui nos interessa, por corresponder à orga- nização-tipo, as enfermarias eram de quatro tipos: enfermarias para convalescença, enfermarias de medicina para o tratamento continuado (designadas por enfermarias de febres e de feridos), enfermarias de quarentena destinadas a doentes contagiosos e enfermarias de reserva, destinadas a receber doentes para purificar as enfermarias de tratamento. Em cada enfermaria, as camas te- riam um enxergão, um travesseiro e um ou dois cobertores, conforme as estações; a cada doente seriam distribuídos três pares de lençóis, quatro camisas, quatro barretes, um roupão, um prato, uma tigela, dois copos (um para beber, outro para os remédios), um escarrador e um urinol. As enfermarias poderiam ter, ainda, apisteiros215, comadres216, seringas de estanho e urinóis de vidro.

As latrinas eram construídas fora do edifício dos hospitais.

Para além das enfermarias, havia um depósito geral de remédios onde se arrecadavam e conservavam todos os medicamentos e um horto para a plantação de plantas medicinais.

A receção dos doentes era feita através de um registo do qual constava o nome, a gradua- ção, o lugar de nascimento e os nomes do regimento e da companhia a que pertencia o doente. Por sua vez, o termo de baixa, do qual devia constar a doença e a medicação ministrada, teria que ser assinado e datado pelo comandante da companhia e pelo cirurgião-mor.

Era o porteiro do hospital quem procedia ao internamento, depois do doente ser observado pelo cirurgião de serviço, que decidia sobre o seu destino, consoante fosse classificado como febri- citante, ferido, venéreo ou sarnoso. Depois de conduzido à respetiva enfermaria, onde lhe era dada uma cama de acordo com o mapa de vagas - geridas pelo enfermeiro-mor do hospital - despia a roupa e vestia a camisa e barrete do hospital. Competia ao almoxarife guardar as armas e os bens do doente, contra um recibo, para lhe serem devolvidas na altura da alta.

Os doentes com moléstias venéreas e de sarna eram transferidos para os hospitais da es- pecialidade e, enquanto aguardavam a transferência, ficavam internados em enfermarias próprias.

Os hospitais que tinham a categoria de Escolas de Medicina Cirúrgica e estavam dotados de “hum Plano de Escola Regular, e Scientifica de Medicina Operatória” por não ser já possível “se- parar a Medicina da Cirurgia”, como sejam os hospitais militares de Lisboa, Elvas, Almeida e Chaves,

214 - Para efeitos militares, o país estava dividido em seis províncias (Estremadura, Alentejo, Algarve, Beira, Trás-os-Montes e Minho). 215 - Bule pequeno para dar de beber ao doente deitado

tinham uma livraria própria, para consulta e custódia dos relatórios de médicos e cirurgiões, acerca de moléstias e operações difíceis. Nos Hospitais de Lisboa e Coimbra existiam, ainda, Dispensatórios Gerais cuja missão consistia em preparar, nos seus laboratórios, os componentes dos remédios.

O pessoal residente em cada hospital distribuía-se por várias funções e agrupava-se pelas seguintes classes: físico-mor, cirurgião-mor, primeiros e segundos médicos, cirurgiões, boticários e praticantes de farmácia e enfermeiros.

Para zelar pela saúde da alma, em cada hospital havia um capelão militar, disponível para confessar e sacramentar os doentes graves, acompanhar os moribundos com “exemplar zelo, paci- ência e caridade”, assistir religiosamente os demais e celebrar missa aos domingos e dias santos,

A gestão da saúde dos hospitais militares era da responsabilidade do Físico-mor e do Cirur- gião-mor, que deveriam ter em conta “a economia da Real Fazenda, a saúde da Tropa, e os pro- gressos da Arte de curar”. O Cirurgião-mor dirigia todos os cirurgiões. O Físico-mor superintendia os médicos de todos os hospitais, divididos em primeiros e segundos, e os boticários do hospital; tinha a seu cargo a publicação e divulgação, em todos os hospitais, de um Tratado de Higiene Militar para ser observado. Para além destas funções, eram obrigados a: a) visitar os hospitais como inspe- tores; b)recolher informação sobre a Topografia Médica do país e os recursos medicinais; c) asse- gurar a polícia dos regulamentos; d) elaborar relatórios; f) elaborar mapas dos doentes, moléstias, curas e mortes; g) redigir memórias sobre os métodos para melhorar a “salubridade do ar” e higi- ene; h) visitar o Dispensário Geral de Lisboa para se certificarem da qualidade e quantidades dos medicamentos em reserva; i) realizar reuniões mensais com os primeiros médicos e almoxarifes de cada hospital, para se inteirarem do serviço do hospital; j) autorizar despesas no Hospital Militar da Corte; l) requisitar, semestralmente, uma relação das “substâncias medicinaes” que existissem nas colónias; m) superintender as escolas de medicina e conceber o seu plano curricular; n)publicar e divulgar, anualmente, com a colaboração dos médicos e do primeiro cirurgião do Hospital Militar da Corte, as descobertas em medicina e cirurgia prática, tanto nacionais como internacionais, com instruções e respetivos métodos de aplicação.

Enquanto o Hospital Militar da Corte era dirigido pelo Físico-mor, os hospitais centrais de cada província militar eram dirigidos por primeiros-médicos e coadjuvados por segundos-médicos. Nos hospitais secundários, a direção cabia a segundos-médicos.

O regulamento ora em análise, previa ainda as funções de diretor, de segundo-médico, de primeiro e segundo- cirurgião, de boticários e ajudante de farmácia e de enfermeiros, de cujas fun- ções, em especial, de seguida, nos ocuparemos com maior detalhe.

Os enfermeiros dividiam-se em três categorias: enfermeiros-mores, ajudantes de cirurgia, enfermeiros ordinários e supranumerários, considerados como pertencendo ao grupo de Oficiais

Menores de Saúde e recrutados de entre os ajudantes dos cirurgiões. O Enfermeiro-mor superin- tendia todos os restantes enfermeiros e tinha por função a) fiscalizar a distribuição das rações e remédios aos doentes; b) receber do almoxarife ou dos seus fiéis, a roupa e utensílios para as en- fermarias, a distribuir pelos enfermeiros; c) acompanhar a visita dos Professores às enfermarias, onde houvesse “moléstias de maior consideração, e perigo”; d) fazer o mapa geral das rações; e) fazer as escalas de serviço permanente (serviço de “vela”) de dois enfermeiros, nas enfermarias com “doentes de perigo”: um turno das dez horas da noite às duas horas da manhã e um outro das duas às seis da manhã.

Nas enfermarias de tratamento (as chamadas de “febre”), cada enfermeiro ordinário tinha a seu cargo um grupo de vinte doentes e era ajudado por enfermeiros supranumerários e auxiliado por dois “moços”. Nas outras enfermarias, o número de doentes por enfermeiro subia para qua- renta. As funções dos enfermeiros eram as seguintes; a) distribuir as rações e os remédios aos do- entes, de acordo com as “papeletas, que devem estar á cabeceira dos doentes, e nas quaes os Facultativos escreverão o nome do Doente, seu Regimento, Companhia, dia de Entrada, Molestia, Symptonas, Dieta, e Remedios”; b) mandar os moços varrerem, diariamente, as enfermarias pelas quais eram responsáveis e, de quinze em quinze dias, esfregá-las e lavá-las; c) assegurar a limpeza e o despejo do lixo; d)mandar esfregar e lavar, diariamente, os utensílios dos doentes; e) fazer o serviço de “vela” noturno – correspondente a turnos de quatro horas - quando para tal estivessem escalonados; f) tratar dignamente os doentes e não os “offender” com “palavras, ou acções, ainda que estes faltem á decência, e respeito”; g) acompanhar os facultativos nas visitas aos doentes.

Antes das visitas aos doentes, que eram feitas diariamente, de manhã e, apenas excecio- nalmente, de tarde, no caso dos doentes aos quais os facultativos as permitissem, eram feitos os curativos pelo cirurgião de serviço, acompanhado do ajudante. Antes das visitas, as enfermarias deveriam também ser arejadas tal como, depois do jantar. Os enfermeiros encarregavam-se de tomar nota do número da cama do doente, número do remédio e número da dieta prescritos e de os registar na “papeleta” à cabeceira do doente. Terminada a visita dos médicos, os enfermeiros faziam duas relações: uma, referente às rações que o almoxarife devia providenciar; e outra, ati- nente aos remédios que deviam ser requisitados à botica. As rações eram numeradas de 1 a 4 e de 5 a 8, conforme correspondessem, respetivamente, à Tabela I – Rações ordinárias ou à Tabela II – Rações extraordinárias)217. Para além das rações pré-fixadas nestas tabelas, os facultativos podiam

ainda prescrever complementos às mesmas, como por (exemplo, frango, vinho ordinário ou do Porto, legumes e peixe.

217 - Apêndice 3 – Tabela de rações

No que se refere à higiene, cada hospital era provido de um barómetro e de um termóme- tro, para os professores fazerem as suas observações ou, na terminologia da época, “Ephemerides Meteorologico-Medicas”.

Do regulamento constam, ainda, várias outras diretivas sobre o asseio das enfermarias, os contágios, as carretas, as latrinas, os fumos, a lavagem das roupas, o ato de fumar, o arejamento das enfermarias, a renovação dos enxergões e lençóis, a lavagem das ligaduras e panos, a limpeza das marmitas e caçarolas, os cobertores e a marcação da roupa.

O cemitério situava-se fora das instalações do hospital e tinha uma casa mortuária, onde os corpos se conservavam por vinte e quatro horas, depois da certidão de óbito ser assinada pelo escrivão, pelo médico e pelo capelão.

No que respeita ao governo, stricto sensu dos hospitais militares, eles passavam a ser geri- dos por um contador fiscal e seus delegados, almoxarife, fiéis, escriturários, porteiros, despenseiros e guardas, cujas funções também se encontram devidamente pormenorizadas no regulamento.

Por último e para melhor se entender a estrutura hierárquica que presidia a toda a organi- zação hospitalar, cumpre, aqui, atentar na forma como era feita a nomeação para cada um dos cargos.

Os primeiros e segundos médicos e os boticários eram propostos pelo Físico-mor e aprova- dos pelo monarca enquanto os cirurgiões e os ajudantes eram propostos pelo Cirurgião-mor. As propostas eram feitas ao General em Chefe para as fazer subir à Real Presença. Os almoxarifes e escrivães eram propostos pelo Contador Fiscal e homologados pelo monarca, através da Secretaria de Estado. Por sua vez, os escriturários e fiéis eram propostos pelos almoxarifes e aprovados pelo Contador Fiscal. Os ajudantes de boticário eram propostos pelo primeiro Boticário e aprovados pelo Físico-mor. E, finalmente, os enfermeiros eram propostos pelos almoxarifes e aprovados pelo Inspetor do Hospital.