• Nenhum resultado encontrado

1.2. OS MODELOS DE GOVERNO E ADMINISTRAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA

1.2.1 A MONARQUIA CORPORATIVA (1500-1750)

Comecemos por analisar a regulação da atividade profissional dos ofícios, classificados na época em dois grandes grupos - medicina e cirurgia - e dos que se encarregavam da seleção, pro- dução e venda de medicamentos – boticários - bem como da comercialização e conservação dos remédios (simples, compostos e preparados).

A regulação dos ofícios de saúde, bem como o controlo e vigilância sobre a produção, venda e consumo de medicamentos, constituíram as principais funções assumida pela Coroa durante todo o Antigo Regime, quase sempre com um enorme insucesso, como se pode depreender das sucessi- vas chamadas de atenção, no plano jurídico, sobre o incumprimento dos regimentos, normas, des- pachos e sentenças. Um fracasso que ficou a dever-se, sobretudo aos recursos deficientes, tanto humanos como financeiros, à ineficácia dos meios de comunicação ao dispor da Coroa.

Apesar de tudo, a Coroa dedicou particular atenção a estes temas, no seguimento da dou- trina que obrigava o príncipe a cuidar dos seus vassalos, como pertencentes a uma «família» alar- gada, “ou seja, ter em relação aos habitantes, às riquezas do reino, aos comportamentos coletivos, o mesmo controlo e vigilância que tem o pai de família para com a sua casa e os seus parentes, cuidando do seu bem-estar, aumentando as suas riquezas, promovendo os nascimentos e a pre- venção da doença” 108. Um cuidado e um dever que o príncipe, à semelhança do bom pai de família,

devia ter para com os seus súbditos. Deste modo, embora com muitas ambiguidades e dificuldades, o poder régio devotou uma atenção especial ao exercício profissional dos técnicos de saúde e à qualidade da produção e circulação dos medicamentos.

A começar, desde logo, pelas instituições políticas, o Físico-Mor e o Cirurgião-Mor, a quem competia permitir, interditar ou punir o exercício da medicina, da cirurgia e da farmácia109.

108 - SUBTIL, José – Actores, territórios e redes de poder, entre o Antigo Regime e o Liberalismo. p. 259.

109 - Como se dirá mais à frente, no final do século XVIII seria ensaiada uma outra fórmula institucional com a criação de um organismo colegial, a Junta do Protomedicato, que, apesar de curta duração, produziu dois importantes códigos de orientação estratégica: a Far- macologia Geral e o regime jurídico dos exames para acesso às profissões.

O Físico-mor e o Cirurgião-mor

A função mais alargada que a Coroa exerceu, em sede de saúde pública, até meados do século XVIII, foi a regulação da atividade profissional dos físicos, cirurgiões e boticários, autorizando estes ofícios e vigiando os seus atos, através do Físico-mor e do Cirurgião-mor110.

A acreditação profissional dos físicos e cirurgiões era uma preocupação antiga da monar- quia. Conhecem-se cartas de exame do século XV, em razão da escassez de médicos com formação universitária e, já no reinado de D. Afonso IV (1338), os físicos, cirurgiões e boticários, eram obriga- dos a submeter-se a exame perante os físicos do rei, para poderem exercer a profissão.

D. João I, por carta de 28 de Junho de 1430, viria a reforçar a obrigatoriedade desses exa- mes, constatando que “muitos cristãos, judeus e mouros usavam da «física» sem a preparação ne- cessária, o que provocava grandes danos”111.

Mais tarde, no início do século XVI, estas funções foram atribuídas ao Físico-mor e ao Cirur- gião-mor, que passaram a ter a competência exclusiva de emissão das cartas profissionais, mesmo para aqueles que tivessem licenças passadas no estrangeiro; excecionavam-se os profissionais aprovados pela Universidade de Coimbra.

De uma forma geral, os candidatos aos exames obtinham os seus conhecimentos pela prá- tica com um mestre, muitas das vezes no seio da família, pais e avós de físicos e cirurgiões. Era, portanto, uma aprendizagem individual e marcadamente familiar. Outras vezes, devido à grande necessidade desses profissionais sentidas nos municípios, eram os próprios concelhos a requere- rem o exame dos seus «físicos», desde que o clínico tivesse conseguido obter alguma reputação.

Os exames consistiam em duas provas, uma teórica e outra prática. O mesmo procedi- mento era adotado para os cirurgiões, menos considerados socialmente uma vez que a sua profis- são era exercida pelas mãos, e, portanto, considerado um ofício mecânico: curativo de feridas, fra- turas, luxações, extração de tumores, abcessos e pequenas intervenções operatórias.

Em algumas dessas cartas de exame, havia a referência a especialidades, como a arte de «tirar potras e pedras», «operar hérnias e quebraduras», «curar papos» e, a mais importante, a oftalmologia. Mais de metade das cartas foram passadas a judeus que tinham granjeado enorme prestígio no campo da medicina e, por isso, gozavam de proteção régia.

110 - SILVA, Innocencio F.; ARANHA, Brito - Dicionário Bibliographico Portuguez, p. 342. Existia uma lista de médicos e cirurgiões (até D. Pedro V), de BASTOS, Francisco António Martins, em Nobiliarchia Medica. Notícia dos médicos e cirurgiões da real câmara, dos phísicos- móres e cirurgiões-móres do reino, armada e exercito e ultramarinos, desde os tempos mais remotos da monarchia. Lisboa, União Ty- pografica, 1858.

Desde o século XVI, pelo menos, que a função de acreditação profissional foi marcada por uma permanente litigiosidade entre a Universidade de Coimbra, o Físico-mor, o Cirurgião-mor e o Hospital de Todos os Santos112.

Ao longo do Antigo Regime, o exercício da medicina dependia do Físico-mor113, cujo regi-

mento tinha sido outorgado por D. Manuel I (25 de Fevereiro de 1521)114e novamente regimentado

em 28 de Junho de 1611115. Todavia, o ofício já existia desde, pelo menos, o reinado de D. João I

(regimentado, depois, em 8 de Junho de 1430), a quem competia «examinar todas as pessoas que quizessem usar de física». O mesmo regimento proibia «os cirurgiões de tratarem de medicina e os médicos de cirurgia», não tendo carta passada pelo Cirurgião-mor.

No regimento outorgado por D. Manuel ao seu físico da Corte, Doutor Diogo Lopes, as com- petências eram basicamente destinadas a examinar todos os físicos que usassem da arte da “scien- cia da Fysica”. O reconhecimento era feito através de exames de «teóricas» e «práticas», sendo estas últimas passíveis de serem atestadas através de testemunhos, ou por instrumentos públicos referentes, pelo menos, a dois anos de estágio com outros físicos aprovados.

Como novidade, para além destes exames, o Físico-mor levaria o examinando a visitar do- entes, para se inteirar da sua “pratica e sufficiencia”. Uma vez aprovado receberia uma carta para “poder curar livremente”, a qual seria selada na Chancelaria Régia.

Nos lugares onde não houvesse físicos examinados e aprovados, admitia-se que os “ ho- mens e mulheres, que pela ventura curem algumas infirmidades por experiencia” e desde que trou- xessem certidões ou cartas dos concelhos assinadas pelos oficiais camarários, podiam requerer exame ao Físico-mor para lhes passar licença. Os graduados nos estudos de Lisboa não precisavam da carta do Físico-Mor.

Ficavam, portanto, consagrados três tipos de médicos: os licenciados pelo Físico-mor para curar todas as doenças, em princípio exercendo nas grandes vilas e cidades, os médicos licenciados para curar só determinadas enfermidades, nos lugares mais distantes e menos povoados - a maioria dos concelhos116 - e os médicos licenciados pela Universidade de Coimbra.

112 - ABREU, Laurinda. - A organização e regulação das profissões médicas no Portugal Moderno, p. 97-122.

Sobre a Europa, da mesma autora, cf. European Health and Social Welfare Polices e de ABREU, Laurinda; SANDOR, Janos - Monitoring Health Status and Vulnerable Groups in Europe: Past and Present

113 - SOUSA, Joaquim. C. P. - Esboço de hum Diccionario Juridico, Theoretico, e Practico, remissivo ás leis compiladads, e extravagantes. Para o autor, o físico-mor é o oficial do Rei que tem “Inspecção, e Jurisdicção sobre cousas pertencentes á Medicina”

114 - SOUSA, José R. M. - Systema, ou Collecção Dos Regimentos Reaes, p. 338-343. Neste regimento ficou ordenado que todos os médicos nacionais e estrangeiros, que quisessem exercer a medicina, deveriam ser examinados pelo Físico-mor. Esta coleção é composta por seis volumes publicados entre 1783 e 1791, sobre a Administração da Fazenda Real, Justiças e Militares.

115 - PORTUGAL. Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo - Corpo Cronológico (1161/1699), Parte I, mç. 18, n.º 26

116 - Se não tivessem carta para curar seriam penalizados monetariamente (“trinta dobras de banda”, pagas em cadeia, sendo metade para o acusador e outra para o Físico-mor.

Nas Ordenações Filipinas (1603)117 diz-se que os magistrados, quando fizessem a correição,

deviam informar-se do número de físicos, cirurgiões, sangradores ou outras pessoas que curassem de cirurgia, ou que sangrassem e inquiri-los pessoalmente para verificar as suas cartas. Caso não as possuíssem deviam proceder a um processo sumário com depoimento de testemunhas.

No título LXII, “Dos Provedores, e Contadores das Comarcas”, competia a estes magistrados prover os hospitais para a cura dos enfermos e alimentação dos doentes, verificar se as camas es- tavam limpas, se os oficiais e o capelão cumpriam as suas obrigações e se “recebem os pobres com caridade”; de igual modo, para as albergarias, gafarias e confrarias118.

Depois da publicação das Ordenações Filipinas, num Alvará de 12 de maio de 1608, diz-se que o «Físico-Mor não pode dar licença a médicos idiotas para curarem, onde houver medicos le- trados, graduados pela Universidade de Coimbra. Essa licença só poderá ser concedida aos médicos idiotas, quando na sua terra não haja médicos letrados».

No ano seguinte (Provisão régia, de 29 de outubro de 1609), o Físico-mor foi encarregue de visitar as comarcas do reino e providenciar sobre assuntos da sua competência e, por alvará de 15 de novembro de 1623, de inspecionar todas as drogas que viessem de países estrangeiros. Um de- creto de 3 de setembro de 1627 mandava o Físico-mor fazer um regimento para o preço dos remé- dios, que deveria ser declarado pelo médico nas receitas.

Esta sequência de acumulação de competências e funções no Físico-mor, ao longo do sé- culo XVII e primeira metade do século XVIII, obrigou a alargar a sua rede de colaboradores. Assim, em 17 de agosto de 1740, uma Provisão do Desembargo do Paço ordenou que o Físico-mor tivesse comissários em todas as comarcas do Reino. No final do reinado de D. João V foi dado regimento a estes comissários (16 de Maio de 1744)119.

Estas medidas explicam-se pelas dificuldades em garantir uma adequada inspeção sobre as atividades dos físicos, cirurgiões e boticários e das boticas e drogarias através da rede de delegados do Físico-mor a qual, na verdade, já existia, mas que não tinha sido criada à custa de profissionais da saúde, mas sim através dos tradicionais oficiais régios, que exerciam a magistratura nas comar- cas e que estavam dependentes do tribunal do Desembargo do Paço120.

117 - ORDENAÇÕES filipinas: dos corregedores das comarcas: livro I., Título LVIII, parágrafo 33

118 - ORDENAÇÕES filipinas: Regimento de 27 de Setembro de 1514, Alvará de 15 de Novembro de 1623, 13 de Março de 1653 e 17 de

Agosto de 1671

119 - Este Regimento viria a ser retomado por um outro (22 de janeiro de 1803) durante a curta experiência da Junta do Protomedicato como iremos ver.

120 - Sobre estas competências e a caracterização do sistema político da época ver, por todos, SUBTIL, José - O Desembargo do Paço e HESPANHA, António M. - Vésperas do Leviathan. Para uma síntese política e administrativa ver MATTOSO, José (dir)- História de Portugal

Os corregedores, por vezes substituídos pelos juízes de fora, escolhiam os físicos disponí- veis para os acompanharem nas diligências solicitadas pelo Físico-mor mas estes, gozando de in- teira imunidade, não aceitavam realizar estas tarefas sem serem pagos. Um exemplo paradigmático desta situação pode ser ilustrado por uma carta do juiz de fora de Tavira, dando parte ao rei das visitas que tinha efetuado às boticas e que, achando-as “defeituosas”, pedia que fosse nomeado um físico para as inspecionar anualmente, à custa da câmara da cidade121.

A criação desta rede, formada à custa de comissários do Físico-mor em cada cabeça de comarca, pressupunha que os cargos fossem exercidos, não pelos corregedores, mas por oficiais da saúde (físicos ou cirurgiões), minimizando a impertinência e a incapacidade dos magistrados.

Ao mesmo tempo, porque os processos de sentença e execução por incumprimento das normas e do regimento, não tinham resposta pronta e satisfatória, o Físico-mor teria um Juízo Pri- vativo e juízes comissários nas províncias do Norte e do Sul e Algarve, para apreciar os processos e julgar os casos de incumprimento e exercício indevido.

Estes comissários eram médicos aprovados pela Universidade de Coimbra e deviam exami- nar, conjuntamente com mais três boticários, as boticas, os boticários, os preços dos medicamen- tos, as balanças, a qualidade dos medicamentos, os droguistas e a venda de medicamentos nos portos, de acordo com as normas observadas no Reino. Podiam fazer devassas sobre os cirurgiões e médicos, para verificar as cartas e licenças e estavam obrigados a fazer um relatório anual para o Físico-mor dando conta das visitas, autos e condenações que efetuassem122.

Atentemos, agora, nalgumas competências e funções do Cirurgião-mor, que superintendia na legitimação do exercício dos cirurgiões.

Por Carta Régia de D. Afonso V (25 de Outubro de 1448), foi conferida autoridade ao Cirur- gião-mor para dar licenças, atendendo a que muitas pessoas «se lançam a usar das artes da Física e de Cirurgia, não sendo para isso autorizadas».

Uma Carta Régia de D. João II (17 de Março de 1481), confirmava este último regimento. Em meados do século XVI (Alvará de 26 de Julho de 1559), D. Sebastião encarregava o Cirurgião- mor de examinar, também, os cirurgiões que tivessem frequentado as Universidades de Coimbra, Salamanca e o Hospital de Guadalupe, assim como os dois anos de anatomia e cirurgia no Hospital de Todos os Santos.

121 - PORTUGAL. Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo- Ministério do Reino, consultas e negócios do Físico-mor (1757-

1833), Parte I, mç. 93, n.º 2.

122- PORTUGAL. Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo- Ministério do Reino, consultas e negócios do Físico-mor (1757-

1833), maços 460 e 470. Ver nos mesmos maços, requerimentos de droguistas, informações sobre águas de Inglaterra, ensaios médicos,

No século XVII, uma Carta Régia de 12 de Dezembro de 1631123, ordenando ao Cirurgião-

Mor que procedesse ao registo geral de todos os cirurgiões do Reino e passasse, também, a exami- nar os sangradores, dentistas e parteiras, constituiu-se no regimento do ofício que iria perdurar até à criação da Junta do Protomedicato.

Este regulamento, dado ao Doutor António Francisco Milheiro, obrigava o Cirurgião-mor a ter um livro de registo de todos os cirurgiões e cartas de ofício. Os que não tivessem carta de cirur- gião pagariam uma pena pecuniária e, caso reincidissem, poderiam ser degredados para fora da vila ou cidade. Faz-se ainda referência aos sangradores, às parteiras e às pessoas que “concertão braços, e pernas, e dão suadouros, tirão dentes, e curão doudos” sem licença. Os exames seriam feitos pela Cirurgião-mor, assistido por mais dois cirurgiões e os candidatos eram obrigados a saber latim e a terem um estágio de, pelo menos, quatro anos de prática, com um cirurgião, em qualquer hospital da terra ou, então, a provarem, por certidão, que tinham praticado noutros hospitais, in- dicando o nome do cirurgião com quem tinham aprendido124.

O Cirurgião-mor, conjuntamente com dois barbeiros, podia também examinar os sangra- dores que provassem ter prática com os seus mestres, ou terem praticado num hospital por um período de dois anos. Estes barbeiros só podiam exercer a sua atividade nos lugares onde não hou- vesse cirurgião. O mesmo aconteceria às parteiras e pessoas que concertassem braços, tirassem dentes e “os mais que pertencem a seu ofício”, como pessoas que soubessem curar certas enfer- midades como “alporcas, chagas, feridas”. Devia também visitar as boticas para se inteirar do seu estado e prover os “unguentos, tocantes à Cirurgia somente, sem entender no que toca ao Físico- Mor”. Em suma, nada de novo quanto às orientações vigentes desde, pelo menos, há mais de dois séculos.

Os médicos de «partido»

Os médicos de «partido» eram físicos que ajustavam, através de um ordenado fixo, o ser- viço permanente de assistência médica a um determinado conjunto de pessoas, curando-as de graça. Este serviço podia ser destinado a uma instituição, por exemplo, à Casa Real, à Casa da Su- plicação, a uma câmara, ou ao «partido da saúde» de um município que, no caso do Império, podia ser uma capitania ou outra área territorial. No primeiro caso, o médico obrigava-se a dar consulta e tratamento, em qualquer altura, aos oficiais da instituição e aos seus familiares, sem custos. No

123- SOUSA, José R. M. - Systema, ou Collecção Dos Regimentos Reaes, p. 343-349. Em 30 de Julho de 1632, são feitas alusões a uma provisão de 25 de Outubro de 1448 de D. Afonso, em que o chanceler do Reino não pode passar cartas sem licença do Físico-Mor e do Cirurgião Mor através de uma cópia feita pelo Jorge Cunha, Escrivão do Arquivo Real da Torre do Tombo, por não haver Guarda-mor. 124 - O conhecimento do latim era, de facto, importante na medida em que grande parte das obras, tratados e compêndios de medicina e cirurgia estavam redigidos nesta língua. Ver, para o efeito, inúmeras destas obras no Dicionário Bibliográfico e no fundo da biblioteca da Academia das Ciências e da Biblioteca da Ajuda

segundo caso, obrigava-se a fazê-lo aos pobres que não tinham condições para pagar os seus cui- dados de saúde e que eram assistidos, se necessário, nos hospitais da terra.

A fixação dos salários dos médicos de «partido da saúde», vulgarmente conhecidos por «médicos de partido» era feita pela vereação mas ficava sujeita a consulta do Desembargo do Paço e a despacho régio. Não raras vezes, a Coroa impunha alterações às remunerações propostas pelas câmaras e, noutras ocasiões, abdicava, inclusive, de parte das sisas e das fintas, para que a câmara pudesse satisfazer os ordenados e não ficasse sem médico da terra.

Fora destes compromissos, os médicos podiam levar honorários das consultas que realizas- sem e que não estivessem abrangidas por estes contratos, como era o caso das consultas prestadas às elites privilegiadas, que eram seguidas e tratadas em casa.

Este expediente de proteção aos pobres teve início em meados do século XVI. Em 1568 foi imposto um tributo a 75 municípios, para financiarem a formação de médicos e cirurgiões na Uni- versidade de Coimbra, destinados justamente, aos partidos de saúde. Em 1604, D. Filipe II aumen- tou estas taxas para o dobro, tendo em vista formar, também, 20 boticários, para além de 30 mé- dicos125.

A organização para a recolha destas verbas, a seleção dos candidatos, a instrução, o ensino e a futura colocação dos bacharéis estavam a cargo do Reitor da Universidade que devia ter em atenção que a distribuição dos médicos, cirurgiões e boticários devia privilegiar os municípios taxa- dos, os quais foram aumentando progressivamente. Tanto estas prerrogativas, como as que decor- reram da reforma dos Estatutos da Universidade (1591), vieram a dar um enorme protagonismo à universidade sobre o controlo dos médicos o que provocou conflitos e contestações por parte do Físico-mor que, por esta via, perdia autoridade na regulação da medicina.

Os médicos e boticários do «partido» estavam dependentes, em termos jurisdicionais, da Mesa da Consciência e Ordens, justamente porque era este tribunal que ministrava a justiça da Universidade de Coimbra, onde estes médicos e boticários frequentavam os cursos como bolseiros, à custa de impostos arrecadados pelas câmaras. Pelo mesmo tribunal corriam as sentenças, apela- ções e agravos, a propósito das queixas sobre as suas condutas e incompetências.

Por provisão régia de D. Sebastião, de 18 de fevereiro de 1606, foi determinado que na Universidade de Coimbra houvesse 30 estudantes, cristãos velhos126, para estudar medicina e ci-

rurgia fixando, para o efeito, um Regimento próprio que se terá, entretanto, perdido. Estes estu- dantes fariam, depois, parte dos «partidos» que se foram mostrando, cada vez mais, insuficientes.

125 - ABREU Laurinda – A organização e regulação das profissões médicas no Portugal Moderno, p. 84

126 - Esta questão que obriga os médicos a serem cristãos velhos é recorrente até meados do século XVIII o que justifica que todos estes profissionais tenham sempre feito esforços para serem titulares do Santo Ofício o que lhes permitia apresentarem-se publicamente