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4 SOCIEDADE EMPRESÁRIA DESPORTIVA

4.1 MERCANTILIZAÇÃO DO FUTEBOL

Em conformidade com a explanação disposta até o momento, nota-se que a adoção de uma estrutura jurídica empresarial pelos clubes, além de uma resposta aos problemas financeiros, administrativos e por vezes desportivos, é um processo de adaptação ao mercado do futebol, de crescente comercialização do esporte como espetáculo e produto, em que requer, portanto, uma gestão profissional das entidades de prática desportiva.

Como já mencionado, as entidades desportivas praticam atividades econômicas incompatíveis com a estrutura associativa, devendo, para tanto, promoverem o desenvolvimento de atividades no âmbito social (isto é, a promoção social e cultural) e, conjuntamente, adequar-se ao futebol moderno e suas exigências, principalmente do ponto de vista econômico. Em suma, o modelo associativo apresenta entraves aos clubes de futebol ante as necessidades atuais de gestão e funcionamento.

É importante reiterar, que a influência subjetiva na gestão das entidades desportivas, praticada por dirigentes e cartolas, não deve ser desconsiderada por inteiro. Isso porque essa manutenção das raízes no anseio pela evolução e melhora da associação convém, principalmente, na preservação de sua cultura e origem. Ocorre, todavia, que essa influência se torna inadequada na esfera da gestão do futebol profissional, em vista da exigência de profissionalização e transparência que a mercantilização do futebol traz atualmente.

Como se verá adiante, é viável a manutenção dessas duas realidades distintas por meio do destacamento do departamento de futebol profissional, adotando um regime empresarial de gestão, da administração das associações, sem fins lucrativos.

Nos dias de hoje, como um objetivo que influirá nos demais, as entidades desportivas buscam ampliar suas receitas através da exploração do espetáculo esportivo e do marketing de

suas marcas, ao fim de tornar eficiente sua gestão e assim obter conquistas desportivas, e consequentemente, atingir o seu cliente107, ou seja, o torcedor108.

Em seu princípio, além de amadoras, as associações detinham como principal fonte de financiamento as contribuições de seus associados. Além disso, não se cogitavam recursos mais do que o suficiente para a própria sobrevivência da associação.

Com a modernização e a evolução do futebol, consequentemente, ocorreu o crescimento das despesas derivadas deste processo de profissionalização – tais como o aumento de salários, de contribuições, de empregados, o próprio custeio da estrutura física e operacionais em dias de jogos etc. As receitas ordinárias109, ou seja, as contribuições dos associados, já não

mais condiziam com a realidade dos clubes. Logo, as entidades desportivas, por necessidade, buscaram novas fontes de arrecadação, principalmente, por meio do marketing e exploração comercial de sua marca, caracterizando ainda mais a atividade mercantil desenvolvida pelos clubes ao se inserirem no mercado milionário do futebol.

De modo exemplificativo desta nova realidade econômica muito distante daquela em que as associações foram germinadas, em um estudo sobre as marcas mais valiosas do futebol brasileiro realizado pela empresa BDO RCS Auditores demonstra que em 2017 os 25 clubes analisados geraram uma receita total de R$ 5,2 bilhões, o que representa um crescimento de 5% em relação ao ano anterior. O estudo indica ainda, que nos últimos cinco anos a receita total destes 25 clubes cresceu 60%.110

As associações, consoante esta nova realidade, possuem elementos novos e estranhos do seu habitual, porém fundamentais, como o lucro e o superávit, que são determinantes na sustentabilidade dos negócios e do próprio clube. Torna-se claro, portanto, que existe uma nova conjuntura social, esportiva e econômica no âmbito do futebol profissional.

Nessa esteira, assim assevera o sociólogo Richard Giulianotti, que aponta para um novo estágio da gestão esportiva a nível mundial provocado por relevantes mudanças na recente realidade econômica do desporto:

107 A Lei nº. 10.671 de 2003, o Estatuto de Defesa do Torcedor, equipara, expressamente em seu art. 3º, a entidade de prática

desportiva detentora do mando de jogo a um fornecedor, conforme o CDC.

108 AIDAR, Antonio Carlos Kfouri. LEONCINI, Marvio Pereira. As leis econômicas e o futebol: a estrutura do novo negócio.

In: AIDAR, Antonio Carlos Kfouri. LEONCINI, Marvio Pereira. OLIVEIRA, João José de. A nova gestão do futebol. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. p. 117

109 Vide nota nº. 74.

A globalização do capital e a queda de tipos alternativos de sistema social significam que é cada vez mais difícil resistir à “privatização” dos clubes de futebol no mercado aberto. Alguns dos principais clubes do Leste europeu já foram comprados por empresários locais ou ocidentais. No Brasil e na Argentina, a legislação está sendo estruturada para permitir que os clubes acompanhem a demanda111

Como amostra desta globalização afirmada pelo pesquisador, ao se analisar o campeonato de futebol mais rentável do mundo112, 14 dos 20 clubes que compuseram a Premier League, campeonato da primeira divisão da Inglaterra, na temporada 2018-2019, possuem proprietários (ou acionistas majoritários) estrangeiros113: três norte-americanos (Liverpool, Manchester United e Arsenal), dois chineses (Wolverhampton e Southampton), dois russos (Bournemouth e Chelsea), um iraniano (Everton), um italiano (Watford), um paquistanês (Fulham), um malaio (Cardiff City), um Tailandês (Leicester), um galês (West Ham) e um emiradense (Manchester City).114

O futebol evoluiu em todos os aspectos, dentro e fora de campo, e se transformou em um negócio de cifras bilionárias e extremamente complexo, do ponto de vista operacional. Em se tratando do futebol brasileiro, a fórmula jurídica de estruturação das entidades desportivas permanece tal qual fora forjada no seu início, impedindo e retardando o processo de maximização dos resultados administrativos, financeiros e até esportivos dos clubes de futebol.

É necessário, portanto, que se busque o equilíbrio entre o exercício da atividade econômica, já perpetuado, informalmente, no ínterim das entidades desportivas, com finalidade lucrativa, sem que, necessariamente, se perca a característica cultural e social de suas raízes associativas.

O legislador ao criar a Lei nº 9.615, de 1998, não se atentou em determinar qualquer diretiva ou regime específico acerca do processo a ser aplicado pelas entidades de prática jurídica na adoção de uma estrutura jurídica empresarial – seja pela transformação direta

111 GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do Futebol - dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões.

Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant e Marcelo de Oliveira Nunes. São Paulo: Nova Alexandria, 2002. p. 118.

112 DELOITTE LLP. Annual Review of Football Finance 2019. Sports Business Group. 28º ed. May 2019.

113 Brighton, Burnley, Huddersfield, Newcastle, Crystal Palace e Tottenham possuem proprietários ingleses.

114 John W. Henry (Liverpool); Família Grazer (Manchester United); Stan Kroenke (Arsenal); Guo Guangchang, proprietário

da Empresa Fosun Internacional (Wolverhampton); Jisheng Gao (Southampton); Maxin Denin (Bournemouth); Roman Abramovich (Chelsea); Farhad Moshiri (Everton); Gino Pozzo (Watford); Shahid Khan (Fulham); Vincent Tan (Cardiff City); Aiyawatt Srivaddhanaprabha (Leicester); David Sullivan (West Ham); Sheik Mansour, proprietário da Abu Dhabi United Group (Manchester City).

e completa da associação ou pela transferência de ativos ligados ao departamento de futebol profissional do clube –, e, além disso, não se preocupou com determinados problemas de ordem prática, relativos a esta mudança, como por exemplo, o vultoso passivo tributário e previdenciário das associações ou a condição jurídica dos associados, em que não ocorrem direitos e obrigações recíprocos, nem mesmo interesses econômicos.

Não bastasse, além de não oferecer diretrizes e incentivos à reestruturação das entidades de prática desportiva em tipos societários, a legislação pátria resumiu o tema, por demais importante, em um único artigo na lei geral sobre desportos no Brasil, a Lei Pelé:

§ 9º. É facultado às entidades desportivas profissionais constituírem-se regularmente em sociedade empresária, segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil.115

Com efeito, é de capital importância que a normativa nacional deve reconhecer a natureza ímpar da atividade desportiva profissional e busque meios de incentivar a adoção de estruturas empresariais pelos clubes, como bem elucida Eduardo Carlezzo:

Ao invés do nosso legislador estimular a adoção de tipos empresários, como o de sociedade limitada ou anônima propiciando aos clubes algum tipo de benefício para tanto, prefere enveredar pelo caminho da repressão [...] Ainda, quando a legislação diz “constituírem-se regularmente em sociedade empresária desportiva” (art. 27. § 9º, da Lei n. 9.615/1998), nada mais esclarece sobre como isto deve ser feito. Sim, porque a simples conversão de objeto civil para empresário, melhor dizendo a mudança de associação para sociedade empresária possui dificuldades práticas quase que insuperáveis.116

Outrossim, existem demais fatores que inibem a adoção do regime societário empresarial pelas entidades desportivas, principalmente o relevante passivo fiscal e previdenciário da grande parte dos clubes brasileiros, que, certamente, afastariam investimentos e recursos já de início à sua conversão.

Como evidência disso, no ano de 2018, as dívidas dos 20 clubes de maiores receitas do futebol brasileiro atingiram o valor de R$ 6,9 bilhões, em que 36% desse total corresponde às dívidas fiscais. Botafogo (R$ 730,6 milhões), Internacional (R$ 668,5 milhões) e Fluminense (R$ 629 milhões) são os três maiores endividados do País117.

115 LEI nº. 9.615, de 24.03.1998. Institui normas gerais sobre o desporto e dá outras providências. Art. 27.

116 CARLEZZO, Eduardo. Direito desportivo empresarial. São Paulo – Ed. Juarez de Oliveira, 2004. p. 107.

117

SPORTS VALUE. Finanças dos clubes brasileiros em 2018. Edição maio de 2019. Disponível em:

<http://www.sportsvalue.com.br/wp-content/uploads/2019/05/SportsValue-Finan%C3%A7as-clubes-2018-Maio-2019-3.pdf> Acesso em: 10 de junho de 2019. p. 43-48.

Além disso, há outras especificidades legais que, na prática, impossibilitam a viabilidade da conversão, propriamente dita, de uma associação em uma sociedade empresária. Em primeiro, tem-se a alteração do tipo e do objeto social da pessoa jurídica, “que antes era civil e agora passou a ser empresarial”118.

De mais a mais, a legislação é inerte em relação a condição jurídica dos associados, que possuem vínculo personalíssimo no quadro social de uma entidade de prática desportiva, em contrapartida ao tipo societário, que tem sócios, estes portadores de um título negociável, configurando, assim, diferenças práticas extremamente pertinentes.

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